Neste artigo, exploramos os desafios enfrentados por quem busca uma identidade coesa, lidando com a fragmentação psíquica e os efeitos da alienação do Eu. A proposta é pensar como essas instabilidades internas se manifestam na construção do sujeito ao longo da vida.
As Múltiplas Faces do Eu
O conceito de Eu ocupa um lugar central em toda teoria analítica. A busca incessante por entender o “Eu” — quem sou eu, o que me define, de onde venho e para onde vou — é uma das questões mais fundamentais e, ao mesmo tempo, mais desafiadoras da psicologia humana.
O Eu não é uma entidade fixa e imutável, mas um complexo campo de tensões, fragmentações e reconstruções contínuas, marcado por um confronto com o outro, com o tempo, com as expectativas sociais e, principalmente, com o próprio inconsciente.
Desde a infância até a velhice, o Eu se reinventa, se distorce e, muitas vezes, se perde.
Em uma análise profunda e realista, esse “Eu” multifacetado revela suas falhas e contradições. O Eu perdido, o Eu passado, o Eu presente e o Eu confuso são construções psíquicas que se intercalam, se sobrepõem e se distorcem, gerando uma realidade psíquica muitas vezes desconcertante e difícil de compreender.
Este artigo se propõe a explorar o reconhecimento do Eu e as suas fraturas internas, utilizando uma abordagem analítica e filosófica para dissecação das nuances de uma identidade fragmentada e em constante transformação.
Alienação do Eu desde a infância
O reconhecimento do Eu é um processo dinâmico que começa, de forma mais explícita, no “estádio do espelho” de Lacan, quando a criança começa a identificar sua imagem no espelho e percebe a unidade de seu corpo como uma totalidade.
Porém, este reconhecimento é simultaneamente uma alienação. O sujeito se vê pela primeira vez como um ser separado e distinto do outro, mas a imagem refletida no espelho não é uma imagem fiel, é uma projeção que o sujeito internaliza como sendo ele mesmo.
O Eu que surge, portanto, é, desde o início, marcado por um abismo entre a imagem externa e a experiência interna. O sujeito jamais se vê completamente de forma coerente, mas apenas através de um reflexo imperfeito e idealizado.
Essa alienação inicial do Eu, onde o sujeito se reconhece e se perde na imagem refletida, configura uma realidade psíquica marcada pela fragmentação.
A importância do olhar do outro
O Eu, portanto, não é uma entidade coesa, mas uma construção que depende da relação com o outro e do olhar do outro. O olhar do outro — um conceito psicanalítico de Lacan — se torna crucial para a constituição do Eu.
É através deste olhar que o sujeito se enxerga e tenta se compreender, ainda que essa visão seja distorcida ou fragmentada.
A constante busca por aceitação e reconhecimento social faz parte dessa dinâmica, onde o sujeito está sempre se reinventando e se moldando para se adaptar às expectativas externas.
Fragmentação psíquica e perda da identidade
O Eu perdido é um tema recorrente nas discussões analíticas. Este Eu pode se perder de diferentes formas: por meio de traumas, da alienação emocional, das expectativas não atendidas ou da repressão psíquica.
Quando o sujeito experimenta um grande trauma — seja ele um abandono, um abuso ou uma perda significativa — a identidade pode se fragmentar.
O que antes parecia ser um Eu coeso e único começa a se desconstruir, e o sujeito, em busca de recuperar a sensação de totalidade, entra em um processo de busca incessante por algo que parece inalcançável.
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A falta e a desconexão do Eu
A perda do Eu pode ser associada ao conceito de “falta”, central na teoria analítica. A falta é uma condição existencial humana. O sujeito, desde o nascimento, é marcado pela ausência do que não pode ser plenamente alcançado ou integrado, e essa falta alimenta os desejos e os conflitos.
Porém, a perda do Eu pode ter um caráter patológico quando o sujeito perde a conexão com sua própria essência, se tornando refém de uma narrativa externa ou de uma identidade construída por outras pessoas.
Nesse processo, o sujeito vive uma alienação permanente, como se estivesse fora de si, tentando recuperar algo que já não pertence mais a ele.
Reconstruir a identidade coesa
Para muitos, o Eu perdido não é apenas a perda de uma identidade coesa, mas uma espécie de esquecimento ou aniquilação do próprio desejo e da própria autonomia.
O sujeito se perde em uma identificação com a narrativa de outros, seja a história que a sociedade lhe impõe ou a história que os outros esperam que ele viva.
A reconstrução do Eu perdido não se dá de maneira simples; ela exige um reencontro com o próprio desejo, uma retomada do que foi silenciado ou perdido, e um enfrentamento com os aspectos mais sombrios e reprimidos da psique.
