Neste artigo, vamos explorar como os jogos digitais passaram de entretenimento a uma ameaça à saúde mental, contribuindo para o avanço do disorder gaming e o agravamento do transtorno de jogo em escala mundial. A análise percorre dados, sintomas, critérios diagnósticos e possibilidades de tratamento, evidenciando como o vício em jogos compromete a vida psíquica, social e física de milhões de pessoas.
O desafio do transtorno de jogo
No momento que enfrentamos no mundo todo um estresse crônico, onde existe uma hiperexposição nas redes sociais, uma pressão por desempenhos, fragilidade de vínculos, uma situação de vazio geral, crises de pânicos e ansiedades, aprofundamento de depressões, angústias existenciais e os jogos se firmam em meio ao colapso geral de referências.
As BET´s se apresentam com celebridades, recursos são drenados. Vamos tentar responder a seguinte indagação: Por que os jogos assumiram uma vanguarda muito forte e poderosa diante de patologias do ‘eu’? A seguir, na introdução vamos analisar os tópicos selecionados para exame.
Nosso primeiro passo vamos analisar o transtorno de jogo (disorder gaming) no CID-11.
O disorder gaming no CID-11
Com a reforma do CID-10, da OMS/ONU, foi introduzido no CID-11, que já está em vigor, várias mudanças, sendo uma delas, o ‘transtorno de jogo’.
Porém, permanece no DSM-5/TR (Texto Revisado) da APA (Associação de Psiquiatria Americana), do qual o Brasil é signatário, tudo o que se refere a este transtorno. Porém, será preciso uma revisão rumo ao futuro DSM-6, porque o conceito do transtorno de jogos mudou com o advento do mundo digital e se transformou numa patologia (doença) muito grave.
Para corroborar essa premissa temos o seguinte dado: em 2017, mais de 2 bilhões de pessoas fizeram uso frequente de jogos eletrônicos, sendo 205 milhões deles latino-americanos. Nos EUA estimam que 160 milhões de adultos estão jogando nas telas eletrônicas digitais. É um metadado assustador.
Nos EUA o disorder gaming (transtorno do jogo) se transformou numa ‘epidemia’, milhares de pessoas viciadas em jogos eletrônicos. Nos demais continentes não é diferente, porque é uma mazela mundial.
CID, OMS e o reconhecimento da compulsão
Importante salientar que o CID (Classificação Internacional), vinculada à OMS/ONU, serve para registrar e relatar condições de saúde e relacionadas à saúde glo-cal, ou seja, global mas local, local mas global. CID garante a interoperabilidade dos dados digitais de saúde e sua comparabilidade, e contém doenças, distúrbios, condições de saúde.
Como o tema é muito sério e grave, foi formulada a categoria e inclusa como bem especificada no catálogo do CID porque já existem evidências fortes e suficientes da existência dessa condição de saúde, ‘disorder gaming’, motivada por compulsão, vício sério, que se transformou num transtorno.
Vamos examinar esse transtorno a seguir.
Características clínicas do transtorno de jogo
O transtorno de jogo, chamado nos EUA de ‘disorder gaming’, é definido no CID-11 (Classificação Internacional de Doenças) da OMS/ONU como um padrão de comportamento de jogo digital ou vídeo (tela) caracterizado por compulsão de controle, tendo como proeminência o crescente vício a ponto do jogo ter precedência sobre outros interesses e atividades diárias, com sua intensificação com geração de consequências negativas cumulativas.
Entretanto, vale salientar bem que esse transtorno tem critérios para ser diagnosticado: tem que ser um padrão de comportamento cumulativo, que vai se agravando passo a passo, o suficiente para resultar em comprometimento significativo do funcionamento psíquico normal de uma pessoa pessoal, na sua constelação familiar, social, educacional, ocupacional ou outras dimensões importantes da rotina da vida. Normalmente, deve ser evidente de pelo menos de 6 a 12 meses.
