interpretação psicanalítica

Interpretação psicanalítica: significado e exemplos

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Neste artigo vou expor alguns pontos de um texto da psicanalista britânica Marion Milner. Trata-se de um paper a partir do qual a psicoterapeuta, supervisionada por Melanie Klein, tornou-se membro efetivo da Sociedade Psicanalítica Britânica. Continue a leitura e veja mais sobre a interpretação psicanalítica.

A interpretação psicanalítica

Uma interpretação psicanalítica à la Marion Milner De antemão, Milner admite sua insegurança com relação à exposição da interpretação, que neste artigo, é o ponto de partida e – segundo uma lógica circular – também é o ponto de chegada. Vemos com Laplanche e Pontalis que a interpretação, do ponto de vista psicanalítico, não é exclusiva da leitura dos sonhos, e sim, aplica-se às outras produções do inconsciente (atos falhos, sintomas, etc.) e, mais geralmente, àquilo que, no discurso e no comportamento do sujeito, traz a marca do conflito defensivo.

A comunicação da interpretação sendo por excelência o modo de ação do analista, o termo interpretação, usado de forma absoluta, tem igualmente o sentido técnico de interpretação comunicada ao paciente. A interpretação, neste sentido técnico, está presente desde as origens da psicanálise (LAPLANCHE e PONTALIS, 2000, p. 246). É exatamente a esta comunicação, técnica, do entendimento da alma da paciente para a mesma (no caso, uma menina de apenas três anos de idade) que me referi ao eleger a interpretação como início e fim deste artigo.

A analista verificou a evolução clínica da pequena, mas ainda assim, ficou se questionando acerca da veracidade de sua interpretação. Milner reflete acerca do métier psicanalítico e seus problemas, quando destaca que, o material da análise, aparentemente, pode comprovar a teoria do analista, enquanto, ao ser apresentado para outrem, pode parecer inconsistente.

Um pouco mais sobre sua interpretação psicanalítica

A autora realça a importância de se apresentar apenas uma amostra do material, vastíssimo, que é colhido ao longo da análise e que, além do verbal, inclui “gestos, modos e tons de voz” (p. 33). A referida seleção, ainda, deve obedecer a algum embasamento teórico.

O problema principal discutido por Milner, é a impossibilidade de se negar alguma interferência, como também, a omissão de determinado material, cuja seleção poderia levar a interpretação para outra linha teórica.

Milner, como destaca no artigo seguinte desta coletânea intitulada “A loucura suprimida do homem são”, adotou a teoria da Psicologia geral e a interpretação psicanalítica apontando o suposto tropeço de certos psicanalistas em conceitos que, de acordo com a autora, seriam enfrentados pelos mesmos (psicanalistas) de maneira acrítica.

A denominação do subconsciente

Vale frisar que, se pode ser verdade que alguns psicanalistas enfrentem determinados conceitos psicológicos de maneira acrítica, também, precisa ser posto em evidência que, mais de um século após a primeira tópica freudiana, há psicólogos que ainda não diferenciam o pré-consciente (Pcs) do inconsciente (Ics), ao se referirem indistintamente ao conjunto “Pcs + Ics” sob a denominação um tanto vaga de “subconsciente”.

No entanto, considerando o teor dialógico como peculiaridade inata da Psicanálise, pode ser cabível sim, efetuar uma aproximação entre a teoria da Psicologia geral e a teoria psicanalítica, diálogo que a autora estabelece no capítulo seguinte da coletânea.

Com relação ao artigo “Um sintoma suicida em uma criança de três anos de idade” (1944), Milner informa que apenas vai se dedicar à apresentação do material, deixando a problemática teórica para outro momento. Logo, é sublinhado o fato que as primeiras nove sessões tiveram que ocorrer com a presença da mãe da menina, que só em seguida permitiu que a genitora saísse do consultório e a deixasse à sós com a psicoterapeuta.

A interpretação psicanalítica de Milner

A seguir, relata-se dentro da interpretação psicanalítica o viés destrutivo das brincadeiras da menina, despedaçando e cortando. A pequena Raquel, também, apresentava certa ansiedade com relação a algo que, supostamente, seria escondido dela, embora a manifestação desta inquietude ocorria de maneira indireta e a modalidade de explicitar o incômodo aponta um dos principais sintomas apresentado pela menina: a recusa em se alimentar.

Milner ressalta que Raquel lhe dava umas flores por ela colhidas num canteiro do consultório, pedindo-lhe para comê-las e, em seguida, queria retirá-las aos berros da mão da analista. Segundo Milner, era isso que a pequena fazia consigo mesma com relação à alimentação.

