Fragmentação psíquica e memória intrauterina em foco: casos clínicos mostram como a hipnose acessa e transforma o inconsciente.

Fragmentação Psíquica e Memória Intrauterina: O Inconsciente em Casos Clínicos de Hipnose

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Neste artigo, acompanhamos três relatos clínicos impactantes que revelam como a hipnose terapêutica pode acessar conteúdos do inconsciente e promover a ressignificação de traumas profundos, como crises de pânico, memória intrauterina e fragmentação psíquica. A partir do diálogo entre hipnose e escuta psicanalítica, o texto nos conduz por caminhos de dor, escuta e transformação psíquica.

Este artigo é a continuação de “Hipnose Clínica e Mente Inconsciente: o Poder da Imaginação Simbólica na Cura Psíquica”, em que apresentamos as bases conceituais e os fundamentos da hipnose como ferramenta terapêutica. Agora, seguimos para a prática clínica, por meio de casos reais que mostram como a escuta e a técnica podem se unir para cuidar do sofrimento humano em sua raiz mais profunda.

Ansiedade e memória intrauterina

O pânico e a pressa de nascer

Então o Dr. Bonatti narrou um caso que lhe marcou profundamente e que aprendeu recentemente durante um minicurso de TRG (Terapia de Reprocessamento Generativo).

Era o caso clínico de uma paciente arquiteta, profissional competente, detalhista, mas que vivia sob o peso esmagador da ansiedade.

Sempre que um projeto se aproximava da entrega, ela entrava em colapso. Suava frio, tremia, tinha calafrios e crises de pânico. Repetia entre soluços:

— “Eu não consigo… não consigo. Tenho que ter pressa… Não dá tempo… Não consigo.”

Foi então que, em sessão de hipnose com regressão, permitiu-se mergulhar mais fundo.

Durante o transe, acessou uma memória intrauterina.

A cena era clara. Seus pais brigavam. A mãe, grávida, chorava. E o pai, em tom seco, ameaçava:

— “Se você não arrumar um emprego, não vai ter como sustentar esse bebê. Vai ter que desistir dele.”

Silêncio.

Na sala de atendimento, a atmosfera ficou densa.

Mesmo em transe, o corpo da paciente tremeu.

Aquela alma, ainda em formação, sentia o impacto da rejeição.

Naquele instante, a vida passou a ser uma corrida desesperada contra o tempo para provar que era capaz, que merecia existir, que dava tempo, que conseguiria viver…

Quando ela voltou ao estado consciente, ficou em silêncio por alguns segundos.

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— “Agora eu entendo… meu desespero não era pelo projeto. Era pela minha vida.”

Ressignificação e fragmentação psíquica

A pressa era para sobreviver. O medo de não dar tempo era o medo de ser interrompida antes mesmo de nascer. Era o medo de morrer…

Foi a partir dessa tomada de consciência — profunda, visceral — que a cura começou.

O sintoma perdeu a função.

Ela não precisava mais correr contra o tempo.

Ela já estava viva. E estava segura e, agora, podia acolher-se com amor.

O professor Luciano e o Dr. Bonatti olharam um para o outro, sem falar nada. O silêncio não era vazio, mas cheio de sentido.

Entre eles, havia-se criado um espaço sagrado, um setting analítico ampliado, onde já não havia dois profissionais conversando, mas dois inconscientes que mergulharam juntos na alma do mundo.

Cláudia e a síndrome do pânico

Após o Dr. Bonatti narrar o caso da arquiteta e o silêncio ter selado aquele instante de profundidade, o Professor Luciano recostou-se levemente na poltrona. Respirou fundo, como quem busca nas próprias memórias o fio de uma história que merece ser contada.

— “Isso me faz lembrar de Cláudia” — disse ele, com voz pausada. — “Professora universitária. Jovem, brilhante, cheia de títulos… mas que vivia acorrentada a um sofrimento invisível.”

Em silêncio, o Dr. Bonatti fez anotações discretas em sua agenda.

— “Ela também sofria de crises de pânico. Daquelas avassaladoras. Começavam com uma leve tontura, depois um suor frio, coração disparado, medo da morte, medo de enlouquecer. Precisava fugir, mas não sabia de quê.”

O Professor Luciano ajustou lentamente os óculos no nariz e acrescentou:

— “Cláudia procurou-me porque, quando a crise surgia, sentia uma sensação forte de que ia morrer. O coração palpitava forte, ela ficava insegura e com medo, sentia frieza e tremor em todo o corpo. Tomava remédio, mas não ficava boa… e não sabia a causa do seu sofrimento. Era algo essencialmente inconsciente.”

