Conviver e lidar com problemas mentais certamente é uma experiência complexa e bastante difícil de ser vivenciada. Frequentemente pessoas que estão com esse tipo de problema se encontram a mercê do mesmo, correndo o risco de passar a vida com a sua percepção da realidade inteiramente alterada, originando assim, curiosos casos de estudo. É um desses casos que trabalharemos hoje na análise do caso Schreber, estudado por Freud.
Este caso é um fundamental dos estudos de Freud. Foi publicado sob o título “Notas Psicanalíticas Sobre Um Relato Autobiográfico De Um Caso De Paranoia” (Freud, 1911), realizado a partir da leitura de Memórias de um Doente dos Nervos (1903). Este livro de 1903 foi escrito por Daniel Paul Schreber, pessoa que Freud nunca conheceu pessoalmente.
Schreber relatou que sofreu distúrbios nervosos severos por duas vezes “e ambas resultaram de excessiva tensão mental”. Teve episódios de insônia, hipocondria, ideias de perseguição e hiperestesia. Em cenários agudos, foram registradas ocorrências de delírios alucinatórios e ânsia pela morte. Este quadro não era acompanhado de sinais de déficit de inteligência ou de memória.
Segundo Freud, “O ponto culminante do sistema delirante do paciente é a sua crença de ter a missão de redimir o mundo e restituir à humanidade o estado perdido de beatitude”.
Freud situa, em suas interpretações, que muitos detalhes do caso de Schreber poderiam estar faltantes no livro de Schreber, em qual o estudo baseou-se. Para o caso Schreber, Freud irá propor uma interpretação baseada:
- nas palavras reiteradas por Schreber,
- na interpretações de seus sonhos, temores e desejos,
- em aspectos de sua sexualidade e
- na formação familiar de Schreber, em especial a relação com seu pai.
Sobre o caso de Schreber
Nascido em Leipzig, Alemanha, em 25 de julho de 1842, Daniel Paul Schreber era um ótimo jurista e escritor. Contudo, o que chama atenção aqui é a sua autodescrição dos delírios psicóticos que experimentava. Embora fosse até então visto como lúcido, seu status de presidente do tribunal de recursos não o protegeu.
A inteligência admirada se mostrou tão indefesa quanto ele quando as suas graves perturbações tiveram início. Por conta disso que como escritor decidiu escrever Memórias de um doente dos nervos, relatando sua condição mental em 1903. Através daí acreditou que poderia contribuir para uma pesquisa científica a respeito do distúrbio sofrido.
Daniel dizia com segurança que a sua razão permanecia intacta, ainda que sofresse sensivelmente dos nervos. Bem, seu propósito foi atingido e até o momento o trabalho em questão é revisitado com frequência. O caso Schreber marca um ponto interessante de estudo, chamando a atenção do próprio Freud para ampliar a compreensão sobre o mesmo.
A essência do problema
Como aberto linhas acima no caso Schreber, Daniel tinha uma vida próspera e feliz até onde podia se ver. Era um homem responsável na família e próspero no trabalho, recebendo o cargo de juiz-presidente na corte de apelação. Porém, pouco tempo depois começou a manifestar sinais de uma paranoia grave e absurda olhando de fora.
Diagnosticado com dementia paranoides, seu delírio o levou a acreditar que estava para se tornar a mulher de Deus. Por mais louco que isso seja, toda a sua vida passa a se concentrar nesse aspecto esquizofrênico. Ainda assim, foi capaz de lidar com isso com certa consciência para transcrever a sua experiência numa publicação autobiográfica.
Em Memórias de um doente dos nervos conseguiu validar a sua sanidade e contestar os argumentos levantados em tribunal sobre. Isso o permitiu aproveitar da liberdade sem qualquer interferência legal no seu cotidiano por um tempo.
O caso de Schreber na perspectiva freudiana
A publicação do caso Schreber para Freud tem a ver diretamente com a história de desenvolvimento social de Daniel. O psicanalista afirmou que a revolta dele contra Deus se liga com a figura paterna e a sua homossexualidade recalcada. Sendo isso a base do delírio, o amor transformado em ódio serviu de combustível para o surgimento paranoico.
Com isso, Freud afirmou que o surgimento desse delírio foi uma espécie de tentativa de cura. Em suma, Schreber queria um consolo para a morte do pai, algo que o tirasse daquela dor. Nesse caminho, a figura de Deus na sua percepção delirante seria o seu próprio pai que também interferia na sua sexualidade.
Assim como em outros trabalhos, Freud foi criticado pela abordagem utilizada para estudar o material de Schreber. Ida Macalphine e Richard Hunter, os responsáveis pela tradução inglesa do livro, foram os principais críticos. Fazendo um prefácio no material, apontaram uma negligência do psicanalista quanto as ideias educacionais do pai de Daniel.
Sinais
Os sinais se diferenciam dos sintomas porque eles podem ser percebidos por outras pessoas além do paciente em questão. No caso Schreber há relatos conectados a respeito do comportamento do escritor, incluindo do próprio ao se analisar. As expressões mais evidentes experimentadas por ele são:
Insônia
O mesmo passava bastante tempo sem dormir, algo que comprometia gradativamente a sua estabilidade mental. A ausência ou mudanças no sono pode interferir diretamente na apresentação ou mesmo desenvolvimento dos outros problemas.