A menina demonstrou ter medo e raiva de ser privada daquilo que gostava e, a este respeito, ameaçou a terapeuta dizendo que ia morder o dedo dela. Raquel manifestou o desejo de ter algo que não lhe era permitido ter e que o objeto do seu desejo ia ser mordido e comido.

A perturbação de Raquel

A perturbação de Raquel com relação à comida, portanto, era advinda de duas questões: comer algo que não podia comer, e também, as dúvidas infantis acerca daquilo que acontece com a comida quando se come.

A dúvida principal de Raquel era: em que se transformam as coisas que se comem? Tipo, elas desaparecem, e depois? A suposta associação do processamento e excreção dos alimentos com esse desaparecimento, é confirmado pelo que Milner define como “interesse continuado em sua urina e fezes” (p. 35).

O psique da pequena

A menina, também, manifestou certa dúvida acerca dos brinquedos, como que estes fossem indiscerníveis da comida, logo, na psique da pequena, comida era algo perigoso. Ainda, verdade e “faz-de-conta” eram trocados por Raquel, em suas interações lúdicas com a psicanalista.

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    A perturbação da menina, pois, era advinda da indistinção entre realidade interna e externa, e da dúvida acerca da tal “coisa proibida”. Então, na psique dela, tudo isso resultava num raciocínio parecido com: “bom, na dúvida, eu não vou comer”.

    A indiferenciação entre a realidade interna e externa, por sua vez, levava Raquel a duvidar acerca de seus sentimentos, como também, de suas ideias.

    A incapacidade de discernir

    Esta incapacidade de discernir, a levou a confundir a realidade de comer alimentos com a fantasia de comer pessoas, na medida que, acometida por incerteza, Raquel não conseguia discernir entre alimentos, brinquedos e pessoas. Havia, pois, segundo Milner, um “sentimento de confusão” (p. 36).

    A autora, finalmente, inclui a figura materna na referida confusão de Raquel, com relação à incapacidade da menina comer diante a mãe, sendo que, percebe-se certa ambivalência na psique da criança, devido ao fato que, por um lado, existe amor, e por outro, se não tiver ódio explícito, há suspeita e desconfiança, já que a mãe poderia ser uma pessoa perigosa.

    Numa brincadeira, Raquel relevou acerca de uma “mulher maldosa”, e exigia que a terapeuta fosse um bebê e ela (Raquel), lhe pedia que não falasse, justamente, por ela (a terapeuta) ser um bebê.

    Seguintes sessões

    Em sessões seguintes, Raquel repreendeu a analista por esta (Milner), supostamente, ter lhe roubado a sua voz, que a criança chegou a desenhar. Daí houve uma conexão entre sua voz (roubada) e o pênis do pai.

    Milner explica que a sua voz (da terapeuta) – a partir da qual Raquel recebia interpretações que a faziam sentir melhor – remetia para aquilo que ela queria do pai e que sua mãe impedia que ela alcançasse (me parece se tratar da “coisa proibida”). Raquel, também, revelou algo como medo de manifestar por inteiro os seus sentimentos, segundo Milner, “ciumentos e destrutivos” (p. 37).

    Então demonstrava sua afetividade apenas parcialmente, ou pela metade, conforme relatado pela autora e, apenas no final do processo analítico é que a menina, finalmente, manifestou de maneira intensa e “verdadeira” seus sentimentos (de inveja), quando soube que Milner possuía uma bicicleta.

    Interpretação psicanalítica e a projeção

    É interessante acompanhar a descrição de Milner acerca de um caso em que se manifesta a defesa conhecida como projeção, por parte de Raquel, com relação ao seu desejo de morder o dedo da psicanalista. Após uma sessão, Raquel relatou para a mãe que alguém lhe teria mordido o dedo.

    De acordo com o Dicionário de Psicanálise, “em um sentido mais estrito, a projeção constitui uma operação por meio da qual um sujeito coloca para fora e localiza em outra pessoa uma pulsão que não pode aceitar em sua pessoa, o que lhe permite ignorá-la em si mesmo. A projeção, de maneira diferente da introjeção, é uma operação essencialmente imaginária” (CHEMAMA, 1995, p. 166). Percebe-se que o desejo de morder o dedo pode ser entendido como uma pulsão.

    Segundo Roland Chemama (1995), é mais conveniente falar em pulsões, devido ao fato da pulsão ser uma força inconsciente que se manifesta de várias maneiras e, portanto, é mais adequada a forma no plural. Chemama, ainda, cita Freud e sua teorização acerca das quatro características gerais da pulsão, sendo elas: fonte, impulso, objeto e finalidade que por sua vez revelam os destinos da pulsão: “inversão, desvio, recalcamento, sublimação etc.” (p. 177).

