sintoma como aliado

O sintoma como aliado e a doença como padrão-ritual do recalcado

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No texto de hoje falaremos sobre o sintoma como aliado. Segundo o dicionário Michaelis, o termo sintoma, entre outros significados, se refere a “Qualquer sinal de perturbação orgânica ou psicóloga”.

Já o Aurélio, após descrever alguns traços sintomáticos associados a doenças comuns, acrescenta: “Numa acepção mais extensa, ato que consiste na manifestação de modificações orgânicas ou funcionais”.

O sintoma como aliado

A respeito dos dicionários específicos da Ciência Psicanalítica, faço notar que o Dicionário de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, porquanto em algumas partes da obra se refira aos sintomas, está desprovido de um verbete específico. Da mesma maneira, o Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis, não inclui um verbete peculiar sobre este importante conceito, cujas manifestações podem ser fisiológicas, psicossomáticas ou meramente psíquicas.

Pessoalmente, em meus atendimentos, utilizo uma metáfora, ou melhor, uma analogia, segundo a qual, o sintoma é como uma daquelas plantas parasitas que costumam provocar tanta dor de cabeça em quem tem um quintal, uma horta, um sítio, ou mesmo alguns jarros de plantas na varanda do apartamento. Falo nisso porque já briguei muito com uma trepadeira (por sinal, muito bonita), uma planta das pequenas flores rosa, que popularmente está associada ao ninho de algum tipo de cobra.

Essa mesma! Antes de me separar da mãe de meu filho, lá na casa onde eles moram, eu vivia removendo a parte visível desta planta, que regularmente, após dois ou três dias, surgia de novo, mas numa proporção maior.

Psicossomáticos e os sintoma como aliado

Eu removia os “talos” que emergiam por cima da grama, e ela, após alguns dias, aparecia novamente. Então, finalmente resolvi chamar uma empresa de jardinagem. Lembro que um rapaz cavou quase um metro, e lembro que havia raízes múltiplas, tipo uma raiz se comunicando com outra raiz, e assim por diante, até chegar a uma raiz-mor, a mais profunda e a maior de todas. De lá para cá, a planta parasita nunca mais apareceu no jardim da casa de meu filho.

Costumo fazer esta analogia já a partir da primeira sessão (claro, após ouvir o paciente e sua queixa), para explicar como funcionam os sintomas psíquicos, ou psicossomáticos, e que debaixo da superfície há um conjunto análogo de raízes menores, por sua vez conectadas com uma raiz maior. Trata-se, enfim, de um padrão, uma estrutura.

No âmbito da Teoria Psicanalítica, podemos pensar no conceito de “ganho secundário”. Pois bem, para os leigos, ou iniciantes, “ganho secundário” se refere à “intenção positiva” da perturbação ou transtorno psicopatológico. Como assim, “intenção positiva?”. Toda e qualquer perturbação tem uma intenção positiva.

A mente consciente

Falo em “intenção”, já que, evidentemente, o resultado não aparenta ser “positivo”, e tanto menos agradável. A aflição decorrente do transtorno, efetivamente, não traz sensações positivas ou amenas, todavia, insisto, a intenção da perturbação traz em si algo positivo. Por isso que ela existe. Só que a positividade permanece velada para a mente consciente, já que se trata de um mecanismo inconsciente.

Por essa e por outras, nos meus atendimentos, e principalmente, nos primeiros encontros, após ouvir o paciente, tento explicar, ainda que sucintamente, o dualismo que constitui o aparelho psíquico. A parte consciente, explico sem cansar, é como a unha de um dedo da minha mão.

O resto do dedo, os outros dedos, a mão, o pulso, o antebraço, o braço, o ombro e tudo mais, bem, tudo isso é inconsciente. Às vezes, caio no erro de explicar de vez a distinção entre pré-consciente e inconsciente profundo. Faço isso movido por um quixotesco instinto de preservar a pureza e profundidade da teoria freudiana, contra as modas e tendências atuais, que notadamente tentam matar o discernimento de Freud, ao juntar pré-consciente e inconsciente numa só noção meio vaga chamada de subconsciente! Como se eles fossem a mesma coisa!