O Professor Luciano sabia que o inconsciente de Cláudia conhecia a causa do seu pânico — afinal, ele registra tudo, sendo o arquivo onde as memórias são armazenadas —, e que era necessário ressignificar aquele trauma para libertá-la da dor.

Durante a regressão hipnótica, iniciou-se um diálogo inconsciente entre o professor e sua paciente:

— “Estou no útero da minha mãe e estou escutando um grito.”

— “Quem está gritando e por quê?”

— “Minha mãe.”

— “Por que sua mãe está gritando?”

— “Porque o meu pai deu um tapa nela.”

— “O que você está sentindo?”

— “Pânico!”

— “Cláudia, qual é a sua idade neste exato momento?”

— “Tenho entre dois e três meses, estou no útero da minha mãe.”

— “Cláudia, olhe para sua mãe e diga-me onde ela está, como ela está.”

— “Está na cozinha, chorando.”

— “Qual é a roupa que sua mãe está usando?”

— “É um vestido branco, com bolinhas coloridas.”

A linguagem simbólica e a sugestão hipnótica

O Professor Luciano começou a interpretar o que estava acontecendo:

— “O inconsciente transcende o espaço e o tempo. Assim, no útero materno, ela via e sentia tudo o que estava acontecendo ao seu redor, inclusive com sua mãe…

O inconsciente registra tudo, sabe, por exemplo, se seus pais se amam ou não. Tudo fica gravado na memória inconsciente, com repercussões na vida futura da pessoa… Por isso Cláudia sabia que sua mãe estava na cozinha chorando.”

— “E o que você sugeriu para Cláudia?” — perguntou, curioso, o Dr. Bonatti.

— “Sugeri-lhe visualizar uma imagem, para gerar uma emoção forte que possibilitasse uma reconciliação entre seus pais.”

— “Mas isso é uma mentira!” — exclamou, indignado, o Dr. Bonatti.

— “Uma mentira, em terapia, não é uma mentira. É uma sugestão hipnótica.”

— “Como assim?” — insistiu o Dr. Bonatti, cruzando os braços, ainda desconfiado da ideia.

O Professor Luciano manteve-se calmo, com aquele olhar de quem já escutou muitas histórias improváveis que, no fundo, eram profundamente verdadeiras.

— “Veja, doutor… o inconsciente não distingue o que de fato aconteceu daquilo que foi simbolicamente vivenciado. Ele não reconhece o passado nem o futuro — é atemporal —, e também não percebe o espaço — não sabe se algo está longe ou perto, aqui ou ali. O que importa não é a factualidade, mas o efeito psíquico.”

— “Quer dizer que criar uma cena imaginária pode ter o mesmo impacto de uma lembrança real?” — refletiu o Dr. Bonatti em voz alta.

— “Exatamente. Quando pedi à Cláudia que visualizasse os pais se reconciliando, não era para negar a dor da infância, mas para oferecer à psique uma nova via de elaboração. Uma nova experiência emocional corretiva. Ela precisava de uma memória simbólica capaz de reescrever o roteiro de abandono.”

O Dr. Bonatti respirou fundo. Começava a compreender.

— “Então, o que chamamos de mentira é, na verdade, uma intervenção simbólica.”

— “Isso. A verdade, em terapia, não é apenas o que aconteceu. É também o que precisa ser sentido para curar.”

Silêncio.

Dessa vez, o Dr. Bonatti não retrucou. Apenas fez uma anotação mental — dessas que não se escrevem no papel, mas que mudam para sempre a forma de olhar algo ou alguém.

Trauma, delírio e fragmentação psíquica

Milena e o Demônio

— “Você acredita em demônio?” — perguntou de repente o Professor Luciano, quebrando o silêncio do consultório.

— Acredito que existam pacientes com sintomas psicóticos, quadros de fragmentação do eu, dissociação da personalidade, várias paranoias, esquizofrenia… e algumas estruturas perversas,” — respondi, cauteloso, tentando entender para onde ele queria levar a conversa.

Sabia do passado do professor: foram dezessete anos dedicados ao ministério sacerdotal, até que decidiu deixá-lo para se casar com Homéria — com quem, aliás, parecia estar bem feliz.

— “Você está prestes a abrir uma discussão teológica sobre o Anticristo?” — brinquei, meio desconfiado. — “Vai começar a caçar demônios com ritos de exorcismo?”

— “Nada disso, sossegue.” — disse ele, com um leve sorriso. — “É apenas o caso de uma paciente… uma jovem senhora chamada Milena.”

“Hum, que caso interessante…”, pensei, curioso.

— “Milena estava possuída, virava um demônio, falava com voz grossa de um homem, era agressiva, dizia que era satanás, que não tinha medo de ninguém e que ia devorar todos!” — exclamou a mãe dela com voz trêmula. “O psiquiatra fez um diagnóstico de esquizofrenia e prescreveu remédios de caixa preta” — acrescentou o marido da paciente.

