em defesa da psicanálise

Em defesa da Psicanálise: técnica, clínica e teoria

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Hoje falaremos em defesa da psicanálise. O desenvolvimento da modernidade colocou em cena uma nova configuração do corpo humano como indivíduo. Em outros termos colocou em evidência uma nova configuração social, política, cultural, simbólica, econômica – com o reino das mercadorias e seu fetichismo (MARX, 1985) – e psíquica chamada indivíduo em sua forma ocidental e moderna. Colocou um self (TAYLOR, 1998).

Entendendo em defesa da psicanálise

A existência dessa nova configuração e seus atos e afetos, suas noções e seu existir humanos colocaram ao mesmo tempo uma possibilidade, as condições de possibilidade de um novo entendimento desse indivíduo e sua subjetividade: a psicanálise.

Assim, a psicanálise não se desenvolve do nada, não surge pronta e acabada. Ela é devedora, por um lado, do desenvolvimento da psicologia e da psiquiatria de todo o século XIX e de pedaços de conhecimento que já vinham do século XVIII. Mas também se desenvolve culturalmente sobre essa base maior que é a configuração do indivíduo moderno. Por isso é que, entre outras abordagens, é possível pensar em Freud como pensador da cultura (MEZAN, 1985).

E sobre a base desse indivíduo moderno e suas configurações, a psicanálise, apesar de todos os campos discursivos a lhe tolherem validade como ciência – ciências cognitivas, a psiquiatria farmacológica, as neurociências entre tantas outras, tão atacada diante do debate em torno do livro Que Bobagem! (PASTERNAK; ORSI, 2023) – continua sendo a mais poderosa arma ou artefato intelectual e técnico desenvolvido no ocidente para entender justamente este indivíduo (BIRMAN, 2012) forjado pelas condições históricas também deste mundo ocidental e seus problemas.

Em defesa da psicanálise e Freud

E quando se fala em problemas pensamos na psicanálise não apenas como campo de um eu perdido na clínica, questões envoltas na psicologia do eu (ego ou na tradição dos escritos de Freud, simplesmente Ich em alemão), da tradição da ego psychology dos EUA. Pensamos na clínica também e isto é importante: a psicanálise podendo ainda e cada vez mais dar respostas a problemas extremamente atuais em uma sociedade marcada por este vazio ou falta que não se preenche.

Por isso, podemos reencaminhar questões que pareciam perdidas em um positivismo biológico do XIX e falarmos com propriedade das psicopatologias do social (SAFATLE et al, 2018). A psicanálise como clínica também, pois há em seu bojo toda uma episteme pronta para dialogar com tantos outros discursos: filosofia, economia, sociologia, antropologia entre tantos.

Neste ponto é essencial colocar algumas questões sobre ciência e qual ciência é a psicanálise. Essa colocação torna-se fundamental ao supor uma possível interpretação da psicanálise como uma técnica do indivíduo. Indivíduo, insiste-se neste ponto, como determinada construção histórica.

O positivismo científico

Em primeiro lugar Freud, mesmo vindo do século XIX em tendo vivido e presenciado o positivismo científico do mesmo e pensar ciência nos modelos da física e da biologia do XIX (MEZAN, 2014) – demonstrando os enormes progressos que eram feitos nestes campos discursivos e suas narrativas – era um pesquisador e cultor em sua língua. A psicanálise exerce seu trabalho com palavras e por isso não podemos desprezá-las: os significantes postos por estas são essenciais na configuração das ideias e dos conceitos que formamos sobre algo.

Ao falar em ciência, Freud usava a palavra alemã Wissenschaft que possui sentido muito mais amplo do que ciência positiva ou empírica no sentido anglo-saxão e sua tradição empirista. A Wissenschaft coloca exatamente essa expressão de algo construído e articulado em vários campos, trespassando e interpenetrando vários campos do saber, campos discursivos.