O sintoma como aliado e Freud

Sim, nem tudo que Freud teorizou ainda vale nos dias de hoje, e ele mesmo se retratou sobre algumas questões, porém, que haja uma espécie de armazém das memórias de médio e longo prazo chamado por Freud de pré-consciente, e um inconsciente mais insondável (pelo menos por vias diretas), isso permanece uma verdade científica, por sinal corroborada pela Neurociência, embora, ao invés de “pré-consciente”, se utilize a expressão sistema límbico e, particularmente, os neurocientistas se refiram às amígdalas. Feita essa ressalva, explico minimamente como funciona o aparelho psíquico porque percebi que o paciente sai mais aliviado, já que, notadamente, o ser humano teme o desconhecido, sobre tudo aquele que habita dentro dele.

Explico também que a mente racional (a unha) é analítica, crítica, julgadora. Ressalto que precisamos dela, que precisamos de um lado racional, mas que não podemos nos identificar apenas com ele. Porque a maior parte de nosso aparelho psíquico é, de fato, inconsciente, ou seja, é o continente (submerso) do emocional (o dedo, a mão, o antebraço etc.).

Dito isso, voltemos ao ganho secundário. Ele não é consciente, logo, não adianta tentar compreender por meio da razão analítica. Não é por aí que a gente vai conhecer e compreender o que há debaixo da superfície de nossa psique. Explico também que, se a pessoa quer ficar “boa”, precisa aprender a conhecer este “outro” que habita dentro dele, este “desconhecido” interior, que longe de ser algo aleatório, tem um logos peculiar, diferente do logos racional, mas não por isso um não-logos.

A natureza emocional

É um logos distinto, de natureza emocional (e espiritual), que, enquanto tal (logos), tem sua lógica, seu modus operandi, e também, sua linguagem, uma linguagem peculiar, diferente daquela verbal. Sabemos, a este respeito, que a representação da palavra se refere apenas à esfera consciente, sendo que o inconsciente é regido pela representação da coisa. A coisa é imagética, é simbólica, é arquetípica (com Jung), mas não é nem um pouco racional.

Digo, também, ao paciente novato que, se quiser ficar “bom”, precisa ganhar intimidade com aquele continente emocional/espiritual, integrando a sombra (lá vem Jung novamente!). Precisa se tornar um grande amigo de seu inconsciente, ao invés de temer e projetar tudo aquilo que não aceita de si mesmo.

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Pois isso só faz aumentar a sombra (Jung, de novo!). Há pessoas que, se soubessem desenhar direito, poderiam representar numa charge, de forma bem caricatural, tipo: uma pessoa bem pequena, toda curva e cheia de medo, que corre ou tenta escapar de sua sombra, uma sombra enorme e assustadora, bem pretinha mesmo!

Fugir da própria sombra

Pergunta: por ventura não vale a pena parar de correr e integrar a sombra? A esse propósito, lembro da avó de um amigo, lá na Itália. A última vez que vi a senhora, ela me disse: “Riccá, quem corre acaba cansando!”. Pois é, além do absurdo de fugir da própria sombra (desconhecido interior, inconsciente), ainda por cima a pessoa cansa.

E o cansaço psíquico, sabemos, pode alcançar um nível tão grande que nos deixa não só sem forças, mas pior, sem perspectiva, sem ânimo, sem disposição para nada. E isso nós chamamos de depressão, perturbação psíquica que, dependendo do grau da severidade e outras características, é conhecida como distimia ou depressão maior.

Voltemos, então, ao “ganho secundário”. Não vai pela razão, porque não será possível entender do que se trata. Esquece a razão analítica. Pense em termos de analogias, de “é como se…”, é isso que ensino aos meus pacientes. Analogias, metáforas, tudo isso é muito mais típico do inconsciente, e é mais inteligível para o mesmo.

Quer se tornar amigo íntimo do desconhecido que habita em você?

Quer integrar a sombra? Se acostume a trabalhar com metáforas e analogias, além de anedotas. É isso que o psiquiatra Dr. Milton Erickson costumava fazer. E garanto que funciona perfeitamente! Saindo da lógica racional, e só se fizermos isso, podemos compreender o ganho secundário, ou seja, a “intenção positiva” da aflição ou perturbação que chamamos de transtorno.

