Vamos abordar o conceito da origem do inconsciente, um verdadeiro e único discurso que podemos ouvir de melhor, na clínica psicanalítica. Esta abordagem é relevante pois o próprio Freud estabeleceu o Inconsciente como pilar da Psicanálise, ao incluí-lo como um dos fundamentos de sua teoria, alertando categoricamente que “quem não estiver em condições de subscrever todos eles, não deve figurar entre os psicanalistas”.
Subscrever a resistência e o recalcamento, é subscrever o inconsciente, já que estes são mecanismos onde o mesmo tem o papel principal, sendo quase impossível explicar a uns sem considerar o outro. A importância sobre a sexualidade e o complexo de Édipo foi relativizada por uns e reinterpretada por outros; ficando, portanto, o Inconsciente como o “falo de poder” da Teoria Psicanalítica, uma das maiores contribuições da ciência para o entendimento da complexa humanidade do ser humano.
Entendendo a origem do inconsciente
Como objetivo, buscaremos neste trabalho sobre a origem do inconsciente demonstrar que Freud e Lacan nunca se desviaram em considerar o Inconsciente como a mola mestra de suas teorias. Freud mesmo considerou que sua obra “A Interpretação dos Sonhos (1900) ” – um verdadeiro tratado do Inconsciente -, inaugurou a Teoria Psicanalítica, a despeito de muitos outros autores considerarem o “Estudo sobre a Histeria (1893 – 1895) ” como marco inicial. Lacan por sua vez enunciou brilhantemente seu desejo de restaurar a Teoria Freudiana, por meio da Estrutura de Linguagem, mantendo o inconsciente como a bandeira hasteada de seu reconhecimento pelas descobertas do fundador da Psicanálise. Na primeira parte do trabalho sobre a origem do inconsciente, abordaremos a visão freudiana do Inconsciente, e suas repercussões na Teoria Psicanalítica. Na segunda parte, focaremos a abordagem de Lacan sobre o Inconsciente estruturado como Linguagem e sua contribuição para o renascimento da Psicanálise.
E na terceira parte do trabalho sobre a origem do inconsciente, enfatizaremos a importância da escuta do inconsciente, como a principal ferramenta de trabalho do psicanalista em sua clínica diária. Descreveremos as partes citadas com os seguintes títulos sobre a origem do inconsciente:
A metodologia empregada neste texto sobre a origem do inconsciente foi a pesquisa bibliográfica abaixo:
- Obras Completas, Volumes IV, V e XIX– Freud, Sigmund;
- Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da Clínica Psicanalítica – Freud, Sigmund;
- Seminário 1 – Os escritos técnicos de Freud – Lacan, Jacques;
- Seminário 11 – Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise – Lacan, Jacques
- Escritos – Lacan, Jacques;
- Dicionário de Psicanálise – Roudinesco, Elisabeth; Plon, Michel;
- Vocabulário de Psicanálise – Laplanche&Pontalis;
- Fundamentos da Técnica Psicanalítica – Fink, Bruce;
- Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan 1 e 2 – Jorge, Coutinho.
- Videografia: Canal do YouTube Falando Nisso – Christian Dunker.
A origem do que fazemos de melhor e a origem do inconsciente
Querer realizar uma pesquisa historiográfica sobre a descoberta do inconsciente seria um típico sintoma de narcisismo, diante da obra louvável de Roudinesco em seu “Dicionário de Psicanálise”. Ao mesmo tempo, fica impossível deixar de escapar um chiste, sobre a necessidade da autora em identificar primeiro, que Freud não foi o primeiro, a descobrir a existência do inconsciente. Parece que a necessidade de ser o primeiro em algo é mais o sintoma de uma do que a prioridade do outro, já que logo em seguida é dado ao fundador da psicanálise, o crédito de conferir ao Inconsciente uma significação muito diferente das conhecidas até então. Dentre todas as referências mencionadas desde Lancelot Whyte, a mais interessante é a de René Descartes que em pleno século XVII, ousou proclamar o dualismo entre corpo e a mente “ que levou a fazer da consciência o lugar da razão, em contraste com o universo da desrazão”. (ROUDINESCO, 1998, p.389).
