Neste artigo, vamos analisar como as séries adolescentes retratam os intensos conflitos psíquicos vividos na juventude, destacando a presença do complexo de Édipo, os mecanismos de defesa e a construção da identidade. A partir das contribuições de Freud e Lacan, exploramos como essas narrativas audiovisuais se tornam espelhos simbólicos da experiência adolescente e seus desafios emocionais.
Introdução
Os filmes e séries adolescentes da Netflix tornaram-se um fenômeno cultural, capturando a atenção de milhões de jovens (e não tão jovens) em todo o mundo. Por trás das tramas envolventes, dos romances e das crises existenciais, existe um rico material para análise sob a ótica da psicanálise.
Essas narrativas, muitas vezes, espelham os complexos processos psíquicos que marcam a transição da infância para a vida adulta. Este artigo propõe um mergulho nas profundezas da psique adolescente retratada nas produções da gigante do streaming.
A adolescência, para a psicanálise, é um período de intensa turbulência e reorganização psíquica. É a fase em que o indivíduo se depara com o despertar da sexualidade genital, a necessidade de se separar das figuras parentais e de construir uma identidade própria.
Os filmes adolescentes da Netflix frequentemente exploram esses temas centrais, oferecendo um espelho para as angústias e descobertas dessa etapa crucial.
A Busca Incessante pela Identidade
Um dos pilares das narrativas adolescentes é a crise de identidade. Personagens lutam para entender quem são e qual o seu lugar no mundo. Do ponto de vista psicanalítico, isso reflete o trabalho do ego para mediar as pulsões do id (desejos instintivos), as exigências do superego (internalização de normas e valores) e as pressões da realidade externa.
Vemos protagonistas experimentando diferentes papéis sociais, questionando valores familiares e buscando modelos de identificação em seus pares ou em figuras idealizadas. A formação da identidade passa pela dolorosa, porém necessária, desidealização dos pais e pela construção de um ideal de ego mais autônomo.
O Drama Edípico Revisitado e a Separação dos Pais
Embora o Complexo de Édipo seja classicamente situado na infância, suas ressonâncias são fortemente sentidas na adolescência. O jovem precisa se desvincular simbolicamente das figuras parentais para poder investir libidinalmente em outros objetos de amor fora do núcleo familiar.
Conflitos com pais e mães, a rebeldia e o questionamento da autoridade são manifestações comuns desse processo. Os filmes frequentemente retratam essa dinâmica, mostrando adolescentes que desafiam as regras, buscam independência e, por vezes, entram em rota de colisão direta com seus genitores.
Essa “segunda edição” do Édipo é fundamental para a consolidação da identidade sexual e para a capacidade de estabelecer relações maduras no futuro.
O Despertar da Sexualidade e os Labirintos do Desejo
A Netflix não se furta a explorar a efervescência da sexualidade adolescente. As primeiras paixões, as descobertas sexuais, as inseguranças e os medos são temas recorrentes. A psicanálise entende a puberdade como o momento em que a libido, antes mais difusa, dirige-se predominantemente aos órgãos genitais e à busca por satisfação sexual.
As tramas revelam as dificuldades dos jovens em lidar com esses novos impulsos, a ansiedade de desempenho, o medo da rejeição e a complexa tarefa de integrar a sexualidade à sua identidade em formação.
A escolha objetal, ou seja, por quem o adolescente se sente atraído, também é um campo fértil para análise, muitas vezes refletindo buscas narcísicas ou tentativas de resolver conflitos internos.
O Grupo de Pares: Palco de Identificações e Rivalidades
O grupo de amigos assume uma importância vital na adolescência. Ele funciona como um espaço de transição entre a família e o mundo adulto, oferecendo suporte, validação e um laboratório para experimentações sociais. É no grupo que muitos adolescentes buscam o reconhecimento que sentem faltar em casa.
Mecanismos como a identificação projetiva (projetar aspectos de si nos outros e identificar-se com eles) e a formação de ideais coletivos são intensos. Contudo, o grupo também pode ser palco de pressões, exclusões e rivalidades, refletindo a ambivalência das relações objetais e a luta por um lugar de destaque ou aceitação.
