A posição do fetiche e o fetiche do corpo transgênero se estabelece na erotização fantasiosa do objeto não possuído.
Entendendo o fetiche do corpo transgênero
Frequentemente, a natureza do não-possuído é caracterizada por uma marginalização sociocultural, que lhe confere um status proibitivo. Aqui se enquadram sujeitos cuja própria humanidade é posta em xeque a partir da lógica binária Humano versus Inumano e atos moralmente condenados, como o incesto, o sexo entre indivíduos do mesmo sexo e a relação sexual com prostitutas. Essa construção estabelece uma lógica de exotização dos corpos marginalizados.
Isso, por sua vez, cria um estigma de estranhamento que desperta ao mesmo tempo curiosidade e nojo. Tal manifestação opera como um expoente da maneira como a sociedade contemporânea e, sobretudo, como a psiquê humana elaborou a divisão dos corpos. Em uma face da moeda se dispõem aqueles “dignos de amor” e do outro, o que é dito “monstruoso”.
Como Freud pontuou, especialmente a mentalidade masculina é imbuída desde muito cedo com a ideia de que há aquelxs que se podem amar, mas jamais fazer sexo e aquelxs com os quais se pode fazer sexo, mas jamais amar. O primeiro lugar é ocupado por uma parcela estreita de personagens cis, brancos e heterossexuais. O segundo, abarca a massa inumanizada de gentes LGBTQIA+, multirraciais e pobres, cuja existência têm permanecido ignorada séculos a fio.
O tabu da sexualidade
Evidentemente, o primeiro traço neurótico a ser analisado na mentalidade que analisamos é a ideia de que Amor e Sexo são elementos não correlacionados. Digo assim porque podem se relacionar ou não, porém, nessa perspectiva de visão, estão plenamente divididos. Mais além de uma perspectiva marcada pelo preconceito estrutural, podemos observar que essa divisão é, na verdade, um processo resultante do tabu socio-religioso elaborado em volta da sexualidade. Em meio a um marcante puritanismo religioso, determinados sujeitos foram designados a papéis sociais previamente estipulados.
Assim, o privilegiado papel de dominância da masculinidade (e acima de tudo, da masculinidade branca) encontrou seu lugar de acolhimento na vida domestica regimentada sob a efígie da mulher branca e construída sobre a existência de grupos explorados. No Brasil colonial esse fato foi preponderante com o advento da escravatura dos africanos trazidos para essa terra. Isso estipulou um jogo social de iguais e diferentes, que foi endossado pelo catolicismo vigente.
Nesse jogo, o dominante era (e permanece sendo) observado a partir do arquétipo da normalidade e os demais grupos dominados (aqui entram também as mulheres brancas e principalmente as negras e indígenas) são postos sob um signo de alteridade. O estranhamento desse outro, pois, favorece uma curiosidade que dialoga com as relações de poder e dominação. Antes de se desejar conhecer o ignorado do corpo desconhecido, há, portanto, o desejo de impor a própria existência individual ao outro. É essa relação o marco fundamental da violência contra os corpos marginalizados.
O horror ao diferente e o fetiche do corpo transgênero
No que toca a existência dos corpos transgêneros, há um dialogismo imanente que segrega sua existência como Não-Humana. Isto é, se de um lado há os corpos cis reconhecidos como “naturais”, do outro, há os corpos trans(gressores) postos à margem sob pretextos supostamente científicos ou religiosos. Assim sendo, hipóteses como a transgeneridade ser produto de violência sexual na infância ou de transtornos dissociativos são levantadas e defendidas pelo público leigo.
É sumamente importante aqui a atuação dos profissionais da saúde mental para desassociar a existência da pessoa transgênero de problemas psicológicos. Além desse fato, com a ascensão do conservadorismo político e cultural no Brasil desde o final do governo de Dilma Rousseff, movimentos de ódio ao diferente vem ganhando força novamente.