Daí por diante, aqui sobre a origem do inconsciente, se segue uma avalanche histórica de depreciação ao inconsciente, que vai desde “forças destrutivas” por Pascal e Spinoza até o “lado sombrio da alma humana” por Schopenhauer e seus colegas. O Inconsciente como a origem do que fazemos de melhor é, portanto, um pensamento genuinamente freudiano. Mesmo tendo se encontrado com o Inconsciente em meio a doença nervosa incompreendida e desqualificada pela ciência médica de sua época, Freud não o condenou com mais uma maldição, mas soube dissecar de suas entranhas, a fonte da vida subjetiva do ser humano. Tudo bem que Theodor Lipps já teria considerado antes de Freud, em sua obra “Os fatos fundamentais da vida psíquica (1883) ”, que os processos psíquicos seriam inconscientes. Ainda bem que os maiores descobridores da humanidade partiram do passo em que outros, por um motivo ou por outro, ficaram pelo caminho. Se cada cientista tivesse que iniciar sempre do zero, provavelmente ainda estaríamos escrevendo nossos progressos em papiros, iluminados por fétidos lampiões movidos a óleo de baleia.
Vale a pena ressaltar na origem do inconsciente que essa evolução nas descobertas sobre a importância do Inconsciente, parte de uma “comemorada” deficiência de Freud com a prática da hipnose. Mesmo tendo criado uma nova metodologia de abordagem dos pacientes por meio de “livres associações”, que se mostravam muito mais promissoras do que a hipnose e suas meras ordens ou proibições sugestivas, dependentes que eram da predisposição do paciente por um lado, e uma barreira para a verdadeira compreensão das doenças e seus sintomas por outro, muitos vibram ao “revelar em primeira mão” que Freud era um péssimo hipnotizador e por isso abandonou a técnica em sua clínica. Não fosse essa “deficiência” e ganharíamos de presente de formatura, um relógio de bolso, como símbolo maior de nossa técnica, em curar o inconsciente sugestionável de todo pobre diabo que sofre de doenças nervosas. Mas Freud não desistiu.
O Modelo Topográfico (1900)
Impactado que estava pela possibilidade de haver muitos fatores que influenciariam o desenvolvimento psíquico do ser humano, a própria existência do inconsciente e o recém formulado conceito de pulsão, se dedicou a elaborar modelos, teorias e concepções, mesmo com o impeditivo de não poder provar seus constructos cientificamente. Suas observações clínicas eram tão consistentes, que os pressupostos científicos se tornaram preconceitos burocráticos, do que poderia ser compreendido a partir de suas descobertas. Em seu “Modelo Topográfico (1900) ”, surge a primeira descrição da origem do inconsciente como a Instância mais arcaica do recém modelado Aparelho Psíquico, constituído de lembranças primitivas, experiências e sensações da infância originadas na interação com o mundo exterior; a sede das pulsões e de toda a energia psíquica que movimenta o ser humano; aquela que não apresenta racionalidade, sendo a origem do inconsciente regida pelo princípio do prazer; e o destino de todas as interações não resolvidas e recalcadas, as custas de uma energia pulsional capaz de se vincular a outras representações, para descarregar seu afeto em sonhos, sintomas, chistes e lapsos.
Entendo que Freud se debruçou sobre a interpretação dos sonhos, por ser esta a manifestação mais fisiológica do inconsciente, na qual poderia encontrar o desejado entendimento do funcionamento da psique humana, sem a necessidade de atrelar os novos conceitos às manifestações patológicas da mesma. “Os sonhos são atos psíquicos tão importantes quanto quaisquer outros; sua força propulsora é, na totalidade dos casos, um desejo que busca realizar-se; o fato de não serem reconhecíveis como desejos, bem como suas múltiplas peculiaridades e absurdos, devem-se à influência da censura psíquica a que foram submetidos durante o processo de sua formação” (FREUD, Volume V, 1900, pag. 130).