A clareza acerca do ganho secundário é fundamental para o avanço do quadro clínico do paciente. Todavia, o que vim discutir aqui, de certa forma, dialoga, mas vai um pouco além até mesmo do ganho secundário.

Voltando ao Dicionário Michaelis, há outra definição de sintoma que descreve perfeitamente aquilo que quero discutir neste “paper”, ou seja: “Indício de uma doença, por meio do qual se pode prever sua cura ou seu agravamento”.

O acompanhamento psicoterápico

Vamos sublinhar a parte final desta definição: sua cura ou seu agravamento. Pois bem, como sabemos, a cura é um processo interior que não depende diretamente do psicanalista, ou psicoterapeuta que se queira chamar. A cura só é possível quando brota de dentro do paciente. O terapeuta é um facilitador, e nada mais. Não é por nada que se fala em “acompanhamento psicoterápico”, ou “acompanhar um paciente”.

O psicanalista é meio que um guia turístico, que anda junto, porque conhece o caminho. Mas o paciente precisa caminhar. O terapeuta não pode caminhar pelo paciente. Pode apenas andar junto. Nestes termos, o manejo dos sintomas, de fato, leva à cura ou ao agravamento da doença, ou melhor dizendo, transtorno, já que até o DSM V hoje se refere à perturbação como transtorno e não mais como doença.

Enfim, o sintoma em si, é como a parte visível da planta parasita. O manejo correto nos impele, justamente, a evitar suprimir o sintoma, porque, em caso contrário, ele apenas irá se fortalecer, assim como os pelos contra os quais certas senhoras e senhoritas vivem lutando com suas giletes. “Cortou” o pelo, ele vai crescer de novo e mais forte.

O sintoma como aliado e o campo Psi

Já a remoção com cera quente tende a enfraquecer o pelo com o passar do tempo. Enquanto homem que jamais ia se submeter a uma tal tortura, neste quesito, apenas estou me baseando nos relatos da minha esposa e de outras mulheres.

O que vim discutir, por meio deste artigo, é que o sintoma pode ser enxergado e, consequentemente, manejado, como algo positivo, como um aliado no processo psicoterápico. Esta reversão da corriqueira valorização negativa, perpetuada tanto em âmbito da clínica médica, como no chamado “campo Psi”, permite evitar se desgastar e pior, fadigar o paciente, com a ilusória eliminação do sintoma, que, por sinal, é algo impossível, já que a ciência nos lembra que “nada se cria e nada se destrói, mas tudo se transforma”.

Reverter a valorização negativa do sintoma é algo tremendamente revolucionário e disruptivo. Eu explico isso para os pacientes. Não estou pedindo uma reforma, e sim uma verdadeira revolução. Não aquelas revoluções políticas, com baderna, sangue, fanatismo e muitas mortes, e sim uma revolução interior.

“A doença como caminho”

Uma revolução não-violenta, pacífica, até porque, como também costumo explicar aos meus pacientes, o transtorno é como uma onda do mar. Quem já viu um surfista brigando ou lutando contra uma onda? Nem mesmo Dom Quixote iria se deparar com algo tão sem noção (e sem futuro!). A onda, porém, pode ser surfada. Aí sim! E é exatamente isso que convido o paciente a fazer: surfar a onda. Para tanto, é preciso mudar a perspectiva e, também, ganhar coragem.

O sintoma, portanto, precisa passar a ser visto como um aliado, e a própria perturbação, tem algo positivo, pois ela vem nos comunicar algo que, se não for corrigido, aí sim, a coisa pode ficar feia. A “doença” representa um alerta, e o(s) sintoma(s), uma manifestação deste alerta.

Este conceito, ou melhor, esta perspectiva, é partilhado por Rüdger Dahlke, médico e escritor alemão. O título de um dos livros de autoria do Dr. Dahlke fala por si só: “A doença como caminho”. No entanto, há outro livro dele que irei citar neste contexto: “A doença como linguagem da alma”. Ora, sei que não está na moda falar em alma no campo psi, mas vale frisar que, segundo a minha abordagem e o meu entendimento, a alma é o verdadeiro centro do nosso ser, está atrelada ao inconsciente e vai além do emocional, abrangendo a esfera espiritual.