O Eu passado e suas marcas
O Eu passado é o reflexo das experiências e das memórias que formaram a identidade do sujeito ao longo do tempo. O Eu não é uma essência fixa, mas uma construção que depende do tempo e das experiências vividas.
O passado psíquico não é um conjunto de fatos ou dados, mas um entrelaçamento de significados atribuídos a essas experiências.
Na regressão, o sujeito revive momentos passados e traumas não resolvidos, mostrando como o passado continua a influenciar o presente do sujeito.
O risco da idealização do passado
Em algumas circunstâncias, o sujeito pode viver de maneira idealizada ou fantasiada no passado, projetando nele uma identidade que não é mais possível de ser acessada no presente.
Esse processo de idealização do passado, no qual o sujeito tenta reviver ou manter intactas experiências passadas, pode ser extremamente limitante e impedir o desenvolvimento psíquico.
O nostálgico, muitas vezes, é um sujeito que se agarra a uma versão idealizada de si mesmo no passado, recusando-se a confrontar as perdas e mudanças que ocorreram.
A nostalgia pode ser tanto uma defesa psíquica quanto uma forma de fuga da realidade presente, onde o sujeito tenta recuperar uma identidade que acredita ter sido perdida.
Esse processo de fixação no passado impede o sujeito de se reintegrar e avançar, criando um impasse psíquico.
O Eu passado não é simplesmente uma memória, mas um filtro distorcido, uma construção que se refaz a partir das dores.
Instabilidade do Eu no presente
O Eu presente é aquele que está inserido em uma realidade em constante transformação. Porém, esse Eu é, frequentemente, marcado pela insegurança e pela incerteza, pois ele não é capaz de se integrar completamente com o Eu passado e o Eu idealizado.
Esse momento presente, como um reflexo fugaz no espelho, é percebido como uma instabilidade, uma fluidez que não consegue oferecer a sensação de totalidade e segurança.
Ao lidarmos com o Eu presente, enfatizamos a alienação constante do sujeito.
O sujeito está sempre dividido entre o que foi e o que poderia ser, nunca alcançando uma identidade plena e coesa. O Eu presente é o espaço da inquietação, onde o sujeito busca, muitas vezes de forma desesperada, alguma forma de integração, sem nunca se perceber totalmente integrado.
Confusão, papéis e alienação do Eu
O Eu confuso é uma das manifestações mais complexas da psique humana. Esse estado de confusão ocorre quando o sujeito não consegue mais distinguir claramente quem ele é, quais são seus desejos e qual é o papel que desempenha na sociedade.
Então, o Eu confuso é o reflexo da falta de alinhamento interno, da dificuldade em conectar as diversas partes do Eu com um sentido claro e coerente.
Esse estado de confusão pode ser desencadeado por múltiplos fatores: crises de identidade, falta de autoconsciência ou até uma desorientação causada pelas pressões externas da sociedade.
Nesse contexto, o sujeito se vê fragmentado, preso em uma multiplicidade de papéis e expectativas que não consegue integrar em uma imagem coesa.
O sentimento de vazio e de desamparo é predominante, pois o Eu se perde nas interações sociais e no reflexo distorcido das suas próprias necessidades.
Conclusão
O Eu, em sua multiplicidade e fragmentação, é uma construção dinâmica e inacabada, que se refaz constantemente.
O reconhecimento do Eu e sua relação com o passado, o presente e a confusão interna são elementos essenciais para a compreensão da psique humana. A busca por um Eu estável e coeso é, na realidade, uma busca pelo enfrentamento da alienação e da falta que marcam a condição humana.
Em última análise, a Psicanálise revela que o Eu é, paradoxalmente, tanto uma busca pela unidade quanto uma aceitação da fragmentação que faz parte de nossa existência.
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Karine Pellin é Psicanalista Clínica de orientação Freudiana, também possui formação em Direito e pós-graduação em Direito de Família e em Direito Sucessório, atuou como Conciliadora Extrajudicial no Juizado Especial Cível do Fórum de Lages/SC e no CEJUSC; atuou como especialista famíliar em vários escritórios de Advocacia. A sua formação multidisciplinar une o olhar jurídico ao analítico ao escopo profundo da Psicanálise, oferecendo reflexões sensíveis e embasadas sobre questões humanas, relacionais e familiares. Filha de Psicóloga, teve desde muito cedo contato com o universo da mente humana, o que levou a descobrir e se encantar pela Psicanálise – uma paixão que cresceu ao lado do seu gosto pela escrita. Apesar da sólida formação jurídica, foi na escuta clínica e na escrita que encontrou o seu verdadeiro caminho. Atualmente, atua exclusivamente como Psicanalista Clínica e Colunista, com diversos artigos publicados e outros em processo de publicação. O seu amor pela escrita é profundo quanto o seu compromisso com o cuidado emocional. Para entrar em contato pode acessar suas redes sociais; Instagram @karinepellin e email: [email protected]
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