As narrativas cinematográficas exploram habilmente essas dinâmicas, desde a formação de laços inquebráveis até as dolorosas traições e o bullying.
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Mecanismos de Defesa e a Elaboração de Angústias
A adolescência é inerentemente ansiogênica. As transformações corporais, as novas responsabilidades, as incertezas quanto ao futuro e as pressões sociais geram angústia. Para lidar com ela, o ego lança mão de diversos mecanismos de defesa.
Nos filmes, podemos observar personagens utilizando a negação (ignorar uma realidade dolorosa), a projeção (atribuir a outros seus próprios sentimentos indesejados), a racionalização (encontrar explicações lógicas para comportamentos impulsionados por desejos inconscientes) ou o isolamento (separar o afeto da representação de um evento).
As tramas, ao exporem esses mecanismos, permitem uma reflexão sobre como os jovens (e os adultos) lidam com seus conflitos psíquicos.
A Tela Como Espelho e Espaço de Elaboração
Os filmes e séries adolescentes da Netflix, quando analisados sob a ótica psicanalítica, revelam-se muito mais do que mero entretenimento. Eles funcionam como um espelho multifacetado das complexidades da psique adolescente, refletindo seus dilemas, angústias, desejos e processos de transformação.
Ao darem forma a conflitos internos e dinâmicas relacionais típicas dessa fase, essas produções podem oferecer aos jovens espectadores um espaço simbólico para a identificação e a elaboração de suas próprias vivências.
Para os adultos, revisitar essas narrativas através da lente psicanalítica pode proporcionar uma maior compreensão sobre os desafios enfrentados pelos adolescentes, facilitando o diálogo e a empatia.
Em última análise, o sucesso dessas produções reside, em grande parte, na sua capacidade de tocar em questões universais do desenvolvimento humano, tornando visíveis os dramas invisíveis que se desenrolam no palco da mente durante a intensa e transformadora jornada da adolescência.
O Olhar Freudiano e Lacaniano
As séries adolescentes contemporâneas, vastamente disponíveis em plataformas de streaming, transcendem o mero entretenimento ao oferecerem um espelho complexo e, por vezes, visceral das turbulentas vivências da juventude.
Sob um olhar psicanalítico, particularmente embasado nas teorias de Sigmund Freud e Jacques Lacan, essas narrativas revelam-se campos férteis para a análise dos processos de subjetivação, dos conflitos pulsionais e da incessante busca por um lugar no mundo que definem a adolescência. Esta resenha propõe decifrar algumas camadas dessas produções sob essa ótica.
O Palco Freudiano: Pulsões, Édipo e Defesas na Trama Adolescente
A obra de Freud oferece ferramentas cruciais para entender a dinâmica interna dos personagens adolescentes que vemos nas telas.
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A Efervescência Pulsional e o Primado Genital:
A adolescência, para Freud, é marcada pela maturação dos órgãos genitais e pela intensificação da pulsão sexual (libido) direcionada a objetos externos. As séries adolescentes exploram à exaustão este despertar: as primeiras experiências sexuais, a masturbação, os dilemas sobre orientação sexual, a curiosidade e a angústia em relação ao corpo e ao desejo.
O (Id) freudiano, com suas exigências pulsionais, parece dominar muitas cenas, enquanto o (Ego) luta para mediar essas forças com as demandas da realidade e as interdições do (Superego). Vemos personagens agindo impulsivamente, buscando prazer e, simultaneamente, lidando com a culpa e a vergonha.
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A Retomada Edípica e a Negociação com a Autoridade:
O Complexo de Édipo, central na infância, ressurge na adolescência de forma simbólica. O jovem precisa se desvincular das figuras parentais idealizadas, “matar” simbolicamente os pais da infância para poder investir em outros laços amorosos e construir sua autonomia.
As séries frequentemente retratam esse processo através de conflitos com pais e outras figuras de autoridade, a contestação de regras, a busca por independência e, por vezes, a idealização de novas figuras (um professor, um líder de grupo). A forma como o adolescente negocia essa reedição do Édipo e internaliza as leis (a função paterna, para além da figura do pai) é crucial para a formação do seu Superego e sua inserção no laço social.