O sintoma como aliado, a mente e a alma

Sempre digo aos meus pacientes que o meu trabalho consiste em ajudar as pessoas a encurtar o caminho que separa mente (principalmente racional) e alma. Maior a distância entre mente e alma, mais surgem problemas e transtornos psicopatológicos. A integração da sombra, em termos junguianos, seria justamente uma reaproximação anímica, um retorno para casa, para o centro.

Não é um caso que Lacan, ao dialogar com Descartes, transformou o cogito cartesiano no famoso aforismo: “penso onde não sou, logo existo onde não penso”. Costumo ensinar, também, aos pacientes, ao citar Lacan, que a mente racional é uma ferramenta, um processador, e não o centro de nosso ser. Não é lá que existimos. Ao identificarmos com ela, nos prendemos às bizarrices de seus pensamentos que mudam a cada momento, que nem o zapping efetuado com o controle ao assistir TV.

Ninguém está reduzindo a importância da nossa mente racional, apenas, ressalto que é importante aprender a se distanciar dela, observando os pensamentos como se passassem numa tela de cinema. Com esta “brincadeirinha”, graças a Deus, consegui ensinar a vários pacientes como prevenir e evitar crises ou ataques de pânico, apenas para exemplificar.

O setting analítico

Basicamente, na medida em que me distancio e apenas observo, sem efetuar julgamentos, deixo de ser refém, de estar sugestionável pelo “pular de galho em galho” deste “macaco doido” que é a nossa mente pensante. Fora o fato de que, quem disse que os “nossos” pensamentos são, de fato, nossos?

No setting psicanalítico, percebe-se nitidamente quando é certa paciente que está falando, ou alguém mais, se manifestando na mente dela. E perguntamos de quem é aquela voz que está falando: mamãe? Papai? Fulano? Sicrano? Costuma responder a paciente (com uma pergunta), após alguns momentos de hesitação.

Distanciar-se da mente racional, observar o seu funcionamento e seus pensamentos, leva à redução do número de pensamentos e, portanto, traz certo grau de paz interior. A mente não se acalma e não tem como se acalmar ao ser enfrentada, obrigando-a a calar, coisa que, infelizmente, alguns professores de meditação e gurus do desenvolvimento humano tendem a ensinar, erroneamente, para as pessoas.

A analogia da onda

Mais uma vez, cabe aqui a analogia da onda. É como se uma mente carregada de pensamentos, acelerada, fosse uma onda. Vale a pena brigar com uma onda? Claro que não. Mas posso contemplá-la e, no timing correto, posso surfá-la. Isso sim.

O Dr. Rüdger Dahlke nos ensina que “em vez de aliar-se ao paciente contra seus sintomas, como é costume, trata-se de aliar-se ao mesmo tempo aos sintomas, para reconhecer o que falta ao paciente, e presenteá-lo tanto com estes sintomas como com as suas carências.

O sintoma, quando liberado de sua valoração negativa, pode se transformar em um excelente indicador de caminho e guiar-nos aos temas carenciais” (DAHLKE, 2016, p.13). Tudo bem que um sintoma não necessariamente remete para uma carência, pois pode muito bem apontar para algum excesso, e tudo bem que a fixação por nossa parte num sintoma equivale à obsessão de um delegado policial com uma entre tantas outras pistas, porém, a questão da valoração negativa se transformar em positiva é digno de consideração.

O setting psicoterápico

Como já destaquei acima, a mudança de perspectiva, de ângulo, de olhar acerca do sintoma e da doença em si representa uma revolução, algo fortemente disruptivo, capaz de desencadear uma verdadeira crise interior. Mas seria a crise exclusivamente perturbadora, aflitiva, ou seria ela um processo necessário dentro do setting psicoterápico?

