Neste artigo, vamos explorar o transtorno de personalidade borderline sob a perspectiva psicanalítica, abordando seus fundamentos teóricos, manifestações clínicas e os desafios do tratamento. A proposta é refletir sobre os caminhos possíveis para a reconstrução do self e o papel da escuta profunda no processo terapêutico.
A complexidade do transtorno de personalidade borderline
O Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) é um dos quadros clínicos mais complexos e desafiadores na prática da saúde mental.
Sua compreensão na psicanálise ultrapassa os critérios diagnósticos objetivos do DSM-5, mergulhando nos conflitos inconscientes, nas experiências precoces e na constituição do sujeito em sua relação com o outro e consigo mesmo.
O conceito de borderline, que originalmente indicava uma “fronteira” entre as neuroses e as psicoses, evoluiu dentro do campo psicanalítico como uma organização psíquica específica, marcada por intensos conflitos emocionais e estruturas defensivas primitivas.
Características da clínica borderline
A clínica borderline apresenta características bastante peculiares:
- Instabilidade afetiva intensa;
- Impulsividade;
- Relações interpessoais caóticas;
- Medo extremo de abandono;
- Sentimentos crônicos de vazio.
Esses traços não são apenas comportamentos visíveis, mas expressões de uma vivência subjetiva profundamente fragmentada.
O borderline não consegue estabelecer uma imagem estável de si e do outro, oscilando entre idealização e desvalorização de maneira abrupta.
Ama com intensidade e, de repente, odeia com fúria. Essa dicotomia é reflexo de um ego ainda frágil, incapaz de integrar representações ambivalentes.
Organização borderline e a difusão de identidade
Sob a ótica psicanalítica, diversos autores contribuíram para a compreensão do TPB. Otto Kernberg é talvez o mais influente nesse campo, propondo a teoria das “organizações da personalidade”, onde o borderline ocupa um lugar intermediário entre as neuroses e as psicoses.
Para Kernberg, a característica central da organização borderline é a difusão de identidade, ou seja, a incapacidade de formar uma identidade coesa e contínua.
Essa difusão se manifesta na instabilidade nas relações, nos objetivos de vida e nos valores pessoais, gerando um self fragmentado e incoerente.
Além disso, Kernberg destaca a presença de mecanismos de defesa primitivos, especialmente a clivagem.
Clivagem e identificação projetiva
Nesse processo, o sujeito divide suas experiências e representações entre “tudo bom” e “tudo ruim”, não conseguindo sustentar a ambivalência.
Isso explica por que o borderline pode idolatrar uma pessoa em um momento e, pouco tempo depois, sentir ódio profundo por ela.
A clivagem funciona como uma tentativa de proteger o ego de sentimentos intoleráveis, como a frustração, a rejeição ou a dor psíquica.
Outro mecanismo frequente é a identificação projetiva, na qual o sujeito projeta aspectos de si no outro e, simultaneamente, tenta controlar esse outro para que ele se comporte conforme o que foi projetado.
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Relações simbióticas e desenvolvimento do self
Esse processo contribui para relações marcadas por manipulações inconscientes, dinâmicas de poder e confusão emocional.
O outro é frequentemente percebido como uma extensão do self e não como um sujeito autônomo.
Do ponto de vista do desenvolvimento psíquico, muitos psicanalistas relacionam o surgimento do TPB a falhas significativas nos primeiros vínculos afetivos, especialmente na relação com a figura materna.
Winnicott, por exemplo, não aborda diretamente o borderline, mas suas noções de “ambiente suficientemente bom” e “mãe suficientemente boa” são fundamentais para entender como falhas ambientais precoces podem comprometer a constituição do self.
Estrutura psíquica e vulnerabilidade emocional
Quando o bebê não encontra um ambiente que sustente suas angústias e necessidades emocionais, ele é forçado a desenvolver defesas precoces para lidar com experiências que ainda não pode elaborar simbolicamente.
Nesse sentido, o borderline seria alguém cuja estrutura psíquica não conseguiu completar o processo de integração entre as representações de si e do outro.
O self permanece despedaçado, vulnerável, dependente da confirmação externa para sentir-se existente.
Isso explica a sensibilidade extrema ao abandono e a tendência a estabelecer relações simbióticas ou fisionalizantes, nas quais o outro é vivido como essencial para a manutenção do próprio ser.
Agressividade e autoagressão no borderline
A relação do borderline com a agressividade também é complexa. A raiva que emerge frequentemente nas relações não é apenas reativa, mas muitas vezes expressão de um desamparo primitivo.
A agressividade pode ter raízes em experiências precoces de frustração, negligência ou abuso, levando o sujeito a desenvolver uma postura defensiva diante da ameaça de aniquilamento psíquico.
A auto agressividade, como observada nos comportamentos autolesivos e tentativas de suicídio, pode ser compreendida como um retorno dessa agressividade ao próprio ego, em um ciclo de dor e punição inconsciente.
O manejo clínico e a função do analista
A escuta clínica do borderline exige do analista uma posição firme, mas empática.
A contratransferência é frequentemente intensa e pode levar o analista a sentir-se idealizado, odiado ou manipulado.
Reconhecer esses afetos e interpretá-los de forma cuidadosa é parte essencial do manejo clínico.
A estabilidade da função do analista é um fator importante na construção de um espaço simbólico que permita ao paciente experienciar e simbolizar suas angústias sem precisar atuar de forma impulsiva.
A psicanálise e a reconstrução do self
A psicanálise oferece ao borderline algo que muitas abordagens não conseguem: um espaço onde sua dor é reconhecida em sua profundidade, e onde sua subjetividade é respeitada em sua complexidade.
O objetivo do tratamento não é suprimir os sintomas, mas promover a integração psíquica, favorecer a simbolização e o fortalecimento do ego.
Trata-se de ajudar o sujeito a reconhecer e tolerar seus afetos, desenvolver um senso de identidade mais estável e construir relações mais maduras.
Um chamado à escuta psicanalítica
Em suma, o Transtorno de Personalidade Borderline, sob a ótica psicanalítica, revela-se como uma tentativa dolorosa e confusa de lidar com um mundo interno em frangalhos.
Sua origem remonta a experiências precoces de falha ambiental, seu funcionamento psíquico se baseia em defesas primitivas, e sua manifestação clínica nos convoca a uma escuta cuidadosa e profunda.
Através do trabalho psicanalítico, é possível que esse sujeito encontre novos caminhos para simbolizar sua dor, resgatar sua identidade e reconstruir sua capacidade de amar e ser amado.
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Este texto sobre transtorno de personalidade borderline foi criado por ANA LÚCIA PEREIRA, exclusivamente para o blog Psicanálise Clínica.