Neste sentido, o grande valor que Freud – bem como outros psicanalistas – dava às artes, à poesia, à música, à escultura, à pintura, à história. E este é outro conceito caro à língua e à cultura alemã especialmente no XIX: o conceito de formação, Bildung. Aos que rejeitam à psicanálise seu estatuto científico e o dilema, então, perdem essas especificidades próprias da formação alemã e o que Freud dizia quando insiste em ser cientista (MCGRATT, 1988, p. 15).

Em defesa da psicanálise e o aparelho psíquico

Dentro desse escopo inicial e determinativo, podemos inscrever a psicanálise como técnica no sentido de entender essa individualidade moderna. Uma técnica específica que permite configurar aparatos novos para uma subjetividade advir e tentar ao menos lidar melhor com seus diversos extratos ou instâncias do aparelho psíquico. Uma questão problemática é o entendimento do significado de técnica e seu correlato, tecnologia.

Não há espaço e nem intenção neste pequeno escrito para tentar expor uma definição de técnica e tecnologia. Apenas deixaremos indicação e breve definição da técnica e tecnologias como determinada linguagem humana, como outras linguagens (DOTI, 2008; 2018a; 2018b; 2018c; 2018d). Música, pintura, escultura e outras são linguagens.

A técnica é também uma linguagem, melhor, e sempre no plural, linguagens. São linguagens a modificar e integrar, interferir e transformar nossa existência em todas as formas possíveis. É neste sentido que a psicanálise é uma técnica própria e elaborada em determinado momento histórico.

Afetos

E como este momento histórico não só não se extinguiu, mas se acentuam as linguagens e formas de exploração dos afetos e seus desdobramentos (inclusive na política e na venda incondicional de desejos na forma de coisas, informações e percepções) é nossa opinião ser tal técnica extremamente atual e importante para se inserir não só como clínica, mas também como clínica e além, colocar-se no debate intelectual do momento.

Apesar da formação da noção de indivíduo moderno e desse indivíduo ser portador de um Eu, conhecemos a asserção de Freud sobre o Eu não ser senhor em sua casa, ser apenas uma pequena parte do aparelho psíquico. Esse Eu seria construção psíquica sem perder suas particularidades históricas tipicamente construídas no ocidente e, então, justamente por essas características éticas, morais, comportamentais, instâncias desejantes construídas no ocidente e prevalente no mundo por onde a cultura ocidental se espraiou, o Eu ser um sintoma (SAFATLE, 2015).

Ao encontrar-se no mundo esse Eu da consciência, é uma consciência orientada (poder-se-ia estabelecer um paralelo com a fenomenologia, mas extrapola o tema deste escrito) de estar no mundo. No entanto, esta consciência, este Eu, não se reconhece como parte, apenas parte do aparelho psíquico.

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    A consciência em defesa da psicanálise

    A clínica coloca-se como processo sócio-histórico, não somente um perder-se do eu diante do analista. Porém, por meio do trabalho deste e de sua formação é que essa consciência como Eu encontra seus limites, suas potências e a potência do inconsciente e de suas partes mais profundas, o isso. Optamos por usar isso ao invés de id, dando vazão ao fato de Freud usar vocabulário cotidiano e ser um cultor da língua, não à toa ganhando o prêmio Goethe. Freud usa o vocábulo da terceira pessoa do singular neutro em alemão, simplesmente Es.

    Neste sentido encontramos costumeiramente a expressão sobre o “trabalho psicanalítico”. Por exemplo, na conversão histérica há uma enorme dificuldade para quem, fenomenologicamente apenas, coloca-se a observar os sintomas e lhes atribuir um sentido. Aquilo que se manifesta no corpo como somático é o resultado de uma dificuldade de elaboração por quem vive a conversão.

    O “trabalho da psicanálise”em defesa da psicanálise, sua técnica como linguagem de compreensão desse Eu que sofre e não fala com a fala que entendemos no dia a dia, com a fala ordinária, é justamente entender essa configuração possível de si do sofredor que é da ordem doas afetos, sempre relegados a segundo plano enquanto se formava o Eu ocidental e a filosofia racionalista que acompanharia a mesma, como a filosofia de Descartes (BIRMAN, 2003).