    A confusão entre realidade interna e externa

    A confusão entre realidade interna e externa da criança é explicada pela autora quando considera um banquinho com a perna meio danificada (por Raquel), uma folha que picava e uma passagem de ônibus mastigada pela menina. Isso apontaria, segundo Milner, o entendimento de Raquel ter um pênis dentro de si, o que teria ocasionado a dor na perna da criança, uma dor persistente.

    O banquinho, ainda, assumiu o caráter simbólico de uma defecação. Milner sublinha que a preocupação de Raquel era com relação aos seus próprios impulsos vorazes, já que, devido a esses impulsos, ela estava acometida por um sentimento de culpa e, ainda, se sentia um perigo para a mãe. A confusão entre a realidade interna e externa parece ter sido agravada por um fator externo, a saber, a segunda gravidez da mãe.

    A este respeito, Raquel manifestou o desejo de ter para si aquilo que estava dentro da sua mãe e manifestava ambivalência com relação ao feto, que queria tanto destruir como salvar. Há um momento no qual observa-se a transferência.

    A transferência

    Antes do que mais nada, vale frisar, com Laplanche e Pontalis, que transferência “designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica. Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada” (LAPLANCHE e PONTALIS, 2000, p. 515).

    Vale frisar, com os autores, a problemática inerente à definição de transferência. Isso porque a noção assumiu, para numerosos autores, uma extensão muito grande, que chega ao ponto de designar o conjunto dos fenômenos que constituem a relação do paciente com o psicanalista e que, nesta medida, veicula, muito mais do que qualquer outra noção, o conjunto das concepções de cada analista sobre o tratamento, o seu objetivo, a sua dinâmica, a sua tática, os seus objetivos, etc. E, assim, estão implicados nela toda uma série de problemas que são objeto de debates clássicos (LAPLANCHE e PONTALIS, 2000, p. 515).

    Milner relata que uma sessão começou com Raquel dando-lhe um doce e, em seguida, levou um carrinho de mão para a mãe. Segundo a analista, estes gestos representam algo como uma compensação, diante do fato de ter, anteriormente, deixado a analista esvaziada.

    A interpretação psicanalítica sobre a transferência

    Com relação à transferência, Milner enfatiza que a analista, naquele momento, representava, para Raquel, a sua mãe (da menina). Raquel, portanto, transfere a mãe em Milner antes de, mais uma vez, atribuir-lhe novamente o papel de bebê, enquanto ela, a criança, passou a representar a sua mãe (grávida) indo para o hospital.

    O fato dela ser a mãe, nesta brincadeira com Milner, revela o fato, segundo a analista, da menina se sentir culpada por esvaziar a mãe, devido à sua pulsão devoradora e, portanto, a mãe representa quem repreende e regra o bebê voraz (ela, Raquel). Neste momento, considerando a segunda tópica freudiana (1923), percebe-se que Raquel, ao “interpretar” o papel da mãe, passa a “ser” o Superego, que disciplina o ID voraz.

    Ainda, no texto, riquíssimo, pode ser verificado um ensaio (devido à idade prematura da criança) de Complexo de Electra, quer dizer, o correspondente feminino do Complexo Edipiano. O bebê, que ela sempre queria que Milner representasse nas brincadeiras, era Raquel, mas ao bebê atribuía uma voz grossa, sendo portanto, de acordo com a leitura de Milner, o pai dentro dela, da menina, satisfazendo assim um desejo sexual inconsciente, a partir do qual a mãe “começava a se tornar uma inimiga” (p. 41).

    Raquel e a relação com o pai

    Dentro de si, Raquel tinha o pai (a voz grossa do bebê), realizando a fantasia sexual infantil inerente ao Complexo de Electra, como já foi dito, de maneira precoce (pela idade da menina) e, ao mesmo tempo, ela introjetava a mãe, mas esta pela boca, de maneira voraz, devorando-a. Este engolir a mãe e tê-la dentro de si, também lhe oferecia a oportunidade de livrar-se dela (da mãe).

    Segundo o Dicionário de Psicanálise, entende-se por complexo um Conjunto de sentimentos e representações, parcial ou totalmente inconscientes, dotado de uma potência afetiva que organiza a personalidade de cada um, marca seus afetos e orienta suas ações. O termo, introduzido por E. Bleuler e C. G. Jung, foi muito pouco utilizado por S. Freud, exceto em um número restrito de casos: complexo de castração, complexo de Édipo e complexo paterno (CHEMAMA, 1995, p. 33).