A este aspecto, lembro de quando, num seminário de psicanálise (o título do livro é esse mesmo, só que no plural: Seminários de psicanálise), o Dr. Milton Erickson pega um pincel, o mostra para um paciente/aluno e fala algo do tipo: “está vendo este pincel? Quando o paciente entra no consultório, é assim”, e mostra o pincel com as cerdas todas alinhadas.

Daí o Dr. Erickson coloca a ponta do pincel entre as suas mãos, começa a esfregar as cerdas entre as mãos e, finalmente, conclui: “(…) e quando sai do consultório está assim”, e mostra o mesmo pincel com as cerdas todas bagunçadas, lembrando os cabelos de Syd Vicious, do cantor da banda The Cure, ou ainda, aqueles de Albert Einstein.

O sintoma como aliado e a crise

A crise, me parece ser necessária. Se não houver crise, não há avanço. Sem crise, nós tendemos a permanecer na zona de conforto – movidos pela nossa mente consciente que ordena: “deixa tudo assim, não mexe”. E na zona de conforto, notadamente, ninguém se atreve a olhar para dentro de si. Sendo que, mais uma vez com Jung, vale lembrar que “quem olha para fora sonha, e quem olha para dentro desperta”.

Olhar para dentro é absolutamente necessário, quanto mais olho para dentro, mais reduzo a distância com a alma que é o centro. Isso, por si só, é terapêutico. Só não vale “se avexar”, ao utilizar uma expressão, aliás, um verbo bem típico do “nordestinês”. A caminhada precisa ocorrer com calma, um passo de cada vez.

Mudar de perspectiva nos leva a entrar, em certa medida, numa crise interior, a qual, todavia, é necessária para sairmos da zona de conforto e aceitarmos o desafio de fazermos aqueles ajustes necessários para nos reaproximarmos do nosso verdadeiro centro, que é anímico-espiritual, passando pelo reino do emocional, cujo desconhecimento nos condenaria a sermos zumbis, criaturas que não enxergam a um palmo de seu nariz, principalmente dentro de si, que andam em automático e só repetem padrões emocionais desde a primeira infância, sem entender a si mesmos, e sem compreender aquilo que acontece com eles.

Doença como caminho

Enxergar o sintoma como aliado e a doença como caminho, no entanto, é fundamental para desencadear aquele processo interior de cura, e a consequente liberação do recalcado. Sim, porque, lutar contra o sintoma e tentar eliminá-lo, é como lutar contra as ondas do mar, ou contra uma planta parasita que, tirei daqui, nasceu ali. Faz sentido?

Dr. Dahlke, médico, critica veemente e sarcasticamente o viés dos médicos comuns, e aquele da medicina ocidental, embora ela represente o seu berço acadêmico. Ele nos faz notar que a medicina é a única ciência que, há milênios, insiste em eliminar os sintomas. E acrescenta que a química e a física ensinam que nada se elimina, no máximo se transforma.

Pessoalmente, não sou médico, sou grato aos bons médicos que encontrei no meu caminho, e acredito que seja mais conveniente traduzir esta postura ou abordagem para o campo Psi e, principalmente, para a Psicanálise, campo no qual tenho pelo menos um pouco mais de competência e experiência para poder refletir, discutir e opinar.

As redes sociais

Infelizmente, tanto por meio de publicações nas redes sociais, como por meio de relatos de pacientes e de outras maneiras, percebe-se que há psicoterapeutas e até psicanalistas propriamente ditos que trabalham para anular os sintomas. Recentemente, comecei a atender uma paciente que, há alguns anos, já teria buscado um terapeuta e foi tratada por meio de hipnoterapia. A queixa dela é a dificuldade de concentração e o temor de se deparar com um concurso público e não passar.

Ela disse que, naquela época, por meio da hipnoterapia, até que ficou “boa”, e conseguiu participar de um concurso. Porém, certa vez, depois de um tempo, teve outras experiências com um concurso e trata-se de uma lembrança negativa. Ela simplesmente travou. E então me procurou, já que tem concursos nos quais ela pretende participar.

Tive que explicar a ela como funciona, embora resumidamente, o aparelho psíquico, e claro, falei da planta parasita, aquela analogia que sempre utilizo. Então ela entendeu. Naquela ocasião, foi tratado o sintoma. O mesmo foi “anulado”, mas depois de um tempo voltou.

