Projetos de Lei PLS 101/2018 e 147/2017 atacam a Psicanálise?

Está em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei PLS 101/2018 do senador Telmário Mota (PTB-RR), que, sob o argumento de instituir a profissão de psicanalista no Brasil, visa a criar a possibilidade de faculdade de graduação específica em Psicanálise.

Mas, será que passaria a ser obrigatório ter faculdade em psicanálise para ser psicanalista no Brasil?

É legítimo que escolas, institutos, associações, sociedades e movimentos psicanalíticos posicionem-se contra um excesso de investida do poder estatal contra nossa área.

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Neste sentido, oferecemos também a presente contribuição, na forma deste artigo.

Entretanto, entendemos não haver razão para alarde.

Vamos mostrar que o texto do Projeto de Lei do Senado (PLS) pode ser favorável para reforçar o caráter leigo da psicanálise, bem como o PLS prevê que há duas saídas para quem não se graduar em psicanalista e queira atuar como psicanalista.

O que este Projeto de Lei de fato propõe?

Desde 2000, outros inúmeros projetos tentaram criar algum tipo de restrição ou regulamentação à Psicanálise, todos frustrados, a maioria deles originários de parlamentares da bancada evangélica.

Via de regra, esses projetos transitaram por várias comissões, tiveram audiência pública e foram descartados ou nunca trazidos à votação.

O projeto mais recente (PLS 101/2018), do senador Telmário Mota (PTB-RR) pode seguir o mesmo caminho de impasse ou rejeição. Ainda assim, seria mesmo uma ameaça ao ofício psicanalítico e um risco à episteme deste campo de saber?

Entendemos que o projeto é desnecessário, por mudar praticamente nada no ofício psicanalítico no Brasil. Introduz uma inovação: apenas o Brasil teria uma regulamentação para estabelecer faculdade de graduação para psicanalistas, em oposição ao que funciona em todo mundo.

Se o Projeto propusesse a obrigatoriedade única (sem ressalvas) de faculdade em psicanálise, aconteceria de imediato o impedimento de TODOS os profissionais (já que hoje no Brasil e no mundo não há graduação em Psicanálise, pelas razões discutidas a seguir). Nem mesmo psicólogos poderiam usar a abordagem psicanalítica, pois não teriam faculdade de psicanálise!

Agora, a faculdade de psicanálise, de acordo com o Projeto, seria uma POSSIBILIDADE (art. 1º, item I), mas não a única. O Projeto elenca duas outras possibilidades:

  • Em seu art. 1º, item II, o Projeto prevê que seria possível ser psicanalista tendo uma graduação em qualquer área e fazendo um curso adicional de complementação em psicanálise;
  • Em seu art. 1º, item III, o Projeto prevê que o psicanalista, mesmo não cumprindo os itens I (faculdade de psicanálise) e II (curso de complementação), pode atuar, desde que, na entrada em vigor da lei, já atue como psicanalista.

Como curso de complementação ou especialização exigido no item II do art. 1º, o Projeto prevê (art. 1º, parágrafo único, item III) que possam, inclusive, ser cursos livres, ministrados por psicanalistas (em escolas, institutos, sociedades etc.) e com carga horária mínima de 300 horas.

Portanto, para todos os fins, os cursos de formação em psicanálise atualmente existentes no Brasil (como o nosso, que tem carga horária acima de 1.200 horas) continuariam hábeis para formar novos psicanalistas.

Como funciona a formação de psicanalistas no Brasil e no mundo?

As Formações de Psicanalistas no Brasil, como regra, seguem uma exigência rigorosa de teoria (leituras), análise e supervisão. Além disso, seguem o ditame internacional de que psicanalistas devem formar novos psicanalistas em meio a organismos próprios, não institucionalizados pelo aparato estatal.

Portanto, a Psicanálise ainda é no Brasil um ofício leigo ou laico, isto é, trata-se de ofício aberto a profissionais de diversas formações, apesar das tentativas conservadoras ao contrário.

Há um forte lobby do ensino superior institucionalizado e do conservadorismo religioso em restringir a relevância e o método da Psicanálise. Porém, isso não é unânime nem mesmo dentro deste público: muitos psicanalistas são pastores evangélicos e outros líderes religiosos.