Esta foi a motivação que levou à inclusão dessa transtorno no CID-11, ou seja, a observação do fenômeno baseado nas evidências disponíveis que refletiram um consenso de especialistas de diferentes disciplinas e regiões geográficas que participaram do processo de consultas técnicas realizado pela OMS durante o desenvolvimento da CID-11.
Necessidade de diagnóstico e tratamento especializado
Demonstraram a necessidade de padronizar o transtorno de jogo e também a premência de programas de tratamento para pessoas com condições de saúde idênticas àquelas características do transtorno de jogo em muitas partes do mundo, que paulatinamente resultou em maior atenção dos profissionais de saúde aos riscos de desenvolvimento desse transtorno que virou uma síndrome inicialmente, e que requer medidas relevantes de prevenção e tratamento.
Diferente das pessoas que jogam de forma lúdica normal, o que foi observado nos jogos de telas (digitais ou vídeos) são as anormalidades, como por exemplo, a quantidade de tempo que dedicam aos jogos, sua relação com as demais atividades diárias da rotina existencial, e o prejuízo físico, psicológico e do funcionamento social.
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O que pesou muito na configuração do fenômeno do disorder gaming foram os sintomas, que vamos examinar.
O desafio dos sintomas que geram o vício em jogos
Os sintomas analisados por especialistas ao formularem o conceito de disorder gaming incluíram desde a questão do estoque de tempo envolvido como seus efeitos, gerando crise por abstinências forçadas, de interrupção, com a geração de tristeza, ansiedade, irritabilidade, intolerância e, o ponto chave, a necessidade de passar mais tempo jogando para satisfazer o desejo.
Observaram especialistas que a pessoa que sofre de disorder gaming não fica preocupada mais com o tempo, se desconecta da realidade, porque quer jogar e jogar, muitas vezes ficando até 72 horas sem dormir jogando no computador ou mesmo no celular, o que gera um quadro de ansiedade.
Muitos jogos eletrônicos (de tela) apresentam eventos ou desafios com prazos definidos, o que causa inevitavelmente ansiedade à medida que os jogadores se sentem compelidos a concluir os desafios.
Em casos de reação familiar face a gastos excessivos de energia elétrica e pulsos, tentam achar meios de desligar o aparelho, ou não pagar a conta, ou criar panes propositais, o que redunda em surtos e até danos.
Comportamento compulsivo e consequências
O surtado quebra tudo porque é tomado pela raiva de não conseguir continuar a jogar, vindo de quadros graves de insônias. Passa dias e noites encerrado, não toma sol, se alimenta de forma precária. O desejo é jogar e jogar.
Importante frisar bem que, quando a pessoa sofre de compulsão, há um descontrole dos neurotransmissores e o cérebro associa alívios de prazer, onde quanto mais o jogador jogar, mais irá acionar neurotransmissores — um deles, dopamina — que o cérebro secreta, e existe uma sensação de alívio.
Muitos familiares desconhecem os mecanismos, mas querem acabar com a situação, adotando medidas físicas radicais, como desligar o disjuntor, ou não pagar mais a fatura da operadora dos pulsos, ou ainda vendendo inesperadamente o equipamento, ou danificando algum componente, na esperança de romper com a situação.
Em muitos casos, a situação se agrava. Vivenciam-se os critérios crescentes do transtorno, onde ficam impotentes para lidar com a situação. E muitos países estão ainda completamente despreparados para este fenômeno crescente. E outros, como o Brasil, estimulam mais os jogos via marketing.
Critérios do transtorno de jogo
Antes de examinar esse tópico, importante destacar que o código desse fenômeno no CID-10 era F63 e consta como jogo patológico. Já existia anos anteriores a concepção de mania de jogo e apostas, dos jogos de azar, como a carpeta, a roleta, por exemplo.
O tema se agravou com o advento do mundo digital e das telas. Assim sendo, com novas revisões dos códigos, houve a inclusão dos games (jogos) eletrônicos que entram na lista de distúrbios de saúde mental com a nomenclatura “Distúrbio de games” (Gaming disorder). Esta foi, digamos assim, a inovação.