    Com relação ao Complexo de Electra, presnete na interpretação psicanalítica, trata-se de uma denominação junguiana correspondente à teorização freudiana acerca do Complexo Edipiano, mas que se refere à menina com relação ao pai, ao invés do desejo inconsciente do menino para com a genitora. O Vocabulário de Psicanálise reforça a divergência existente entre Jung e Freud quanto à distinção que acabei de explanar, sendo que segundo Freud só faz sentido, na tríade parental, o antagonismo do menino com relação ao pai.

    Jung introduz o “Complexo de Electra”

    Nas palavras dos autores, Em Ensaio de exposição da teoria psicanalítica (Versuch einer Darsiellung der psichoanalytischen Theorie, 1913), Jung introduz a expressão “Complexo de Electra”. Freud declara de início não ver o interesse de tal denominação; no seu artigo sobre a sexualidade feminina mostra-se mais categórico: o Édipo feminino não é simétrico ao do menino.

    “Só no menino é que se estabelece a relação, que marca o seu destino, entre o amor por um dos progenitores e, simultaneamente, o ódio pelo outro enquanto rival”. O que Freud mostrou dos efeitos diferentes do complexo de castração para cada sexo, da importância que tem para a menina o apego pré-edipiano à mãe, da predominância do falo para os dois sexos, justifica a sua rejeição da expressão “complexo de Electra”, que pressupõe uma analogia entre a posição da menina e a do menino em relação aos pais (LAPLANCHE e PONTALIS, 2000, p. 81-82).

    Logo, Raquel sente-se um perigo para a mãe e, somando isso ao conflito sobre o bebê (a mãe dela está grávida), sente-se inadequada, malvada, cruel. O continuo cortar e despedaçar por parte de Raquel (nas brincadeiras), segundo Milner, revela seu desejo de se desfazer de sua própria maldade.

    A mulher malvada

    A mulher malvada, então, era como uma instância interna que a compelia a devorar. Só após a interpretação da mulher ruim dentro de si, é que Raquel conseguiu, enfim, demonstrar um afeto genuíno para com a mãe. Mais adiante, Milner relata acerca da conexão entre a mulher ruim e as fezes.

    Raquel tinha medo que a comida se transformasse em cocô e, logo, na mulher ruim. A autora destaca que as contínuas inversões de papéis nas brincadeiras sugerem o controle do comportamento por parte de Raquel, não sendo livre e espontânea, mas estando sempre refém das pessoas que havia colocado dentro de si (introjetado), o que, segundo Milner, revela “uma falha da defesa”.

    Desta maneira, a menina manifestava um comportamento artificial, já que não podia ser ela mesma, ou pelo menos, não completamente. O controle da Sra. Milner, por parte da criança, era como que um reflexo do controle do próprio comportamento (de Raquel) através das pessoas introjetadas, principalmente a mãe, conceitos presentes na interpretação psicanalítica.

    A defesa de Raquel

    A principal defesa de Raquel perante esta situação, de acordo com a psicoterapeuta, era a de se recusar a comer. A comida era associada pela menina à sua mãe e, portanto, Raquel sentia que, ao comer, ela ia ficar sem mãe, ou dito de outra forma, ia ser responsável pelo desaparecimento dela, tendo-a devorada.

    Logo, a associação entre mãe e comida é central com relação à perturbação (inclusive alimentar) da criança. Verifica-se, assim, a importância clínica da interpretação, na medida em que, nas palavras da autora: “e por que exatamente o fato de eu colocar esta experiência em palavras teve um efeito tão marcante em aliviar suas ansiedades e em capacitá-la a demonstrar um amor genuíno por sua mãe” (MILNER, 1991, p. 47).

    O presente artigo foi escrito pelo autor Riccardo Migliore ([email protected]). Riccardo é Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Terapeuta e Professor de Meditação (atende online e presencial). Tem formação em diversas áreas terapêuticas e de desenvolvimento humano: PNL Practitioner, Coaching, Terapia Quântica, Hipnose Clínica, formação para professor de Meditação, Gestão das Emoções, Estratégias de Inteligência emocional para alta performance, análise comportamental. Atualmente é formando em Hipnose conversacional, Master PNL Practitioner, Psicanálise Clínica e é pós-graduando em Psicanálise. Maiores informações: www.institutoportaldaalma.com

    One thought on “Interpretação psicanalítica: significado e exemplos

    1. David Ferreira da Silva disse:

      Interessantíssimo caso clínico, muito esclarecedor sobre o complexo de Electra, projeção e complexo familiar.
      Obrigado pelo artigo!

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