Criar uma obrigatoriedade de graduação para psicanalistas como forma ÚNICA de formação (coisa que o PLS 101/2018 não faz) seria, em última instância, tentar aprisionar o desejo e aniquilar a própria episteme não burocratizada com a qual a Psicanálise se afirmou como campo de saber.

Sobre o projeto de lei PL 174/2017

Antes do PL 101/2018, o mesmo senador Telmário Mota (PTB-RR) intentou implacar o PL 174/2017, que inclui em seu texto a Psicanálise como “terapia naturista“.

O projeto pretendia regulamentar o exercício da profissão de terapeuta naturista, nas modalidades de medicina oriental, terapia ayurvédica e outras terapias naturais. O senador inclui, equivocadamente, no texto o termo “terapias psicanalíticas e psicopedagógicas”.

O que nos parece ter ocorrido é que o senador, no PLS 174/2017, recebeu críticas de psicólogos e psicanalistas (veja logo abaixo) por comparar a Psicanálise a terapias alternativas menos validadas. Em razão disso, preferiu criar um novo PLS (PLS 101/2018), para tratar especificamente da Psicanálise.

Porém, na justificativa do PLS, o próprio senador justifica que a psicanálise precisa continuar sendo leiga (aberta não só a psicólogos e médicos) e não pode ficar somente restrita a uma graduação de psicanálise.

Por isso o PLS abre a possibilidade de psicanalistas que já atuam ou que venham a se formar em cursos livres por institutos e sociedades psicanalíticas. Nesse sentido, o PLS parece um preciosismo burocrático, mas não altera a forma como a Psicanálise no Brasil (e no mundo) atua e forma psicanalistas.

O que diz o Conselho de Psicologia?

Por não ser institucionalizada, a Psicanálise não tem (nem deve ter) um Conselho ou Ordem Federal. O PLS 101/2018 não estabelece tal Conselho ou Ordem.

Agora, nem mesmo os conselhos existentes (como os de Psicologia e de Medicina) pareceram concordar com o primeiro projeto (PLS 147/2018). Sobre o segundo(PLS 101/2018), por ser mais condizente com a história da Psicanálise, não gerou grandes polêmicas.

Abaixo, traremos, então, as críticas ao primeiro PLS do senador, o PLS 147/2018.

De acordo com o conselheiro do Conselho Federal de Psicologia, Paulo Maldos, “Consideramos totalmente inadequada essa intenção de regulamentação, devido ao fato da Psicanálise se constituir num campo de conhecimento próprio, com conceitos, parâmetros e métodos próprios, não passíveis de regulamentação. O fundamental nesta situação é que a palavra seja dada aos psicanalistas e a suas instituições”.

Conselho Regional de Psicologia do Estado de São Paulo (CRP-SP) também apontou sobre a relação de independência entre psicanálise com a psicologia:

  • “A Psicanálise é uma modalidade de atendimento terapêutico, que é exercida por profissionais psicólogos, psiquiatras e outros que recebem formação específica das Sociedades de Psicanálise ou cursos de especialização neste sentido”;
  • “Como atividade autônoma não é profissão regulamentada. O Conselho Regional de Psicologia tem competência para fiscalizar o exercício profissional do psicólogo, incluindo-se no caso a prática da psicanálise. Se o profissional que se diz psicanalista não é psicólogo registrado no CRP-SP não temos competência para exercer a fiscalização”.

Veja que, em suas manifestações, sequer o Conselho de Psicologia parece defender a regulamentação de faculdade de psicanálise, embora não tenha se manifestado especificamente sobre o PLS 101/2018.

Afinal, se houvesse obrigatoriedade de graduação em Psicanálise, sequer os psicólogos poderiam ser psicanalistas: precisariam fazer uma nova graduação em psicanálise para poderem mencionar Freud!

Óbvio que o Conselho de Psicologia atua com rigor contra qualquer tipo de profissional (inclusive psicanalistas) que realizar atividades restritas a psicólogos, mas veja que existe no Brasil, há décadas, existe um espaço relativamente harmonioso de atuação de psicanalistas não psicólogos.

