Este artigo pretende oferecer uma breve reflexão sobre a obra “A Repetição: Um ensaio em psicologia experimental”, escrita por Søren Kierkegaard. Nesta obra, Kierkegaard mergulha nas profundezas da subjetividade humana, explorando o conceito de repetição em uma perspectiva existencial.
Ao longo do texto, a repetição será analisada não apenas como um retorno ao passado, mas como uma jornada de autodescoberta de si-mesmo. Para entender melhor esse conceito, a temática será explorada no contexto da construção da identidade individual e a compreensão da própria existência.
Reflexões sobre a Repetição na Filosofia de Kierkegaard
“A Repetição: Um ensaio em psicologia experimental” é uma obra escrita por Søren Kierkegaard, filósofo dinamarquês que viveu no início do século XIX, obra publicada em 1843 sob o pseudônimo Constantin Constantius. O subtítulo, “um ensaio em psicologia experimental”, indica que o texto aborda a repetição de uma maneira existencial.
Nesse contexto, o termo psicologia deve ser compreendido como a uma parte da filosofia que explora questões relacionadas à “alma”. Embora faça parte da tradição filosófica, essa abordagem se diferencia dos tratados tradicionais porque adota uma perspectiva experimental, onde são representadas individualidades e situações subjetivas, destacando o aspecto psicológico da repetição.
O enredo se desdobra em duas partes: na primeira, acompanhamos um jovem que propõe casamento a uma moça, ela aceita, mas ele depois muda de ideia, enfrentando conflitos internos intensos. Constantin Constantius, seu “psicólogo”, analisa o caso, oferecendo conselhos enquanto conduz uma investigação sobre a repetição.
A repetição na narrativa
Nessa parte, Constantin também relata uma viagem a Berlim, tentando vivenciar uma situação repetida. Na segunda parte, vemos uma troca de cartas entre Constantin e o jovem apaixonado, onde este último revela uma influência profunda do personagem bíblico Jó, o que acrescenta novas camadas de significado à ideia de repetição na narrativa.
É importante destacar que, nesta obra, o filósofo dinamarquês aborda o tema não de forma sistemática ou conceitual, mas através da comunicação indireta, como é característico de sua filosofia, centrada no homem e suas experiências existenciais.
Kierkegaard utiliza pseudônimos para criar personagens que enfrentam diversas situações, refletindo assim os conflitos e dilemas humanos. Essa abordagem, como explicam Jorge Miranda de Almeida e Álvaro Valls, dois especialistas da filosofia de Kierkegaard, permite que as vivências dos personagens sirvam como espelhos para as complexidades da condição humana.
A linguagem da abstração
O caminho da comunicação indireta, com a ênfase no sujeito existente, traduz a ideia de que para Kierkegaard o pensamento sistemático e conceitual está em oposição a uma compreensão mais profunda da própria vida, pois a existência não pode ser reduzida a fórmulas de qualquer espécie.
Desse modo, a existência e a linguagem da abstração apresentam-se como duas realidades diversas. Somente a linguagem indireta é capaz de captar a existência, o que, para Kierkegaard, se traduz em tornar-se um indivíduo singular.
Assim, ao explorar as diferentes situações enfrentadas pelos personagens de sua obra, Kierkegaard investiga as conjecturas psicológicas que moldam as várias formas de repetição. Isso ajuda a definir a importância da repetição, seu significado e, consequentemente, os diversos sentidos da narrativa em si.
Recordação e repetição: O problema da temporalidade
Na obra, Constantin Constantius aborda o problema da repetição à luz de uma questão antiga na história da filosofia: a questão da passagem do tempo. Ele argumenta que, para quem tem algum conhecimento da filosofia moderna e não é totalmente ignorante sobre a filosofia grega, é evidente como essa categoria esclarece a relação entre os Eleatas e Heráclito.
Basicamente, ele está discutindo a diferença entre o que muda e o que permanece constante, entre o que é temporal e o que é eterno – entre o ser e o vir-a-ser.
O pseudônimo usado no início da história destaca a diferença entre lembrança e repetição: “A ‘repetição e recordação são o mesmo movimento, apenas em direção oposta; pois aquilo que se recorda, foi, repete-se para trás; enquanto a repetição propriamente dita é recordada para diante” (KIERKEGAARD, p.32, 2009).