    Conclusão em defesa da psicanálise

    Caberia à psicanálise como técnica e seu analista esse movimento: o uso dessa linguagem própria como técnica e a elaboração e investigação do que acontece e faz sofrer o sujeito.

    Referências bibliográficas

    BIRMAN, Joel. Freud e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2003.

    _______________ O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

    DOTI, Marcelo Micke. Sociedade, natureza e energia: condições estruturais e superestruturais de produção no capitalismo tardio. São Paulo: Editora Edgard Blucher, 2008.

    _______________ “Onde começa a EPT”. In: FREIRE, E.; VERONA, J. A.; BATISTA, S. S. S. Formação Tecnológica: extensão e cultura. Jundiaí: Editora Paco, 2018a.

    _______________ Tecnologias como linguagem: configurações atuais da sujeição e dominação. In: II SIMPÓSIO NACIONAL EDUCAÇÃO, MARXISMO, SOCIALISMO, n. II, 2018b, Belo Horizonte, UFMG. Disponível em < https://www.simposioedumarx.com.br/trabalhos-completos-mesas-de-discus> Acesso em: 23 de outubro de 2018.

    _______________ A sujeição atual: a captura dos afetos pela super-realidade. In: ANAIS DO XI CONGRESSO INTERNACIONAL DE TEORIA CRÍTICA. Araraquara, Unesp/FCL, dias 1 a 5 de outubro de 2018c.

    _______________ “Técnica como linguagem e escrita do mundo”. In: Revista Eletrônica de Tecnologia e Cultura (RETC). Jundiaí, 22ª edição, parte II, dezembro de 2018d.

    MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I, O processo de produção do capital (Tomo 1). São Paulo: Nova Cultural, 1985.

    MCGRATT, William J. Política e histeria: a descoberta da psicanálise por Freud. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.

    MEZAN, Renato. Freud, penador da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

    _______________ Que tipo de ciência é, afinal, a psicanálise? In: O tronco e os ramos: estudos de história da psicanálise. São Paulo: Companhia da Letras, 2014. P. 543-575.

    PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Editora Contexto, 2023.

    SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, o desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

    SAFATLE, Vladimir; SILVA JÚNIOR, Nelson; DUNKER, Christian. Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

    TAYLOR, Charles. As fontes do “self”: a construção da identidade moderna. 4 ed. São Paulo: Edições Loyola, 1998.

    Este artigo foi escrito por Marcelo Micke Doti. Professor e pesquisador em regime integral (RJI) do CPS (CEETEPS) do Estado de São Paulo na Faculdade de Tecnologia (Fatec/Campus de Araraquara/Mococa), psicanalista (IBPC/Campinas e Espaço Lacan/Sedes Sapientiae) e onívoro intelectual. Formado em Ciências Econômicas (Unesp/FCLAr) estudando a problemática e dimensões do trabalho em Marx. Mestrado em Filosofia Política (Unicamp/IFCH) e em Sociologia (Unesp/FCLAr) abordando a “Ontologia do Ser Social”, o conceito de irracionalismo e os problemas advindos desses conceitos e G. Lukács. Doutorado em Planejamento de Sistemas Energéticos (Unicamp/FEM) defendendo tese sobre filosofia da natureza, espaços antropogênicos e os problemas da civilização atual seguindo no pós-doutorado em Pesquisas Energéticas (UFABC/CECS) com mesmo tema. O foco central está nas interfaces de sujeito e sociedade tentando apreender as estruturas atravessadoras da subjetiva, ou seja, a construção das subjetividades e suas potencialidades de emancipação. Destaca-se neste ponto também a compreensão do mundo do trabalho e os processos e potenciais de empregabilidade do aluno/egresso do “Centro Paula Souza” (CPS). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9657-6626

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