Os sintomas começam a aparecer com a crescente prioridade da pessoa aos jogos, deixando de lado outros interesses que eram fortes. Começa a ocorrer danos na vida da pessoa, que transparecem a terceiros, ou seja, são constantemente observados.
Impactos crescentes e sintomas clínicos
O primeiro deles: a duração do tempo da pessoa na tela jogando, que ultrapassa horas e horas; a frequência nas sessões; e uma continuidade com o vínculo em jogos, onde aparecem, passo a passo, consequências negativas que vão impactando a vida da pessoa. Isso tem sido uma padronização universal.
Embora não seja uma dependência química como é a cocaína e maconha, por exemplo, o modus operandi que afeta a pessoa tem sido meio que similar. A pessoa passa a ser dependente da tecnologia via telas. Os intervalos de tempo em jogo são crescentes.
Outro sintoma complicado, clínico: uma eventual tentativa de abstinência causa irritação, ansiedade, insônia, tremores, surtos, raiva. Enfim, são indicadores de que a pessoa está viciada em jogo, ou melhor, está com o transtorno de jogo ou disorder gaming.
Porém, não para por aí a situação. Muito já vem de quadros associados com uso de drogas químicas (cocaína e maconha). Alguns começam a tomar metilfenidato, como ritalina, ou chamados ‘rebites’ ou ainda, energéticos combinados para vencer 24 a 48 horas e até 72 horas de jogo ininterrupto.
Perda de controle e colapso físico e emocional
O comportamento vicioso compulsivo fica evidente. Obviamente, isso vai repercutir no futuro tratamento até medicamentoso (alopático) via prescrições de psicofármacos, porque a pessoa não aguenta mais a condição.
Muitos casos vão requerer necessariamente a internação clínica face ao alto grau de compulsão. Passa a existir uma perda de controle. A pessoa não consegue mais limitar o tempo de jogo. Na sua vida, o jogo passa a ser a prioridade 1, se tornando mais importante que outras coisas.
Passa a existir uma continuação do comportamento apesar das situações negativas. A pessoa vai continuar a jogar sempre, mesmo quando sabe que o jogo está causando problemas, como perda de sono, dificuldades escolares ou acadêmicas, problemas de relacionamento, entre outros.
Haverá uma mudança de comportamento, com quadros de ansiedade, irritabilidade, tristeza, frustrações ao perder, crise financeira, busca de empréstimos financeiros. A impulsividade aumenta, assim como a agressividade ou isolamento social.
Repercussões na saúde e relações sociais
A saúde física começa a ficar afetada por se alimentar muito mal, muitas vezes com tele-entregas, não tomar sol, ficar encerrado dias e dias em quartos, obesidade, problemas de visão, dores musculares, depressão, baixa autoestima, notas baixas na escola ou faculdade, separação, falta de comunicação, necessidade de ficar jogando mais tempo, incapacidade de reduzir jogos, abandono de todos demais interesses e necessidades.
O repertório da pessoa fica encapsulado, engano familiar com mentiras (sofismas), estado de animus afetado, possível perda de emprego e renda, o que agrava mais o quadro, pois não terá luz, água, pulso, equipamento — o que levará a um colapso e surto.
Vamos examinar um possível tratamento.
Tratamento possível e remissão parcial
O tratamento pode incluir terapia comportamental, análise, tomada de consciência com medicamentos e outras abordagens que visam ajudar a pessoa a desenvolver estratégias para controlar o jogo e tentativas, algumas malsucedidas, de tentar parar de jogar com a possível busca do resgate da qualidade de vida que ficou à deriva pela apatia da pessoa na fase mais aguda do jogo.
A remissão (cura) nunca será total. O risco de recidiva ou reincidência é muito grande na compulsão para o disorder gaming (transtorno de jogo).
Existem casos de jogos a dinheiro em que a pessoa realiza empréstimos ocultos e fica encalacrada em dívidas. O tratamento medicamentoso tem sido uma opção face ao crescimento da concepção da psiquiatria bioquímica com marcadores e neuropsiquiatria com uso dos psicofármacos.