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Angústia
Dada à realidade que projetou, acreditar estar se transformando em mulher era algo desesperador para a psique de Daniel. O mesmo carregava um trejeito inquietante e bastante preocupado a respeito das imagens que costumava ver e imaginar.
Hipocondria
Existia uma preocupação pertinente a respeito da própria saúde, mesmo sem motivo aparente para isso. A rotina de Schreber envolvia ritos sociais e psíquicos para tratar algo que não existia mesmo que em possibilidade.
Alucinações
O mesmo experimentava vivências alucinatórias provocadas pela natureza delirante do problema que apresentava. Por meio disso que criava as imagens e visões absurdas de si mesmo sendo tocado ou transformado em outras existências.
Ideias sobre a morte
Acreditava que estava sendo perseguido por criaturas além da compreensão e que queriam transformá-lo física e essencialmente. O aspecto mais visível era a ideia de que estava sendo transformado em mulher para ser a esposa de Deus.
Relevância
A leitura do material de o caso Schreber propõe uma abertura de pesquisa detalhada para estudo. Por meio disso temos uma descrição detalhada a respeito do fenômeno psicótico que amarrou Daniel. Ao mesmo tempo em que a vivencia, o paciente tenta lidar com a crise para que possa prosseguir na vida.
Mesmo que nem todos a abracem, a perspectiva de Freud serve como ampliação para entendermos o caso. Isso rendeu o Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia, de 1911. Por conta do caso que refinou ainda mais a visão psicanalítica sobre a natureza e desenvolvimento da psicose.
O trabalho em questão ajuda a crescer a visão em relação a uma mente que está adoecida. Boa parte do material contido já é conhecido, mas ainda carrega um ótimo valor científico.
Movimentos e sensibilidade interna
O caso de Schreber ganha uma camada interessante pelo próprio paciente ter sido capaz de relatar sobre a sua doenças. Através disso conseguimos acompanhar um movimento crescente e contínuo no seu relevo mental. Nos níveis extremos da doença ele descreve sobre:
Vozes
O próprio autor relata sobre as vozes que ouve, denunciando o aspecto esquizofrênico do seu problema. Existe uma comunicação aqui entre elas e as visões, criando relações confusas em sua cabeça. Usando palavras claras, dois deuses estariam trabalhando para tornar sua realidade cada vez mais difícil.
Ilusões
Tais entidades estariam operando sobre ele dia após dia, mudando a sua forma natural. Lentamente o transformando em mulher, retiravam partes do seu corpo para ativar a sua transição. Sem contar no estímulo dos seus “nervos de volúpia”, o excitando.
Milagres cotidianos
Apesar do nome, isso diz respeito aos empecilhos vivenciados por ele no seu cotidiano. Comumente algo saia da normalidade e que o incomodava bastante, sendo chamado de “milagre” pela natureza divina disso. Ou seja, os deuses estariam dificultando a sua vida.
Uma vista mediúnica
Era notável e surpreendente a capacidade de escrita e expressão registradas no material de o caso de Schreber. Com isso temos uma descrição sensível sobre problemas mentais de um paciente consciente de sua situação. Por conta disso que alguns espiritualistas encontram semelhanças entre as visões relatadas com a religião em questão.
De acordo com eles, indivíduos com capacidades mediúnicas altas, mas sem instrução, podem acabar internados. A sensibilidade gigantesca impede de compreendam a si mesmos e que os demais possam executar a mesma tarefa. Tais vozes descritas carregam um encaminhamento parecido com o conceito espírita, abrindo margem ao imaginário.
Entretanto, não queremos afirmar com convicção sobre o caso Schreber envolver mediunidade ou não. Mostra-se precipitado indicar que ele era mesmo um sensitivo sem direcionamento e que isso tenha causado sua doença mental. Ainda assim, esse tipo de abordagem serve de analogia para refletir a respeito de aspectos lógicos e observáveis.
Considerações finais sobre caso Schreber
O caso Schreber se tornou famoso por sua natureza única de existência e desenvolvimento, algo bastante peculiar. Tanto o seu conteúdo, quanto o desenrolar do caso provocaram certa comoção pela forma como isso foi construído. Afinal, a afirmação sobre entidades divinas mudando seu gênero, naquela época, traria uma repulsa imediata da medicina.
Porém, o fato do próprio paciente, com coesão, relatar seu delírio é o que mais impacta para avaliação. Com maestria e excelência pontual, Daniel descreveu a sua situação da forma como pôde e contrariou julgamentos sobre sua sanidade. Tanto que o próprio Freud e outros se sentiram atraídos a darem suas perspectivas para elucidar melhor todo o caso.
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4 thoughts on “O caso Schreber analisado por Freud”
Gratidão. Foi muito útil este resumo.
Grande caso analisado por Freud
Grata pelo resumo, foi de suma importância para consolidar as informações sobre o caso! 🙂
Bem interessante, pois foi um caso narrado pelo próprio acometido por alucinações. Isso pode significar que o esquizofrênico não fica totalmente desconectado do ambiente em que ele está.