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Os Mecanismos de Defesa em Ação:
A adolescência é um período de intensa angústia. Para lidar com ela, o Ego lança mão de mecanismos de defesa. As séries estão repletas de exemplos: a negação diante de uma perda ou de um sentimento difícil; a projeção de características indesejadas em colegas; a racionalização para justificar comportamentos de risco; a sublimação de pulsões através de atividades artísticas ou esportivas; ou o acting out, onde conflitos internos são expressos em ações impulsivas e, por vezes, destrutivas. Identificar esses mecanismos ajuda a compreender a lógica por trás de muitas atitudes aparentemente irracionais dos personagens.
O Espelho Lacaniano: Desejo, o Outro e o Real na Experiência Adolescente
Jacques Lacan, com seu retorno a Freud e sua ênfase na linguagem e no inconsciente estruturado como linguagem, expande nossa compreensão sobre a subjetividade adolescente retratada nas séries.
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O Estádio do Espelho e a Imagem de Si:
Embora o estádio do espelho ocorra na primeira infância, a questão da imagem e da identificação é crucialmente reeditada na adolescência. A preocupação exacerbada com a aparência, com o que os outros pensam, com a popularidade – temas onipresentes nas séries – reflete essa busca por uma imagem unificada de si, sempre mediada pelo olhar do Outro (colegas, família, sociedade).
As redes sociais, tão presentes nessas narrativas, funcionam como um espelho contemporâneo, onde o adolescente constrói e projeta uma persona, buscando reconhecimento e validação, mas também se confrontando com a fragmentação e a alienação.
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O Sujeito do Desejo e a Falta-a-Ser:
Para Lacan, o desejo nasce de uma falta fundamental (manque-à-être). O adolescente, ao se deparar com as insuficiências dos significantes que o representavam na infância, vivencia intensamente essa falta e lança-se na busca por algo que possa preenchê-la.
Os romances tórridos, as amizades fusional, a busca por causas ou ideais nas séries podem ser lidos como tentativas de obturar essa falta constitutiva. O desejo é sempre desejo do Outro – desejo de ser reconhecido, desejo daquilo que o Outro deseja ou daquilo que se supõe que o Outro possa lhe dar.
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O Encontro com o Real e a Angústia:
Lacan distingue o Simbólico (a linguagem, as leis), o Imaginário (as identificações, a imagem) e o Real (aquilo que escapa à simbolização, o impossível, o traumático). A adolescência é um momento privilegiado de encontro com o Real: a morte, a violência, a sexualidade em seu aspecto não idealizado, o fracasso dos ideais.
Muitas séries exploram esses encontros traumáticos e a angústia que deles emerge, mostrando personagens que se veem desamparados quando o véu simbólico-imaginário que sustentava suas realidades se rasga. Comportamentos de risco, como o uso de drogas ou a busca por sensações extremas, podem ser interpretados como uma tentativa de confrontar ou, paradoxalmente, de dominar esse Real.
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A Linguagem, o Grande Outro e os Discursos:
A inserção do adolescente no mundo adulto passa pela sua relação com a linguagem e com o grande Outro (o tesouro dos significantes, o lugar da lei e da cultura). As gírias, os códigos de grupo, a maneira como os personagens se nomeiam e são nomeados pelos discursos sociais (familiar, escolar, midiático) são fundamentais para a construção de suas identidades e para a sua posição no laço social. As séries mostram como os adolescentes negociam com esses discursos, ora se submetendo, ora os subvertendo.
Conclusão: Desvendando o Adolescente Seriado
Uma resenha psicanalítica da série adolescentes, com o aporte de Freud e Lacan, permite ir além da superfície das tramas. Essas produções, com seus dramas e dilemas, dramatizam a complexa tarefa psíquica do adolescente. A gestão das pulsões, a relação com a lei e o desejo, a construção de uma identidade sempre em devir e o confronto com a falta e o Real.
Ao exporem os mecanismos inconscientes que movem seus personagens, a série adolescentes pode, para o espectador atento, funcionar não apenas como entretenimento, mas como um convite à reflexão sobre a condição humana em uma de suas fases mais cruciais e enigmáticas. Elas nos lembram que, por trás de cada “drama adolescente”, há um sujeito em trabalho, lutando para advir.
Artigo Escrito por Rolf Steyer – Psicanalista