O que diz o Conselho de Medicina?

O Conselho Federal de Medicina (CFM) não se posicionou especificamente contra os Projetos de Lei aqui mencionados. Entretanto, há uma longa trajetória do CFM e Conselhos Regionais de Medicina em reconhecer a Psicanálise como saber e ofício autônomos.

Em Consulta 4.048/97, o CFM já havia emitido Parecer considerando a Psicanálise um ofício não restrito a médicos e como uma área que não é de especialização da medicina.

No mesmo sentido, a sucursal deste Conselho de Medicina do RJ, o CREMERJ, via parecer nº 84/2000, considerou a psicanálise uma atividade assistencial, não sendo privativa de uma profissão em específico. Quando exercida, deve seguir as orientações apontadas pelas instituições responsáveis pela formação.

Além disso, nesse mesmo Parecer do CREMERJ fora recomendado que a Psicanálise não deveria ser regulamentada pelo poder público, pois caberiam às sociedades, escolas e associações definirem seus critérios e códigos para formação e acompanhamento de atuação.

O que dizem os Psicanalistas?

Os grupos de psicanalistas não se manifestaram enfaticamente contra o PLS 101/2018, pelas razões aqui mencionadas: o Projeto de Lei não altera em praticamente nada a prática atual.

Porém, em relação ao PLS 147/2018, os movimentos de psicanalistas foram bastante críticos, o que exemplificaremos abaixo.

Na opinião da psicanalista Ana Sigal, que representa o Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, o estudo e a prática da Psicanálise demandam um saber estruturado com base em conhecimentos estipulados, ou seja, “existe toda uma teoria, com cerca de 100 anos de existência”.

“Nós não temos crítica nenhuma sobre as demais terapias citadas no projeto de lei, porém não consideramos que elas tenham o mesmo nível epistemológico, a mesma base de conhecimento da Psicanálise”, explica a psicanalista.

O ofício de psicanalista no Brasil

A Psicanálise não invade a atuação de médicos psiquiatras (competentes para prescrever medicamentos) e psicólogos (competentes para realizar testes psicológicos e adotar linhas diversas de tratamento analítico).

A Psicanálise não trabalha com diagnóstico psicológico no sentido que a psicologia faz, não aplica testes profissionais de seleção, por exemplo.

Claro que, no sentido geral, a psicanálise pode atuar com o recurso do diálogo terapêutico, mas este conceito é muito amplo: todos os ofícios e profissões fazem isso (um professor, um coaching, um terapeuta holístico, um gestor de RH etc. podem a rigor também fazer uso de técnicas similares; todos invadiriam o ofício do psicólogo?).

Desde que não siga estritamente metodologias de outras correntes psicológicas (como gestalt-terapia, behaviorismo etc.), que impedimento teria a psicanálise de usar seus próprios métodos para propor a solução de conflitos humanos, como sempre defenderam seus fundadores, desde Freud?

Veja que, recentemente, o Ministério da Saúde incorporou novos procedimentos ao SUS.

A psicanálise não está contida nesta lista, mas terapias similares (que também são estudadas por cursos livres, não por faculdades) como Reiki e Constelação Familiar (esta é muito mais recente, tem apenas 20 anos de Brasil, e com similar caráter de aconselhamento, análise, solução de conflitos da psicanálise) estão previstas no rol de atendimentos autorizados pelo SUS.

A nossa impressão é que é tão óbvio que a Psicanálise já é prática complementar de saúde que o Ministério nem se deu ao trabalho de incluí-la.

Isso é tão absurdo para a tradição da psicanálise, por aquilo que defendem outros psicanalistas e por aquilo que defendiam os fundadores da psicanálise: grandes psicanalistas não se formaram psicanalistas, sequer Freud (que era médico).

Muitos dos maiores psicanalistas da história não eram médicos ou psicólogos (como é o caso de Melanie Klein e Anna Freud).

Absurdo seria conceber que todas essas atividades muito mais frágeis em termos de tempo de pesquisa e prática sejam possíveis de se atuar sem curso algum (ou apenas com curso livre), mas a psicanálise (que sempre seguiu a mesma linha laica) exija faculdade específica.

