A Psicanálise hoje continua a receber críticas intensas e, às vezes, bastante destrutivas. Matthieu Ricard é um monge budista francês, com Phd em genética molecular, tradutor do Dalai Lama e participante ativo de pesquisas sobre o efeito da meditação no cérebro. Foi “eleito” o “homem mais feliz do mundo” pelos cientistas da Universidade de Wisconsin, nos EUA, que ficaram fascinados com a mente de Matthieu em pesquisas sobre nível de felicidade.
A psicanálise hoje e o monge
Esse monge realmente é uma pessoa extraordinária que muito contribui para a busca do bem-estar humano e pela evidenciação e prática das qualidades que seriam inerentes à nossa espécie, particularmente, o altruísmo.
Ele próprio refutou a alcunha de “homem mais feliz do mundo”, uma vez que a humanidade hoje conta com mais de 7 bilhões de pessoas.
Portanto, este artigo não pretende criticar diretamente o senhor Matthieu Ricard, porque seria descabido face à pessoa que é e, também, pelas suas contribuições ao desenvolvimento humano. Trata-se, especificamente, de crítica ao seu texto “Os campeões do egoísmo: Ayn Rand, Freud e a Psicanálise.
Críticas à filósofa Ayn Rand e a psicanálise hoje
Não será tratado aqui a crítica estabelecida à filósofa Ayn Rand, como “campeã do egoísmo”, mas é importante saber que ela era de família judia, nasceu na Rússia no início do século passado. Sua família foi obrigada a fugir para a Criméia, por conta da ação bolchevique na Revolução Russa de 1917, quando seu pai teve sua farmácia confiscada.
Realmente ela enalteceu o egoísmo humano, mas seria necessário um artigo à parte para detalhar esse assunto. É importante também compreender a experiência de vida e fatores que podem ter contribuído para uma pessoa ser como ela ao longo da vida.
Críticas a Freud e à Psicanálise Com relação a tratar o “pai da psicanálise”, Sigmund Freud e a Psicanálise como deletérios à humanidade, parece-me um exagero, ou até um certo paradoxo, tendo em vista quem é Matthieu Ricard. Refletindo melhor, talvez tenha sido até bom, pois retrata os paradoxos, as contradições que fazem parte da natureza humana; não vejo nenhuma necessidade ou sentido de tratar Freud e a Psicanálise dessa forma.
Freud e a Psicanálise
Nem sempre é preciso “destruir” o outro ou outra coisa para afirmar suas convicções e sentimentos. É certo que críticas e contrapontos existem em todas as áreas, nas religiões, artes em geral. Na ciência não é diferente.
Freud e a Psicanálise já foram criticados de todas as formas, inclusive como na publicação citada pelo monge, “O livro negro da Psicanálise”. Sim há “livros negros” de vários temas. É importante conhecê-los e refletir sobre seus conteúdos. Freud, da mesma forma que Ayn Rand, é produto de seu tempo, do contexto em que viveu; também um judeu que sofreu as agruras do nazismo e teve que fugir de Viena para Londres para não ser morto.
Como negar sua contribuição para o conhecimento da mente humana? Seria totalmente “negativa” por estabelecer que o egoísmo (interesse pelo ego) seria o investimento pelas pulsões do ego e o narcisismo”?
A psicanálise hoje e o termo “altruísmo”
O senhor Matthieu informa no referido artigo, que “o termo ‘altruísmo’ deixou de ser utilizado pelos psicanalistas e não consta do Vocabulário da Psicanálise de Laplanche. É verdade que essa palavra não consta desse Vocabulário, mas aparece no Dicionário Internacional da Psicanálise, de Alain de Mijolla, que é transcrito agora: “O conceito de altruísmo é mencionado por Sigmund Freud cerca de uma dezena de vezes ao longo de sua obra, e isso, na maioria dos casos, de um ponto de vista social e cultural.
Em ‘Reflexões para os tempos de guerra e morte’, ele escreve o seguinte: ‘A cultura acentua as tendências altruístas e sociais que, no início, foram adquiridas por coerção externa.
Essa tendência para transformar as pulsões egoístas em pulsões sociais por meio de adições eróticas tornou-se uma disposição, em parte hereditária, mas uma vez que a vida pulsional permaneceu primitiva, não se deve superestimar a aptidão humana para a vida social’ (p. 69).
O crime contra a humanidade
Cometeu o Sr. Freud algum “crime contra a humanidade” por essa afirmação? É evidente que Freud pode ter se equivocado em muitas coisas, mas ele vem sendo redescoberto frequentemente.