Muita coisa precisava ser explicada: a dinâmica entre as instâncias do Aparelho Psíquico; os processos primários e secundários; as representações de coisa e de palavra; o funcionamento do aparelho propriamente dito, as fronteiras e as linguagens de comunicação entre as instâncias e etc. Certamente que um cadáver e um bisturi não seria útil para suas escavações, tão pouco seria útil apenas a observação do estado de vigília, encoberto que sempre esteve, das verdadeiras pulsões que regem a interatividade objetiva e subjetiva do ser humano. Sendo assim, Freud abriu e pavimentou a estrada que leva ao Inconsciente, a “dream highway”, avançando quilômetros em compreensão do funcionamento do Inconsciente.
O material dos sonhos
Somente no item (B) O MATERIAL DOS SONHOS – A MEMÓRIA DOS SONHOS (FREUD, Volume IV, 1900, pág.19), daria para desenvolver um tratado de inovação no funcionamento da psique humana, já que Freud ousou ir na direção contrária às duas principais correntes de interpretação dos sonhos na origem do inconsciente, a Interpretação Simbólica e o Método de Decifração, que revelavam os eventos oníricos como um processo de entendimento do futuro, enquanto o pai da psicanálise, fundamentou suas considerações sobre o entendimento das marcas do passado do indivíduo. Fora os Estímulos Sensoriais que se caracterizam por perturbações do externo e/ou interno durante o sono, os Restos Diurnos e os Conteúdos Inconscientes são “radiografia” e “ressonância” do passado do sonhador, que podem apresentar aos olhos bem atentos, alterações significativas no equilíbrio psíquico, causadas por “lesões de recalque” em suas interações com o ambiente interno e externo.
Na medicina da época de Freud e na origem do inconsciente, tudo se explicava por meio de mecanismos de ação. Desde a singularidade da anatomia de indivíduos que nasciam em regiões diferentes do planeta, passando pela fisiologia de todos os sistemas, as alterações patológicas e opções terapêuticas, o funcionamento humano ficava mais claro e científico, quando declarado por meio da mecânica que os definia. Talvez o principal motivo desta tendência, tenha sido o ambiente positivista em que vivia o mundo naquele momento, contrapondo aos séculos de escuridão proporcionados pela ênfase sobrenatural cultuada na Idade Média, que deixou suas marcas até hoje em nossas lembranças primitivas. Médico por opção, Freud não escapou à linha de raciocínio de seus colegas e descreveu no item (B) REGRESSÃO (FREUD, Volume V, 1900, pag. 129), os principais mecanismos de ação que mobilizam o Aparelho Psíquico durante o sono, para revelar os afetos não resolvidos carregados de energia, que tentam surgir de maneira indireta na tela do Consciente e na origem do inconsciente, estando este durante os sonhos, desarmado de suas consequências físicas.
E por que haveria de ter no Aparelho Psíquico e na origem do inconsciente, uma barreira de censura para “esconder” do Consciente o que foi enviado ao Inconsciente por recalque e que insistiria em voltar ao primeiro por “estratégia de camuflagem”? Mesmo parecendo a sinopse de filme de suspense, essa complexidade de mecanismo é bastante comum no funcionamento dos principais sistemas do corpo humano. A Teoria de Comportas da Dor dos cientistas ingleses Ronald Melzack e Patrick David Wall de 1965, é um exemplo bem interessante desse tipo de “mecanismos de especificidade” que teve seu início em 1644, por ninguém menos que René Descartes de quem falamos a pouco, teorizando que a dor possuía um canal direto de ligação da pele com o cérebro. Mais de três séculos depois, os ingleses comprovaram a teoria do pensador francês, ao integrar respostas fisiológicas e psicológicas na manifestação da dor na origem do inconsciente. Faltava responder à pergunta principal que move o desejo do desejo de todo cientista: POR QUE sonhamos? A resposta estaria justamente na realização de um desejo. No item (C) REALIZAÇÃO DE DESEJOS (Idem, pag. 140).
