ouro de tolo Raul Seixas

Ouro de Tolo: análise da música de Raul Seixas

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Vamos reproduzir a letra da música Ouro de Tolo, de Raul Seixas, analisando-a ao olhar da psicologia e da psicanálise.

Ouro de Tolo, Raul Seixas e o Fantasma de Lacan

Tradicionalmente, a expressão “ouro de tolo” se refere à pirita, o dissulfeto de ferro. Este mineral, que possui um formato composto por múltiplos hexágonos que lembra a pepita de ouro (bem como sua cor dourada), recebeu esse nome por enganar diversos mineradores em busca de riqueza na chamada “corrida do ouro” que afetou a região central do Brasil (as “Minas Gerais”) no século XVIII.

No entanto, “Ouro de Tolo” também é o nome de uma canção muito famosa de Raul Seixas que todo mundo sabe cantar, mas não sabe o seu nome. Afinal, a expressão “Ouro de Tolo” não aparece nenhuma vez na melodia.

Você pode ouvir a canção nesta gravação: Ouro de Tolo (Raul Seixas), gravação disponibilizada no Youtube.

Vamos a ela, antes de ver como ela pode nos ajudar a entender um conceito muito importante, o de “fantasma”, de Jacques Lacan:

“Eu devia estar contente

Porque eu tenho um emprego

Sou o dito cidadão respeitável

E ganho quatro mil cruzeiros por mês

Eu devia agradecer ao Senhor

Por ter tido sucesso na vida como artista

Eu devia estar feliz Porque consegui comprar um Corcel 73

Eu devia estar alegre e satisfeito por morar em Ipanema

Depois de ter passado fome por dois anos

Aqui na Cidade Maravilhosa

Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso

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    Por ter finalmente vencido na vida

    Mas eu acho isso uma grande piada E um tanto quanto perigosa

    Eu devia estar contente por ter conseguido tudo o que eu quis

    Mas confesso abestalhado que eu estou decepcionado

    Porque foi tão fácil conseguir e agora eu me pergunto ‘E daí?’

    Eu tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar

    E eu não posso ficar aí parado

    Eu devia estar feliz pelo Senhor ter me concedido o domingo

    Pra ir com a família no Jardim Zoológico dar pipoca aos macacos

    Ah! Mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado

    Macaco, praia, carro, jornal, tobogã

    Eu acho tudo isso um saco

    É você olhar no espelho

    Se sentir um grandessíssimo idiota

    Saber que é humano, ridículo, limitado

    Que só usa dez por cento de sua cabeça animal

    E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial

    Que está contribuindo com sua parte para o nosso belo quadro social

    Eu é que não me sento no trono de um apartamento

    Com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar

    Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais

    No cume calmo do meu olho que vê assenta a sombra sonora dum disco voador”

     

    Quem foi Raul Seixas e o sucesso desta canção

    Nascido em uma família de classe média em Salvador (Bahia, Brasil) em 1945, teve contato com o rock’n’roll em seus primórdios escolares graças ao conhecimento e a oportunidade de aprender inglês no Colégio Interno Marista. Após algumas tentativas nos anos 1960, Raul Seixas faz sucesso nacional em 1973 com o disco “Krig-ha, Bandolo!”, onde a música “Ouro de Tolo” era o carro-chefe.

    Na época, para veículos como à Folha de S. Paulo (junho/1973) e à Revista Amiga (julho/1973), Raul declarou que o verso final teria geral toda a inspiração, ou seja, de que ele teria tido uma meditação vespertina onde teria visto um disco voador na Barra da Tijuca, localizada no Rio de Janeiro, no dia 7 de janeiro do mesmo ano. Com o passar dos anos, os críticos musicais viram consequências maiores para essas afirmações.

    Opiniões sobre a música Ouro de Tolo

    Em 2018, André Barcinski, comemorando os 45 anos da música, considerada por ele a obra-prima do pop brasileiro, em seu blog, diz que “a primeira coisa que impressiona em “Ouro de Tolo” é a contraposição da placidez da música com a violência do texto.

    A canção é uma baladinha doce, que Raul envenena com uma letra destruidora sobre a mediocridade dos sonhos do cidadão médio brasileiro (…) Cada vez que se relê a letra de “Ouro de Tolo”, encontra-se nuance e mistério: que tal o verso “Eu devia estar contente por ter conseguido tudo o que eu quis“?

    Se Raul conseguiu tudo que quis, por que continuava insatisfeito? Que epifania o fez mudar de ideia? E as alusões autobiográficas ao período de dureza que passou no Rio (“fome na Cidade Maravilhosa”), depois de vir de Salvador para trabalhar em gravadora? É curioso também Raul dizer que teve “sucesso na vida como artista”, quando nenhum de seus discos anteriores havia vendido nada. É Raul ironizando Raul.”

    Por isso, esta música é bastante poderosa, inclusive aos dias atuais. Claro que podemos gostar de sua melodia ou mesmo do humor sarcástico dessa letra. No entanto, parte de sua “verdade” pode ser entendida pela psicanálise. Afinal, “Ouro de Tolo” talvez seja uma das melhor músicas já escritas sobre a lógica da fantasia que Jacques Lacan bem descreveu na ideia de “fantasma”.