O sintoma como aliado e a psicoterapia

Trocando em miúdos, isso se chama de paliativo. Mas o risco é bem maior, já que, ao se anular, maquiar ou reprimir determinado sintoma, este pode aumentar de gravidade, ou pode se tornar outro sintoma. E assim por diante. A própria doença e o Dr. Dahlke explica isso de forma magistral, pode se tornar uma doença outra, inclusive bem pior que a primeira. Logo, precisamos ter muito cuidado, a psicoterapia é algo terrivelmente sério, e a nossa responsabilidade é enorme.

Não podemos ficar obcecados com um ou outro sintoma, pois isso equivale a ir para uma pescaria e, ao sentir que um peixe mordeu a isca, apressar-se e começar a puxar de maneira selvagem! O risco é perder o peixe, principalmente se este for de grande porte. É preciso ter calma, entrar em sintonia com o peixe.

Harmonizar-se com ele, enquanto cansa. “Para todos os propósitos, tem um tempo e um modo”, está escrito na Bíblia. Além do tempo, há um modo. O modus operandi psicanalítico exige que não nos apressemos e fiquemos obcecados por causa de determinado sintoma. Tanto menos, exige que briguemos com tal sintoma, o que o entorpeçamos.

Uma inspiração Junguiana

Sobre o sintoma como aliado, mais cedo ou mais tarde, como já foi dito e reiterado, tal sintoma vai reaparecer, ou no mesmo “local”, ou nas “proximidades”, ou ainda, vai se transformar num sintoma outro. Precisamos, pois, passar a enxergar e, ao mesmo tempo, fazer com que o paciente também passe a vislumbrar, tal sintoma como um aliado.

Para tanto, precisamos nos harmonizar com ele, precisamos nos alinhar e respeitá-lo enquanto tal, para conhecer o seu padrão. Enquanto isso, porém, não devemos nos prender apenas àquele sintoma. Precisamos fazer o mesmo com sintomas outros. Até começar a enxergar um padrão maior, aquele da “doença”, ou como se diz atualmente, o do transtorno.

Dr. Dahlke, por meio da sua inspiração junguiana, sugere que o padrão, tanto o do sintoma como o da doença, aponta para toda uma ritualística. Vale frisar que, antes disso, o médico alemão dedica uma parte do texto ao ritual, enfatizando a sua importância psíquica, social e humana.

Um padrão inconsciente

Ritual que, ao menos conscientemente, tende a se perder na nossa sociedade, muito embora, inconscientemente, ele tenda a resistir, inclusive no campo médico e hospitalar, mas não só, como é o caso do campo jurídico, como foi devidamente sublinhado por Dahlke.

O autor de “A doença como linguagem da alma” destaca: “criar um padrão consciente a partir do padrão inconsciente do sintoma é o primeiro passo” (p. 52). Então, este médico alemão, que fez especialização em medicina naturalista e psicoterapia, menciona duas diferentes possibilidades: a elaboração e o resgate. Dahlke explica que há um “verdadeiro abismo” entre os dois conceitos.

Resumindo, elaboração comporta certo grau de trabalho, ou labor, enquanto o resgate, pelo menos segundo a etimologia alemã, aponta para uma palavra (einlösung = resgate) que contém, em si, outra palavra (lösung) que significa solução.

O sintoma como aliado e uma necessidade interior

Esta distinção entre elaboração e resgate permite compreender melhor os dois possíveis caminhos psicoterápicos, a saber: aquele voltado para o entorpecimento ou maquiagem, ou ainda, a tentativa de aniquilamento do sintoma e, por outro lado, o caminho que, ao aproveitar o sintoma (e a própria doença) como aliado, permite ir fundo, até à emergência do recalcado, que, tornando-se consciente, deixa de perturbar a partir da camada inconsciente.

A referida diferenciação resulta clara quando o Dr. Dahlke afirma: “A elaboração consciente está sujeita ao perigo de destapar apenas âmbitos isolados”. Já, “Resgates não almejam um objetivo, eles não acontecem para que se consiga alguma coisa, mas partem de uma necessidade interior e afetam a pessoa em sua totalidade” (p.52).