A origem do inconsciente para Freud
N origem do inconsciente, Freud se ocupa então de validar todos os constructos anteriores pela perspectiva da realização dos desejos. Aqui temos um bom exemplo de sua seriedade na elaboração das teorias, pois a cada item, todos os demais eram validados, aprimorados ou excluídos em prol da consistência de todo projeto, que era sempre observável em suas experiências clínicas e representadas por diversos exemplos práticos do atendimento de seus pacientes. Partir do zero nunca é tarefa fácil e Freud não economizou na elaboração dos detalhes. A descrição se inicia nas três possíveis origens para os desejos; que tipos de sonhos podem originar; as cinco origens possíveis para as moções de pensamento que interferem na realização dos desejos durante o dia e as variantes das origens dos desejos. Fazendo o papel de advogado do diabo, não escapou nem a dúvida sobre os sonhos de angústia, afinal quem a desejaria para ser realizada: “Acrescentarei apenas que os sonhos de punição não estão sujeitos, em geral, à condição de que os restos diurnos sejam de tipo aflitivo.
Ao contrário, ocorrem com mais facilidade quando se dá o oposto – quando os restos diurnos são pensamentos de natureza satisfatória, mas a satisfação que expressam é proibida” (Idem, pág. 146). A Interpretação dos Sonhos segue oferecendo todas as explicações necessárias para o entendimento do Aparelho Psíquico em sua primeira tópica e tem seu fechamento com uma das famosas frases de “tiro de misericórdia” de Freud, para os frágeis pensamentos anteriores sobre temas importantes, intolerante que era para constructos apenas baseados em pressupostos ideológicos: “ Quanto ao valor dos sonhos para nos dar conhecimento do futuro? Naturalmente, isso está fora de cogitação. Mais certo seria dizer, em vez disso, que eles nos dão conhecimento do passado, pois os sonhos se originam do passado em todos os sentidos. Não obstante, a antiga crença de que os sonhos preveem o futuro não é inteiramente desprovida de verdade. Afinal, ao retratarem nossos desejos como realizados, os sonhos decerto nos transportam para o futuro.
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Mas esse futuro, que o sonhador representa como presente, foi moldado por seu desejo indestrutível à imagem e semelhança do passado” (Idem, pág. 186). Entre uma tópica e outra na origem do inconsciente, surge uma publicação que marcaria para sempre a Teoria Psicanalítica, na forma de um pesadelo capaz de assombrar Freud e todos os seus sucessores, os famosos “Três Ensaios sobre a Sexualidade (1901 – 1905) ”. Como teria sido o desenvolvimento da Psicanálise e da origem do inconsciente se a sexualidade fosse considerada por Freud, assim como os sonhos, um ato psíquico tão importante quanto qualquer outro; sendo sua força propulsora, na totalidade dos casos, um desejo que busca realizar-se? Difícil dizer, mas inebriado por suas observações irrefutáveis, o fundador decidiu chamar a pulsão sexual de pulsão da vida, o que se constituiu num dos poucos casos de unanimidade na história da pesquisa científica: ninguém concordou. Coutinho Jorge menciona em sua obra “Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan”, a opinião do próprio Freud sobre “Os Três ensaios”, em carta envida a Abraham em 1908, considerando a mesma, como uma realização de valor comparável “A Interpretação dos Sonhos” (COUTINHO, JORGE, Volume 2, 2010, pag. 18).
O Inconsciente e a Pulsão
Claro que Inconsciente e Pulsão são pares inseparáveis, como a necessidade do côncavo para explicar o convexo, mas foi muito para uma sociedade científica que estava tateando sobre a sexualidade humana, obscurecida pelo objetivo do que nela poderia se considerar normal e patológico. Numa dolorosa Inversão, sem cunho sexual, seus amigos se afastaram e os inimigos se aproximaram para o golpe fatal na frágil teoria psicanalítica, em formação. Freud na origem do inconsciente havia se tornado general de um exército reduzido, lutando uma guerra em dois frontes, ao mesmo tempo. Reverberando este embate, Coutinho Jorge continua a mencionar as consequências da “Teoria da Sexualidade” nas palavras do psicanalista brasileiro Jurandir Freire Costa: “A importância dada ao sexo, por Freud, é entendível não por ser ele o representante das qualidades elementares ou originárias do psiquismo, mas por fatores históricos ligados à invenção da psicanálise” (Idem, pag.20), de certa forma questionando até mesmo as intenções do fundador.
