o menino que escrevia

O Menino Que Escrevia (Mia Couto): um olhar psicanalítico

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Este breve texto busca refletir, a partir da perspectiva psicanalítica de Freud, sobre a diferença entre razão e racionalização, tendo como base o conto “O Menino que Escrevia Versos” de Mia Couto.

A intenção do texto é explorar como nossas visões de mundo podem decorrer de processos de racionalização impulsionadas por motivações inconscientes.

Entendendo sobre o menino que escrevia

A Racionalização, no contexto da psicanálise freudiana, é entendida como um dos mecanismos de defesa do ego. Segundo Freud, o ego atua como mediador entre os impulsos do id, as normas morais do superego e as demandas da realidade, buscando equilibrar essas forças conflitantes para satisfazer os impulsos do id de maneira socialmente aceitável.

Os mecanismos de defesa, nessa dinâmica, são ações inconscientes que preservam o equilíbrio do ego diante dessas forças em conflito, auxiliando-o a lidar com pensamentos perturbadores, conflitos emocionais e situações ameaçadoras.

A racionalização ocorre quando alguém procura oferecer explicações lógicas ou racionais para comportamentos ou motivações inconscientes. Wilson Castelo, em “Defesas do Ego“, esclarece que a racionalização não é uma invenção consciente de motivos, mas uma escolha inconsciente, na qual algumas justificativas são selecionadas enquanto outras inaceitáveis são relegadas ao esquecimento.

A racionalização e o menino que escrevia

É crucial destacar que racionalização não equivale a pensamento racional. A diferença reside no fato de que o uso da razão busca ponderar situações, ideias ou pensamentos para chegar a uma atitude mais coerente, enquanto a racionalização, motivada pelo inconsciente, representa uma estratégia subjetiva para lidar com diversos conflitos psíquicos.

No cotidiano, essa defesa pode manifestar-se de diversas maneiras. Entre elas, uma muito comum é a postura analítica ou teórica, usada para justificar ou negar um conflito sem propor caminhos de mudanças. Para ilustrar esse processo, Mia Couto, expoente da literatura africana, escreveu um conto chamado “O Menino que Escrevia Versos”, que pode servir como um excelente exemplo para diferenciar os processos de racionalização e o pensamento racional.

A narrativa gira em torno de um menino que escrevia versos, ou seja, poemas. No entanto, quando o pai do menino descobre, decide retirar o filho da escola, justificando a ideia de que o garoto estava estudando demais, envolvido com más companhias e que tudo não passava de uma mariquice intelectual.

Motivações inconscientes

Essa primeira interferência do pai na trama já sinaliza indícios de processos de racionalização, cuja justificativa intelectual era interromper os estudos do menino. Na verdade, essa postura pode ser interpretada por motivações inconscientes que decorriam da aversão ao talento artístico do menino que escrevia poesia.

Mia Couto, no contexto da trama, apresenta o pai do garoto como um mecânico que, em virtude desse ofício, interpreta o mundo sempre numa linguagem lógica dos automóveis. Em outras palavras, o pai do menino apresenta uma postura que interpreta a existência a partir de um universo de sentido consolidado ou fixo, sem se abrir para outros mundos, fechando-se nas possibilidades daquele horizonte de significação.

Devido a isso, o pai, insatisfeito com a decisão de retirar o filho da escola, decide levá-lo ao médico para tratamento. Ao chegar ao consultório, o pai descreve aos médicos o comportamento de seu filho, comparando-o à rigidez das dinâmicas do funcionamento de uma máquina.

A cômica sobre o o menino que escrevia

Ele expressa aos médicos a necessidade de uma “revisão geral”, tanto na parte mecânica quanto na elétrica, além de verificar o nível do óleo na “figadeira”. O principal objetivo é resolver a situação embaraçosa que afeta a família.

Esse comportamento, à luz da teoria psicanalítica, pode ser interpretado como uma forma de racionalização, uma maneira de lidar com sua aversão e ansiedade em relação às escolhas artísticas de seu filho, visto que essa racionalização incorria na defesa de sua visão de mundo.

Mia Couto, de forma irreverente e cômica, neste curto conto, aborda situações bastante comuns em nosso cotidiano. Ele focaliza a postura de várias pessoas que se fecham em uma visão de mundo específica, sem considerar outras perspectivas, e que frequentemente criticam o que é diferente do seu pensamento, mesmo sem um entendimento adequado do assunto em questão.

As defesas psicológicas

Esse mecanismo de defesa aponta para aspectos inconscientes, como defesas psicológicas que ameaçam suas opiniões e a segurança de sua coesão interna. Mas é preciso ressaltar que essas motivações inconscientes podem ser variadas, pois estariam ligadas à história pessoal de cada indivíduo. Alguns motivos comuns são:

  • Insegurança sobre suas próprias crenças e convicções.
  • Falta de experiências pessoais com outras visões de mundo, levando as pessoas a criarem estereótipos e preconceitos.
  • Pressão dos grupos aos quais as pessoas pertencem, gerando a necessidade de se alinhar à maioria.
  • Resistência a mudanças devido ao desconforto e às angústias que essa experiência pode causar.
  • Ignorância e falta de autoconhecimento, pois muitas vezes isso ocorre pela incapacidade de avaliar os limites da falta de conhecimento, confundindo críticas superficiais com ideias elaboradas.

A postura do médico, por sua vez, pode servir de exemplo do uso coerente da razão. Ao analisar os fatos, examinando cada relato e, no final, os versos do próprio menino, reconhece a complexidade de cada um e sugere a internação do menino.

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    Um talento para a poesia

    O que aparentemente parecia uma constatação de que o menino precisaria de ajuda médica para mudar seu comportamento, mas, na verdade, o médico o internou porque constatou que era um caso de um garoto que tinha um talento ímpar para poesia.

    O conto termina com as palavras de Mia Couto dizendo:

    “Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:

    — Não pare, meu filho. Continue lendo…”

    Conclusão sobre o menino que escrevia

    Apesar do tom cômico do conto, ele proporciona uma reflexão profunda sobre diversos aspectos de nossos comportamentos. Muitas vezes, nos fechamos por motivos variados, sendo conduzidos por motivações inconscientes.

    Além disso, ele destaca a possibilidade de servir como exemplo de um uso ponderado da razão, como demonstrado pela postura coerente do médico. Este, ao analisar a situação, não exclui o outro, mas, de forma compreensiva, o auxilia na jornada de descoberta de suas próprias riquezas.

    Este artigo sobre a obra “O Menino Que Escrevia” (de Mia Couto) foi elaborado por William Vieira dos Santos: possui graduação em Letras e Psicanálise pelo IBPC e atualmente está se graduando em Filosofia, além de ser bacharelando em Ciências e Humanidades pela Universidade Federal do ABC. Suas pesquisas concentram-se no diálogo entre Psicanálise, Filosofia e Literatura.

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