Teria a ver, a não-intencionalidade do resgate, com o antigo conceito taoísta conhecido como Wu-Wei? Tratar-se-ia de “ação na inação e inação na ação?”.

O transtorno obsessivo-compulsivo

Seria algo inerente, também, à analogia do passatempo, normalmente contida nas revistas de enigmística, por meio da qual, ao colorir determinadas partes, ou ao juntar determinados pontos, você, aos poucos, passa a enxergar determinada forma? Fixar-se analiticamente num ou noutro ponto, não seria exatamente como “destapar apenas âmbitos isolados”, assim como foi frisado pelo Dr. Dahlke?

Embora este médico pareça restringir a discussão a um transtorno de tipo obsessivo- compulsivo, embora também o faça em termos metafóricos, apenas para exemplificar, podemos ver que, o logos por ele aplicado ao T.O.C. pode servir a explicar o funcionamento do aparelho psíquico diante de outros transtornos.

O que me parece que Dahlke esteja a explicar é que existe um padrão inconsciente baseado num ritual e que, possivelmente, o resgate se refira a trazer este padrão para a camada consciente e, então, fazer dele um ritual consciente.

A consciência anímico-esperitual

Nestes termos, o médico alemão acrescenta: “Na maioria das vezes, os sintomas somente levam à elaboração, já que falta a consciência anímico-espiritual.” Caso esta seja trazida para o sintoma e se transforme na sintomática da doença, em um ritual consciente que abranja todos os planos implicados, aumentam-se as chances de se resgatar o tema” (DAHLKE, 2016, p. 53).

Por essa e por outras, insisto bastante com os meus pacientes quanto à necessidade de voltar ao centro, à alma, aumentando assim a referida consciência anímico-espiritual. Afinal, porquanto nós, tendencialmente, vejamos antes do paciente aquilo que ele vai precisar enxergar, parafraseando (mais uma vez) uma famosa frase do filme Matrix (o primeiro), Morpheus diz para Neo: “você precisa ver por si mesmo”.

E não adianta o psicanalista, após ver aquilo que o paciente em seguida precisará vislumbrar por si mesmo, revelar em tons solenes, ou soberbos, que se queira, para o analisando: “Olhe, fulano, o seu problema é isso ou aquilo!”. Não é assim que funciona. O paciente precisa ver por si mesmo. Sem que alguém ouse contar o filme para ele!

Conclusão sobre o sintoma como aliado

O Dr. Dahlke ainda afirma: “Onde os sintomas incitam a dar caráter ritual à vida, eles colaboram não somente para o autoconhecimento, mas também para a autorealização”. E não seria isso, afinal, ou seja, a autorrealização, que gostaríamos que os nossos pacientes alcançassem?

“O objetivo do caminho do desenvolvimento é transformar toda a vida em um ritual consciente”, e eu pergunto, e também concluo esta reflexão sobre sintomas e doença: por ventura, este “tornar a vida em um ritual consciente” não seria quase que sinônimo de desautomatizar, ou sair do automático?

Afinal, não costumam os rituais inconscientes se manifestar de maneira automática? E não seria todo o nosso “labor” e, ao mesmo tempo, “non-labor” terapêutico, todo o nosso “fazer sem fazer e não-fazer fazendo”, um modo de acompanhar o paciente até à porta do abismo assombrado de seu inconsciente e na jornada subsequente de desbravamento das profundezas anímicas, de modo que, forte de sua (re)integridade anímico-espiritual, ele possa finalmente “ver por si só”, para então se resolver, ao criar um padrão-ritual consciente, agora sim, livre da perturbação do recalcado?

Artigo sobre o sintoma como aliado escrito por Riccardo Migliore. PhD em Letras, Psicanalista clínico, Master em Inteligência Emocional, Master em Hipnose clínica, Professor, Psicopedagogo (ABPp), Neuropsicopedagogo clínico/institucional, Pós-graduado em Neurociências Cognitiva e Processos Psicológicos, autor…e karateka! OSS [email protected]

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