Na mesma página encontramos a citação do autor a Pontalis, que enumera com desenvoltura a lista dos que produziram uma restrição teórica da sexualidade no campo da psicanálise: Melanie Klein, Fairbairn, Winnicott e Kohut, concluindo: “sem dúvida, Lacan constitui uma exceção”. Com a publicação de “Os chistes e a Sua Relação com o Inconsciente” em 1905, logo após “Os Três ensaios”, Freud retoma seu foco para a origem do inconsciente, e só após quase 20 anos, elaborou a Segunda Tópica publicada no volume XIX de sua obra completa, intitulada “O Ego e o ID e outros trabalhos” de 1923 – 1925, considerado pelo editor inglês como “o último dos grandes trabalhos teóricos de Freud”. Nessa teoria chamada de ”Estrutural”, a ênfase vai para as interações constantes das instâncias psíquicas no funcionamento pleno de todo o Aparelho Psíquico. Basicamente o ID agora se torna a instância mais arcaica e primordial, mergulhada exclusivamente no Inconsciente; o EGO a instância mais importante, com parte Inconsciente (mecanismo de defesa), “Pré-Consciente” (mecanismos de mediação) e Consciente (mecanismos de adaptabilidade ao mundo externo); e o SUPEREGO igualmente “tri-estrutural” com suas regras recalcadas, internalizadas e conscientes.
Na minha humilde opinião esta é a mais fantástica definição metafísica desenvolvida pelo ser humano para explicar o mecanismo de funcionamento de nosso psiquismo. É tão clara, evidente e ao mesmo tempo esclarecedora, que dá quase para pega-la nas mãos e examinar camada por camada. No tópico desta obra descrito como NEUROSE E PSICOSE, Freud relata ter lhe ocorrido uma fórmula simples, que explica a diferença na origem da neurose e da psicose: “a neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo” (FREUD, Volume XIX, 1923-1925, pag. 89). Este é um marco fundamental para a Teoria Psicanalítica, pois a maioria do que se é possível diagnosticar, é possível igualmente se tratar. O que Lacan poderia chamar de “nó borromeano da teoria freudiana” estava se fechando em uma estrutura com começo, meio e fim.
O origem do inconsciente e as estruturas psíquicas
Restava agora o fortalecimento da origem das Estruturas Psíquicas, para encaixar a metodologia da livre associação e conduzir o paciente a elaboração da cura de seus males. Como é típico da estrutura da personalidade do fundador, Freud aproveitou a textura macia e bem aceita do filé de “O Ego e o ID” para cravar o osso duro do complexo de édipo de “Os Três ensaios”, como o ato final da formação da Estrutura Clínica do Indivíduo em Neurose, Psicose ou Perversão. A resolução do drama edipiano em Freud, daria com certeza, várias monografias sob diversas perspectivas, o que não é o nosso objetivo. Voltando para as Estruturas Clínicas, os principais escudeiros de Freud, Jean Laplanche e Jean-Bertrand Lefebvre Pontalis se encarregaram de trazer as Estruturas Clínicas freudianas até a atualidade. Suas definições são ao mesmo tempo categóricas e abertas às possibilidades de mudanças e variações, como desejava o fundador.
Na definição de Neurose, no excelente “Vocabulário da Psicanálise” de 1998, temos: “Afecção psicogênica em que os sintomas são a expressão simbólica de um conflito psíquico que tem raízes na história infantil do sujeito e constitui compromissos entre o desejo e a defesa. (…) atualmente tende-se a reservá-lo, quando isolado, para as formas clínicas que podem ser ligadas à neurose obsessiva, à histeria e à neurose fóbica”. (LAPLANCHE&PONTALIS, 2001, pag. 296). Definição dada, os franceses alertam para a necessidade de um levantamento histórico da transformação da noção de neurose, de cultura para cultura, a fim de colocar as ideias em ordem, não sem reconhecer que as considerações de Freud na passagem do século XIX para o XX, são tomadas ainda hoje como válidas. Sem dúvidas um belo significante para o tema. Para a Psicose, os franceses reservaram: “(…) a psicanálise procurou definir diversas estruturas: paranoia (onde inclui de modo bastante geral as afecções delirantes) e esquizofrenia, por um lado e por outro, melancolia e mania.