Mas, repetimos: o PLS 101/2018, se aprovado (o que nos parece bastante improvável), não alterará as práticas atuais de formação de psicanalistas, apenas acrescentará uma forma a mais (graduação em psicanálise).

Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas

Houvesse uma obrigatoriedade única de faculdade específica para psicanalistas, de imediato a psicanálise seria um exercício irregular no Brasil e todos os psicanalistas (milhares deles no país, inclusive médicos e psicólogos que adotam a psicanálise como forma principal ou complementar de atuação) e que não tenham faculdade de psicanálise (afinal, hoje inexiste tal faculdade) passariam a ser criminosos.

O Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras existe desde o ano 2000. Foi quando dezenas de instituições psicanalíticas de todo o Brasil se mobilizaram contra um dos projetos do senado de regulamentação, lançados à época.

Desde então, esse Movimento se reúne periodicamente para manter a psicanálise não regulamentável pelo Estado. O movimento considera que a Psicanálise é um ofício e não uma profissão. Esses princípios, reconhecemos, foram respeitados pelo senador Telmário Mota, em seu PLS 101/2018.

Ainda assim, devemos nos manter atentos contra regramentos restritivos demais que venham a restringir ou limitar a troca de saberes e o ofício psicanalítico.

Nas palavras do Movimento de Psicanalistas, “Regulamentar o desejo do analista é mais um afã ordeiro estatal que teria a nefasta consequência de não mais arvorar ao analista, a seus pares, ao analisando, enfim, a autorização de se ocupar esse lugar“.

O que existe de regulamentação hoje no Brasil?

No Brasil e no mundo, a psicanálise é exercida livremente.

No Brasil, é um ofício reconhecido, mas não é uma profissão regulamentada no sentido de não haver autorização de nenhum conselho estadual ou federal (e é bom que assim continue sendo). Com isso, não existem cursos em nível superior reconhecidos pelo MEC que formem psicanalistas.

Os Psicanalistas tem seu ofício listado Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho – Portaria nº 397/TEM de 09/10/2002, CBO nº 2515.50.

O artigo 5º (II a XIII) da Constituição Federal de 1988 garante que a todos é reservado o livre direito de se expressar, atuar, ensinar e aprender, exceto se houver expressa proibição legal.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) e o Decreto 2.494/98 defendem a liberdade de ensinar e aprender: as associações e escolas psicanalíticas não podem ser impedidas de lecionar, contra uma tradição de mais de 100 anos de serem elas o principal canal de transmissão (isto é, de transferência de saberes) da Psicanálise.

A Lei Complementar 147/2014 (art. 5-I, IV), ao incluir o Psicanalista como atividade enquadrada no Simples Nacional, reforça o aspecto legal e formalizado deste ofício.

A Lei 12.933/2008 instituiu o “Dia do Psicanalista”, a ser comemorado, anualmente, no dia 6 de maio, o que é mais um elemento de reforço do reconhecimento social a este ofício.

Além disso, o Parecer do Conselho Federal de Medicina (processo Consulta 4.048/97, de 11/02/1998), o Parecer 309/88 (da Coordenadoria de Identificação Profissional do Ministério Público Federal e da Procuradoria da República, do Distrito Federal), o Parecer CREMERJ 84/2000 e o Aviso do Ministério da Saúde nº 257/57 (de 06/06/1957) reforçam a Psicanálise como ofício legítimo, independente de outras profissões e vinculados a organismos informais próprios (como institutos, escolas, associações e sociedades de psicanálise).

Essas formas de reconhecimento, aliadas à tradição da Psicanálise e o rigor com que as associações e escolas psicanalíticas no Brasil formam novos Psicanalistas, deveriam bastar. Não seria necessário uma lei como a proposta (e não aprovada ainda) pelo senador Telmário Mota, porque tal proposta não contraria em nada a regulamentação que acima listamos (apenas cria uma possibilidade extra de haver faculdade de graduação em psicanálise).

Afinal, não seria mais Psicanálise aquela Psicanálise ofendida em sua episteme e domesticada sob o aparato estatal.