Sobretudo, aqui é vital esclarecermos que a atuação do governo atual sobre tal violência (ainda que não a incite diretamente, matéria que é discutível) falha em ser conivente com uma estrutura de organização social segregacionista. Logo, a escusa pessoal não invalida o discurso de ódio promovido na gestão de Jair Bolsonaro. O que viso dizer aqui é que a cultura já estabelecida no Brasil contemporâneo teve por elemento constituinte o ódio ao diferente. Portanto, a violência contra o corpo que transgride a “ordem” é imanente e a luta contra a segregação é necessariamente algo contínuo.
Entre o exótico e o erótico: o fetiche do corpo transgênero em foco
Não é caso de surpresa, entrementes, que o indivíduo posto à margem da criação seja um objeto de curiosidade. Na mesma medida que o corpo trans é estranhado no seio da sociedade, assim também se alimenta para com ele o desejo (que advém justamente da curiosidade). É precisamente aqui que se desenvolve o fetiche, pois a relação com tais pessoas é colocada como algo “impuro”, “sujo” e “pecaminoso”; é justamente nesta antítese que se apresenta o dialogismo da humanidade contra si mesma.
Isto é, com base na teoria psicanalítica, o desejo e o desprezo, como dois opostos, permanecem em todas as relações. O amor e o ódio representam epítomes da humanidade, pois a ambivalência também é constituinte. Logo, na mesma medida que a pessoa transgênero é exotificada, ela também é erotizada. Essa é uma relação de extrema violência baseada em uma lógica de poder e opressão.
Afinal, a individualidade do sujeito é, em ordem: negada para que ele se enquadre em algo que não é; depois, ferida por elx ser quem é; adiante, marginalizada e, finalmente, eliminada, quando a pessoa trans é posta como um objeto a serviço de outrem. Naturalmente que há excepções ao que apresentei aqui. Todavia, uma vez que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, parece-me que a urgência da presente discussão é inalienável.
Conclusão
Nesse artigo falamos sobre a posição do corpo (e da pessoa) transgênero no Brasil. Analisamos o binômio sociocultural existente no Brasil que divide os sujeitos como Humano e Inumanos e também observamos como isso se relaciona com o ódio ao diferente.
Ao longo de nosso artigo, observamos que a exotização da pessoa trans se relaciona intimamente com a erotização de seu corpo através do fetiche e da ambivalência entre desejo e desprezo. Também observamos que a ascensão da direita conservadora significou um grande avanço para os discursos de ódio presentes na sociedade brasileira contemporânea.
Sobretudo, a presença de Jair Bolsonaro na presidência e seu reticente silêncio para com as causas LGBTQIA+ endossaram as narrativas transfóbicas no país. Finalmente, ponderamos que a lógica de exclusão e objetificação da pessoa trans é uma violência contra sua identidade e o próprio domínio dela para com seu próprio corpo.
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O presente artigo foi escrito por Ariel Von Ocker([email protected]). Escritora, psicanalista, poliglota e acadêmica de Letras e História. Também já trabalhou no teatro como dramaturga e ator. Com catorze anos escreveu seu primeiro romance e por anos seguiu escrevendo sem publicar, até que em 2021 se torna colunista no maior blog sobre psicanálise em língua portuguesa com o texto de estreia Representações Sobre o Feminino: Um Olhar Histórico. Atualmente se dedica à formação acadêmica e à divulgação da arte e do conhecimento através da iniciativa Projeto Simbiose, no qual atua no núcleo de direção em parceria com Michelle Diehl e Cristina Soares e da Revista Ikebana, onde atua como editora-chefe. Também é autora do livro Canções da Tarde, disponível para compra através do link: https://www.amazon.com.br/dp/B09NTYWQ6Z.
2 thoughts on “Fetiche do corpo transgênero”
Discordo em muito o que foi dito.
E um assunto muito complexo! Falou tanto em Jair, que ficou parecendo “fetiche” do Bolsonaro.