Fundamentalmente, é numa perturbação primária da relação libidinal com a realidade que a teoria psicanalítica vê o denominador comum das psicoses, onde a maioria dos sintomas manifestos (particularmente a construção delirante) são tentativas secundárias de restauração do laço objetal” (Idem, pág. 390). Aqui podemos observar nas entrelinhas, os autores mantendo a mesma distância da psicose que Freud construiu. Primeiro que Freud tinha a plena certeza que a psicose era uma “tentativa de cura” da percepção de uma realidade inaceitável, e que trazer o paciente para um novo contato consciente com esta, de nada contribuiria com a saúde mental do psicótico e que este, portanto, não seria um campo para a psicanálise, que necessita de um Aparelho Psíquico com capacidades mínimas de retomar o controle egóico. Para a polêmica Perversão, temos como definição, na mesma obra: “Desvio em relação ao ato sexual “normal”, definido este como coito que visa a obtenção do orgasmo por penetração genital, com uma pessoa do sexo oposto.
A perversão e os objetos sexuais
Diz-se que existe perversão quando o orgasmo é obtido com outros objetos sexuais ou por outras zonas corporais e quando o orgasmo é subordinado de forma imperiosa a certas condições extrínsecas” (Idem, pag.340). Interessante observar que, como fiéis escudeiros que são, Laplanche e Pontalis mantiveram a designação da homossexualidade como um dos exemplos de “outros objetos sexuais”, pois acompanham o fundador em que aqui não se faz juízo de valor e sim uma definição categórica, que não pode ser feita sem a contraposição que a origina: “normal e anormal”, “verso e inverso”, “intrínseco e extrínseco”, “perversão e pudicícia”. Com isso está concluída a primeira parte deste trabalho, ficando evidente que em relação ao conhecimento do inconsciente humano existe um tempo (a.F. e d.F.). Antes de Freud, tudo o que se tinha sobre o inconsciente era uma massa de influências negativas e inaproveitáveis para a Razão humana, que mereciam o desprezo dos normais e a atenção dos insanos.
Depois de Freud temos a verdadeira origem do que podemos fazer de melhor. E o que podemos fazer de melhor, tem relação direta com a melhor versão de nós mesmo, forjada nas catacumbas inconscientes, em que é travada a luta do EGO e seus mecanismos de defesa, com o SUPEREGO e suas regras internalizadas e o ID e seus desejos primitivos. E também, com a melhor versão que se pode ser, como consequência das batalhas perdidas neste mesmo teatro profundo, por um lado e por outro, prevalecendo as cicatrizes dos sonhos, sintomas, lapsos e chistes, bem como as condecorações das Estruturas Clínicas, de homens civilizados e sobreviventes do “conflito subjetivo mundial”. A origem do que dizemos de melhor Para o professor Christian Dunker, foi no seminário 11 que Lacan, recém expulso do IPA, se viu na necessidade de tratar dos conceitos fundamentais da psicanálise e um deles foi se posicionar, se o Inconsciente realmente existiria como estatuto ôntico.
Para o titular de psicologia da USP – São Paulo, Lacan responde à questão desviando para um ponto de vista eminentemente ético, escapando da necessidade de “coisificar” o inconsciente. “A formação do Inconsciente depende de um processo de produção no encontro entre sujeitos no contexto da linguagem, e que está articulado como um efeito desse encontro” (DUNKER, O Estatuto do Inconsciente para Lacan, 2018, min. 3:03). Dunker continua argumentando, o que Lacan deixa muito claro desde seu seminário 7: “A problemática do Inconsciente é indissociável da problemática da ética; de qual é o bem, de qual é o meio, de qual é o fim, e de qual é a relação do sujeito com os mesmos” (Idem, min. 3:33). Se Freud “tira” o Inconsciente da vida das pessoas para poder descrevê-lo como instância e estrutura do Aparelho Psíquico, Lacan trata de “reintroduzi-lo” na vida das pessoas, como uma construção que decorre do relacionamento entre os sujeitos e os significantes que os representam, isto é, como parte inerente do ser falante presente no discurso.