Porém, requer uma visão de interface, sendo algumas delas inter, pluri, multi e transdisciplinares com uma rede de apoio.
Perspectivas clínicas e diagnósticas sobre o vício em jogos
Face ao todo acima exposto, pesquisas demonstram que já existem muitos tratamentos seguros e eficazes para o enfrentamento do vício em jogos usando plataformas de telas digitais e eletrônicas.
O vício em jogos descrito no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5-TR) da Associação Psiquiátrica Americana, utilizado por profissionais de saúde mental, merece uma modificação, pois ainda não está alinhado com o que já prescreve o CID-11, que evoluiu muito nesse campo com a concepção do disorder gaming baseado em evidências.
Em que pese já exista uma concepção do TGI, ou seja, Transtorno do Jogo na Internet, incluído em recomendações para uma futura pesquisa juntamente com a questão do transtorno do uso do café (cafeína) e outras condições, o futuro DSM-6 irá contemplar plenamente essa situação que está cada vez mais grave, em escala mundial.
A gravidade da situação brasileira
Em especial no Brasil, onde está ficando muito sério e gravíssimo a questão do jogo nas telas, o uso pesado e intenso de cocaína, de maconha, álcool, estimulantes, psicofármacos, tabaco.
Com relação aos jogos, disorder gaming, vamos ofertar uma resposta à questão problematizada nos seguintes termos: Por que os jogos assumiram uma vanguarda muito forte e poderosa diante de patologias do ‘eu’?
Muito importante destacar que existem relatos que no Brasil os portadores de disorder gaming (transtorno de jogo, também já chamado de TGI) são pessoas que se isolam, ficam o dia todo no computador, dormem mal, não tomam sol, comem alimentos sob encomenda (tele-entregada) e ingerem rápido, não conversam com familiares, não se exercitam, perdem o contato com a programação geral da rotina, não olham mais telejornais, ficam apáticos e insensíveis, de mau humor e irritados.
Impactos comportamentais e sociais
Existem relatos também de uma tendência do transtorno, que já vem sendo uma síndrome, se expandir com o vício nas telas. O celular tem sido um dos vetores; as pessoas não conseguem mais ‘desmamar’ do aparelho e ficam dependentes e obsessivas.
Muitas separações de casais por causa do celular. Tendem a usar constantemente o aparelho, até em restaurantes. A disciplina de uso fica suprimida e se instala uma situação de apatia.
Por fim, o país ainda está despreparado em termos de primeiros socorros com casos de surtos, insônia profunda e em termos de espaços em clínicas para este tipo em especial de patologia.
E as famílias não conseguem enfrentar a situação de fuga psicológica do transtornado com jogos. O maior risco são os jogos com apostas financeiras, onde muitos estão fazendo até mútuos (papagaios) e se encalacrando cada vez mais no fosso dos jogos digitais e dilapidando patrimônios e reservas financeiras.
Já é um consenso de que no futuro o governo, cabeça pensante do Estado, terá que se posicionar via parlamentos com diplomas legais (leis) para tentar impor limites e caminhos no enfrentamento de mais esta mazela que, ao lado dos vícios em drogas e alcoolismo, se transformaram em grandes desafios para os operadores das ‘ciências Psi’.
Considerações finais e perspectiva política
E ainda vivemos um momento de hiper exposição social, muito narcisismos, fragilidade de vínculos, colapsos de referências, um mundo muito acelerado e onde o dinheiro e status passaram a ser o já-provisório e a filosofia de marketing do aqui-e-agora com teoria das opções.
Entretanto, existe uma indução forte de marketing pros jogos financeiros, onde muitos estão atolados em dívidas, inadimplentes, na esperança de um dia ganhar ou recuperar o que perdeu.
Uma situação muito dramática no case brasileiro.
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Edson Fernando L Oliveira é formado em Psicanálise, com PG Psicanálise, atualmente cursando PG em Psicofarmacologia. Contato: [email protected]