A dor herdada no útero materno

O professor Luciano conduziu Milena a uma regressão hipnótica, guiando-a suavemente até a fase intrauterina. A respiração dela se tornou mais lenta, os olhos cerrados expressavam uma contração profunda. Em transe, sua voz mudou de tom — agora frágil, quase infantil.

— “Está escuro… eu tô aqui… mas tem algo errado… minha mãe tá com medo… alguém grita… meu pai, acho… ele diz que não quer mais saber… que essa criança vai estragar tudo… Está dizendo que esta criança é o diabo!”

— “Quem está na tua barriga é o diabo!” — gritou o pai para a mãezinha repetidas vezes durante a gravidez, apontando o dedo para a barriga dela.

O Professor Luciano permaneceu em silêncio, permitindo que o inconsciente de Milena falasse sem censura. As palavras vinham como flashes emocionais: intensos, brutos, ainda vivos.

Ela revivia, do lado de dentro, o abandono e o desamparo emocional da mãe — sentimentos que haviam se impregnado nela como uma marca invisível, uma sombra, mesmo que a mãe a amasse, o pai a rejeitou.

Aquele “demônio” que tanto a atormentava talvez fosse apenas o eco emocional de um trauma primário do próprio pai, registrado antes mesmo do nascimento.

Integração de eus e missão de vida

Milena nasceu e, quando jovem, manifestou o que estava impresso e incorporado no lado mais profundo do seu inconsciente: “ser diabo”, como disse seu pai.

— “O que aconteceu com o Eu de Milena? A rejeição do pai e aquela crença negativa se tornou real na vida futura?” — perguntei ao professor, desejando uma explicação mais detalhada.

— “Milena manifestava duas personalidades: Dois Eus” — explicou o Professor, e acrescentou: — “o primeiro Eu consciente, era aquela de uma mulher normal, que se casou, trabalhou e tinha uma vida inteira e que refletia o amor materno; o segundo Eu, inconsciente, que aflorava durante as crises, trazia à tona as agressões sofridas durante a gravidez e refletia o ódio e a rejeição paterna.”

— “E então?” — perguntei, impaciente. — “O que aconteceu quando ela despertou do transe?”

— “Ela entendeu que aquele ‘mal’ que carregava não era dela… era uma dor herdada, introjetada no útero,” — disse o professor.

— “Portanto, a esquizofrenia foi uma reação… o mecanismo de defesa de Milena?” — exclamou o Dr. Bonatti, com expressão de quem acabava de montar uma peça importante do quebra-cabeça.

O Professor Luciano assentiu levemente, como quem confirma algo óbvio, mas difícil de aceitar:

— “Sim. O delírio era a linguagem que o inconsciente encontrou para suportar o insuportável. A fragmentação psíquica foi a forma de proteger a parte dela que ainda queria viver.”

Houve um silêncio respeitoso entre os dois. Era como se estivessem diante de algo sagrado, não no sentido religioso, mas existencial. Aquilo que toca a alma humana em sua dor mais primitiva.

— “E a hipnose permitiu reorganizar isso?” — perguntou o Dr. Bonatti.

— “Isso permitiu acessar a origem, desvendar a causa primária, simbolizar a dor e reescrever emocionalmente aquela memória. Não há mágica — mas existe a verdade psíquica do paciente, que precisa ser desenterrada. Depois disso, os pesadelos deixaram de atormentá-la. E o sentimento de culpa e rejeição que corroía Milena deu lugar a uma nova permissão: a de viver a vida.”

Marco Bonatti é escritor e Doutor (PhD) em Psicologia Social – Universidad Kennedy (UK), de Buenos Aires. Pós graduação em Relações Internacionais na Universidad Autónoma de Valencia, España. É Analista Reichiano do Corpo e do Caráter (IBRACS), Psicanalista Clínico (IBPC), Hipnoterapeuta (NAVE) e colunista do IBPC (Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica), em São Paulo. WhatsApp: +55 (85) 99426-3190 / E-mail: [email protected] / Telegram: @DrMarcoBonatti

Luciano Furtado Sampaio é Psicanalista Clínico e Hipnoterapeuta. Licenciado em Teologia e Mestre em Filosofia (UFMG). Professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), professor da Sociedade Contemporânea de Psicanálise (SCOPSI) e membro do Comitê de Ética. Presidente do Núcleo de Apoio à Vida em Expansão (NAVE) e da Sociedade de Hipnose do Estado do Ceará (SHC). WhatsApp: +55 (85) 9972-6153 / E-mail: [email protected] / Instagram: @lucianosampaiohipnologo / Site: www.lucianosampaio.com.br

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