    O Fantasma de Lacan e a canção de Raul Seixas

    Na construção da lógica da fantasia antes do seminário 11, explicando as questões do desejo e de seus objetos, Jacques Lacan nos apresenta um matema (uma expressão algébrica que explicaria o funcionamento do inconsciente) que ele chama de “fantasma”.

    Esse matema é composto pelo sujeito dividido pelo desejo (representado por um $), uma ligação (posto por um losango ◇ ) e o “pequeno objeto a” (representado pelo a mínusculo). Esse “$◇a”, o fantasma, mostraria a relação do sujeito com o seu objeto de desejo (que, por sua vez, é um pequeno semblante do Outro), indicando uma ligação tênue e fugidia. Afinal, tal como o dito popular nos afirma, “a grama do vizinho sempre é mais verde”.

    Assim, Raul Seixas em “Ouro de Tolo” indica essa dança de “pequenos objetos a” para um sujeito dividido (o “eu lírico” da música) onde nenhum deles causa verdadeira satisfação. O avanço de “pequenos objetos a” é tamanho que vai do mais banal (“estar contente com um emprego”) até o mais surreal (a visão da “sombra sonora dum disco voador”).

    A música “Ouro de Tolo” indica esse desejo que é conseguido, porém, nunca desfrutado. Curioso que isso acontece também com a pirita, mineral que inspirou o nome da canção de Raul Seixas.

    Afinal, já foi provado que, em muitas piritas, além do dissulfeto de ferro, havia também ouro. Tinha ouro, apenas não tinha na quantidade desejada pelo minerador. Tal como nós quando conseguimos um objeto de desejo, mas não era tudo aquilo que queríamos…

    Este artigo sobre a canção Ouro de Tolo (Raul Seixas), interpretada pela via da psicanálise, foi escrito por Rafael Duarte Oliveira Venancio ([email protected]). É escritor e dramaturgo, psicanalista e psicoterapeuta, professor e mentor. Pós-doutor pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), sendo Doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela mesma instituição. Suas peças de teatro e de radioteatro foram encenadas em três línguas em três países, tendo como temas mais frequentes a ficção e reimaginação histórica, a metadramaturgia, a história do futebol e demais esportes, e o storytelling filosófico e psicanalítico.

    8 thoughts on “Ouro de Tolo: análise da música de Raul Seixas

    1. Sílvia Raquel Barbosa de Almeida disse:

      “Longe das cercas embandeiradas que separam quintais”, significa as milhares e milhares de igrejas evangélicas que defendem suas placas e são verdadeiras facções religiosas!

    2. Romilson Rodrigues Pereira disse:

      Boa história sobre a música e sobre a vida de Raul.
      Porém, a relação com o “fantasma” de Lacan pode não ter nada a ver ou pode ter tudo a ver. Ou seja, é mera especulação, entrando no campo da transcendência e, assim, se distanciando de Lacan e se aproximando de Raul, e seu esoterismo pop.

    3. Jefferson Luis da Silva disse:

      Como eu queria que Raul estivesse aqui explicado realmente as nossas dúvidas, e escrevendo outra nova sobre ,..

    4. Olá. Só gostaria de dizer que tenho uma absurda identificação com absolutamente todos os versos dessa letra, parece a minha história sendo escrita. Assim, toda vez que a ouço, ao mesmo tempo sofro mas também consigo me entender um pouco mais.

    5. Mizael Carvalho disse:

      Muito boa análise sobre a poesia !

    6. É óbvio que o significado desta música é um arrependimento de Raul por ter feito pacto como diabo.
      “Ah!
      Eu devia estar sorrindo
      E orgulhoso
      Por ter finalmente vencido na vida
      Mas eu acho isso uma grande piada
      E um tanto quanto perigosa”
      O vencer na vida que ele se refere, é quanto ao fato de ele ter vendido a sua alma e ter conseguido o sucesso que ele queria.

      Podem perceber que o mesmo escreve Senhor com letra maiúscula:
      “Eu devia estar feliz pelo Senhor
      Ter me concedido o domingo
      Pra ir com a família
      No Jardim Zoológico
      Dar pipoca aos macacos”
      Senhor aqui, é o demônio que o concedeu a dádiva de passar o domingo com a família.

      “Ah!
      Eu é que não me sento
      No trono de um apartamento
      Com a boca escancarada
      Cheia de dentes
      Esperando a morte chegar”
      Aqui ele faz alusão ao trono que ele recebeu por ter se juntado a Lúcifer. A boca cheia de dentes se refere a estar nos últimos momentos de sua vida, se delfinhando. Mas a única coisa que lhe resta é esperar a morte.

      ESTA É A INTERPRETAÇÃO CORRETA!

    7. O cantor e autor talvez quis interpretar nossa busca por sempre mais e poder, que depois não desfrutamos por falta de tempo, ou vontade, ou até disposição para dividir.
      As cercas embanderadas, os territórios que construímos ao redor de nossos semelhantes, que engloba toda e qualquer forma de divisão que o ser-humano criou.

    8. A música é uma revolta do próprio autor, pois ele não admite ficar assim neste mundo. Tentando passar sua visão que na época, não se preocupava com nada disso, pois as prioridades eram outras. Ele jhá sentia isso em sua mente e alma. Resultado, a escrita para compartilhar conhecimentos .

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