Lembranças
Tanto lembrança quanto repetição tentam dar sentido à vida. Mas lembrança é voltar ao passado – todo conhecimento seria como lembrar algo mecânico. Repetição, por outro lado, é olhar para o futuro, começando de novo da mesma maneira, mas em novas circunstâncias.
A palavra “repetição”, segundo Nelly Viallaneix, vem do dinamarquês: Gjentagelsen. No entanto, seria mais adequado traduzi-la como reprise ou retomada, pois repetição sugere a rigidez do hábito, fazer o mesmo repetidas vezes. Por outro lado, retomada significa um novo começo, uma vida nova, sempre eu, mas sempre diferente, a cada momento. Neste início da obra, a repetição é vista em oposição à recordação.
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A repetição é lembrar algo que já aconteceu, simplesmente repetir o mesmo; enquanto a retomada traduz algo sempre novo. É importante notar que, nesse processo, a retomada é como uma operação lenta que leva a um momento repentino de compreensão, de emergência de sentido.
Repetição e Subjetividade
Com base nessas reflexões, a obra se desdobra, como já dito anteriormente, com o diálogo entre Constantin Constantius e o jovem apaixonado. Nessas conversas, vemos a primeira exploração da repetição, especialmente no dilema enfrentado pelo jovem, que deseja se casar com uma moça – compromisso com o casamento – mas não quer abrir mão de sua liberdade artística.
De acordo com Oswaldo Giacoia, Kierkegaard examina o conflito entre o desejo individual de ser único e a obrigação moral de seguir regras universais. Em outras palavras, o impasse se enraíza nas questões estéticas e éticas da vida.
A reflexão sobre a repetição, nesse primeiro contexto, surge como uma questão sem solução clara, em uma linguagem filosófica, apresenta-se como aporia . Constantin percebe que o jovem não estava realmente apaixonado, mas o amor era apenas uma fonte de inspiração poética para ele, e a noiva era apenas um objeto que estimulava sua criatividade.
Uma nova abordagem
Nesse sentido, a incerteza que domina a mente do jovem é se esse amor fugaz, uma lembrança em movimento dentro dele poderia ser revivida, ou seja, experimentado novamente em uma repetição ou retomada.
Em outras palavras, a questão levantada é se o amor passageiro, que inicialmente serviu como inspiração artística para o jovem, poderia ser revivido ou experimentado novamente, não apenas como uma simples repetição do mesmo sentimento, mas como uma retomada significativa ou uma nova abordagem.
O cerne da questão levantada por Kierkegaard é se é possível uma repetição que vá além dos limites convencionais. Nesse sentido, uma verdadeira repetição não estaria relacionada apenas aos eventos externos, à interpretação abstrata das circunstâncias ou às mudanças pessoais, mas sim a uma perda única e pessoal.
O racional
Esta experiência não se limitaria ao racional, mas traria consigo uma transformação profunda na pessoa, alterando sua compreensão do mundo e de si mesma.
De modo geral, a obra discute um movimento que aponta para as possibilidades de mudança e crescimento pessoal. É como se o ser humano pudesse explorar diferentes caminhos para se tornar quem ele é, discutindo sobre como ele pode se tornar verdadeiramente único e individual ao repetir ou retomar certas experiências.
Em outras palavras, nas obras de Kierkegaard, a relação do indivíduo consigo mesmo ao longo da vida é vista como o ponto em que ele constrói sua identidade pessoal.
Conclusão sobre a repetição
A repetição, portanto, está relacionada sobre como vivenciamos a jornada de escolhas que nos levam a nos tornar quem queremos ser: é encontrar novos significados, não apenas reviver o passado como uma lembrança, mas sim uma experiência que nos reconecta com nossa verdadeira essência – é construir quem realmente somos.
A filosofia de Kierkegaard, conforme observado por Jorge Miranda de Almeida e Álvaro Valls, foca no indivíduo comprometido em transformar sua própria realidade, ou seja, no diálogo interno de cada um consigo mesmo, a cada momento, em cada escolha.
Para o filósofo dinamarquês, essa escolha sempre ocorre na subjetividade, que por sua vez contribui para a formação do indivíduo. Este artigo sobre a repetição foi escrito por William Vieira dos Santos: possui graduação em Letras e Psicanálise pelo IBPC e atualmente está se graduando em Filosofia, além de ser bacharelando em Ciências e Humanidades pela Universidade Federal do ABC. Suas pesquisas concentram-se no diálogo entre Psicanálise, Filosofia e Literatura.