Quanto vale o trabalho do mestre austríaco no aprofundamento e definições sobre o Inconsciente? Quanto vale o trabalho do eminente psiquiatra e psicanalista, sempre tentando vincular a psique humana com aspectos biológicos, experiências de vida e o meio ambiente, o que hoje é tratado pela Epigenética?
Quanto vale Freud ter se desvencilhado do que frequentemente se pensava à época, de que os problemas mentais seriam ocorrências meramente físicas? Outra afirmação do eminente monge, é de que “Freud e Jung forjaram no mundo moderno uma versão secular do pecado original”.
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Matthieu Ricard
Por acaso não vivemos com inúmeros sentimentos de culpa? Com epidemia de depressão, ansiedade… Não fizemos incontáveis guerras ao longo do tempo, não morreram milhões de pessoas na Primeira e Segunda Guerras? Não foram dizimados seis milhões de judeus no holocausto? Isso foi fruto do “natural altruísmo que nasce com os seres humanos”?
Sim, senhor Matthieu Ricard, é preciso reconhecer que medo, ódio, frustração, amor, fazem parte do que somos nós. É bem verdade também que dependemos muito uns dos outros. Aprendemos isso ao longo de nossa evolução.
O altruísmo é sim fundamental para manter a sociedade, para manter a coesão social, para nossa sobrevivência. O profícuo biólogo evolucionista David Sloan Wilson, publicou um livro chamado Does altruism exist?
O altruísmo e as manifestações patológicas
Interessante que ele reconhece o altruísmo como um fim em si mesmo, fruto do longo processo evolutivo; afinal, somos seres irremediavelmente sociais. O mesmo autor também reconhece que, em alguns casos, o altruísmo pode apresentar manifestações patológicas.
O primatólogo Frans de Waal, que o senhor Matthieu cita de forma negativa, salienta que a empatia é uma capacidade de cooperar e ajudar o próximo, sendo fundamental aspecto da evolução humana. Christopher Boehn, em seu livro Moral Origins; the evolution of virtue, altruism, and shame informa que nosso senso moral é um sofisticado mecanismo de defesa que permite os indivíduos sobreviverem e prosperarem em grupos, ou seja, o altruísmo seria essencial para nossa sobrevivência.
De qualquer forma, o altruísmo tem um importante papel na sociedade, ainda mais na atualidade, em que graças em grande parte às mídias sociais, toda a intolerância e agressividade humanas estão evidenciadas.
Considerações finais
Estudos, como esse do David Sloan, podem indicar que o altruísmo existe sim, tem sua importância, mas talvez, no íntimo, toda a atitude altruísta tenha um interesse (“egoísta”), mesmo que seja apenas ser reconhecido, elogiado, ou para simplesmente sentir-se bem. Ainda é uma questão em aberto…
Sr. Matthieu, Freud e a Psicanálise passam por transformações, quer na releitura do mestre judeu-austríaco, quer em novas descobertas, inclusive apoiado pelas Neurociências. A Psicanálise necessita sim se aprimorar, se atualizar, e isso está acontecendo, talvez não na velocidade que o senhor desejaria, ou melhor, o senhor deseja que ela seja extinta e Freud esquecido.
Já há pessoas suficientes tentando destruir coisas que foram edificadas ao longo de muitos anos, às custas de muito trabalho e dedicação. Vamos praticar sim o altruísmo, mas não nos esqueçamos jamais quem somos, de onde viemos… Com respeito.
Referências Bibliográficas
Boehm, C. (2012). Moral Origins: The Evolution of Virtue, altruism, and Shame. New York: Basic Books.
Lambias, M. (2021). Psicanálise: Arte ou Ciência. Recuperado de https://www.psicanaliseclinica.com/psicanalise-arte-ou-ciencia/
Mijolla, A. (2005). Dicionário internacional da psicanálise; conceitos, noções, biografias. Rio de Janeiro: Imago.
Ricard, M. (2016). Os campeões do egoísmo: Ayn Rand, Freud e a Psicanálise. Recuperado de https://www.budavirtual.com.br/os-campeoes-do-egoismo-ayn-rand-freud-e-a-psicanalise/
Waal, F. (2009). A era da empatia: Lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras.
Wilson, D.S. (2015). Does altruism exist? USA: Yale University Press.
O presente artigo foi escrito pelo autor Mauricio Lambiasi ([email protected]), graduado em Administração e Psicologia Clínica Mestre em Gestão de Pessoas Doutorando em Ciências Empresariais e Sociais Formando em Psicanálise Clínica