A identificação do inconsciente
É possível até identificar a presença do inconsciente precedendo o próprio sujeito, pois quando ainda estava sendo assujeitado, necessitou da alienação do outro para se constituir. Em “lacanês”, antes do sujeito se reconhecer como contador, já estava contado, isto é, enunciado enquanto era impossível para aquele se enunciar. “O Inconsciente de Freud não é de modo algum o inconsciente romântico da imaginação. Não é lugar das divindades da noite”. (LACAN, Seminário 11, 1973, pág. 29). Se Freud posicionou o Inconsciente na origem das estruturas clínicas, com a esperança de que um dia a ciência comprovaria a causa direta dos seus efeitos, Lacan o situa intervalar, entre a causa e o efeito. Deste ponto de vista, a causa perde importância em relação ao intervalo que vai nos revelar o Inconsciente, no momento em que a estrutura clínica tangencia o Real e nele algo é estruturado pela linguagem, que nos interessa como alvo de trabalho para a psicanálise.
Se Freud sujeita o Inconsciente ao princípio do prazer, Lacan oferece apenas os limites do desejo, que “não faz mais do que veicular para um futuro sempre curto e limitado, o que ele sustenta de uma imagem do passado” (LACAN, 1964, pág. 35). E para chegar a essa conclusão da importância maior do que é construído em relação ao que foi constituído, utiliza uma citação do próprio Freud a respeito do Inconsciente: “O que quer que seja, é preciso chegar lá”, isto é, tudo está sempre por se refazer. E essa postura de fragilidade do que está pronto, é marcante em toda elaboração lacaniana, especialmente observada na primazia que Lacan oferece ao Significante e não ao significado. Ao retirar a pulsão como ponto central da psicanálise e colocar o desejo em seu lugar, Lacan atinge seu objetivo de “refrescar” a teoria psicanalítica. O desejo pode e deve ser enunciado pela linguagem.
Embora o desejo não consiga completar sua ação de alcançar o objeto de desejo, localiza, orienta e busca esse objeto por meio de uma construção de significantes, que pode ser articulada e mais importante que isso, pode dar sentido à essa busca. Sem perceber, neste movimento de articulação, o sujeito busca algo a sua frente, que costumamos chamar de objetivo, mas que na verdade a causa está atrás. O sujeito, intervalar que é, vai construindo esse “saber o que quer” – maneira pela qual costumamos definir alguém que está resolvido em relação a sua vida – por meio de perguntas que faz ao seu passado, interagindo com as respostas do presente. Podemos dizer que, o que Freud dissecou do indivíduo para ser estudado e apresentado como parte, Lacan restaurou e apresentou como o todo do Sujeito, “humanizando” a teoria psicanalítica.
A origem do inconsciente para Lacan
Em Lacan, a psicanálise volta sua atenção flutuante para o sujeito articulando o inconsciente, sua capacidade de enunciar seus desejos e se posicionar em relação a eles. Freud nos aponta a necessidade de fortalecer as funções do EGO como seu objetivo analítico, já Lacan se ocupa em capacitar o SUJEITO a articular seus desejos, por meio da linguagem. Coutinho Jorge nos lembra que essa dissecação ou divisão da razão humana feita por Freud, se constituiu em uma das resistências a teoria psicanalítica, na medida em que ao anunciar que “ há algo nos homens que age à revelia deles próprios, algo a partir do que eles agem sem saber que o fazem” (COUTINHO JORGE, Volume 1, 2008, pág. 17), trouxe mais campo para as discussões do que para as conclusões. Na mesma página o autor ressalta a importância dos mais de 30 anos de ensino de Lacan em retorno a obra de Freud, com duas frases emblemáticas: “O sentido de um retorno a Freud é um retorno ao sentido de Freud” e “Cabe a vocês serem lacanianos.
Quanto a mim sou freudiano” (Idem, pág. 19), no sentido de redirecionar o assunto para as conclusões necessárias para o fortalecimento da psicanálise. O papel de Lacan não foi reduzir a obra de Freud, mas ampliá-la pela estrutura da linguagem e tudo o que ela oferece no sentido de poder ser interpretada por meio do discurso. E em sua defesa, Lacan sempre demonstrou que tudo o que encontrou, encontrou nas obras de Freud: “Basta abrir Freud em qualquer página para ser surpreendido pelo fato de que não se trata senão de linguagem no que ele nos descobre do inconsciente” e “O que Freud suporta como o inconsciente supõe sempre um saber, e um saber falado. O mínimo que supõe o fato de que o inconsciente possa ser interpretado, é que ele seja redutível a um saber” (idem, pág. 66). É inegável que o cogito freudiano de um Inconsciente pulsional presente no homem em substituição ao instinto animal, deixava um resíduo de determinismo para o comportamento humano, enquanto que o Inconsciente linguista lacaniano, oferece uma oportunidade de construção, interpretação e reestruturação do mesmo, em um movimento constante que simboliza a própria vida.
Essa interpretação deixa uma sensação de que o controle está de volta à razão ou de que pelo menos, uma vez ciente do desequilíbrio, o controle possa ser, em parte, retomado por uma nova oportunidade de articular antigos significantes com os novos. E o que deixa muito claro o caminho do entendimento da proposta de Lacan, é que todas as manifestações do Inconsciente descobertas por Freud, são estruturadas como uma linguagem. O conteúdo latente de um sonho está nas entrelinhas do que é manifesto como linguagem; os lapsos e os chistes são observáveis na linguagem e os sintomas são expostos, reconhecidos e muitas vezes revertidos pela linguagem. Ora, qual a melhor explicação do estado de uma substância do que a manifestação de suas propriedades? A água só está no estado líquido, porque capazes de articular os significantes que a definem como tal. Não que a água é a linguagem, mas que a água está na linguagem. Assim como o Sujeito não é o discurso, mas está nele, intervalar aos significantes que o compõe.
A origem do inconsciente e a obra de Coutinho
Seguindo adiante, é na advertência de Lacan mencionada na obra de Coutinho Jorge, que se abre um caminho para avançarmos um pouco mais no entendimento do Inconsciente, descoberto por Freud, por meio do simbolismo lacaniano: “A descoberta de Freud é a do campo das incidências, na natureza do homem, de suas relações com a ordem simbólica, e do remontar de seu sentido às instâncias mais radicais da simbolização no ser. Desconhecer isso é condenar a descoberta ao esquecimento, a experiência à ruína”. (Idem, pag. 65). Em outras palavras, construímos em nosso Inconsciente uma estrutura de linguagem organizada por uma ordem simbólica, que incide sobre a nossa natureza, pelas relações entre si (articulações) e como consequência do reorganizar deste simbolismo, que atinge a própria essência do nosso ser.
Em contribuição à importância do simbolismo na estruturação do Inconsciente, citamos a definição de “Simbólico” no “Dicionário de Psicanálise” de Roudinesco: “Termo extraído da antropologia e empregado como substantivo masculino por Jacques Lacan, a partir de 1936, para designar um sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em signos e significações que determinam o sujeito à sua revelia, permitindo-lhe referir-se a ele, consciente e inconscientemente, ao exercer sua faculdade de simbolização. (ROUDINESCO, 1998, pag. 714). Lacan considera que o Inconsciente é uma estrutura de linguagem que tem origem nas palavras de nossos familiares e/ou cuidadores, desde seus desejos mais simples transmitidos em certos contextos, que produziram afetos em nosso subjetivo, até suas advertências que se tornaram fundamentos para a vida toda, que Lacan carinhosamente definiu como “palavra de mãe”.
Esses primeiros Significantes se constituem para sempre no Imaginário da linguagem, e correspondem à necessidade de completude que se busca no semelhante, para se criar vínculo de relacionamento e identificação. Mais tarde, quando somos capazes de articular nossos próprios desejos, o Simbólico se torna a própria linguagem que representa o sujeito por meio dos Significantes. Portanto, o Inconsciente se estrutura como uma linguagem, definitivamente, graças a presença dos registros simbólicos que permitem as trocas, as reorganizações e as escolhas que podem ser evocadas (enunciação) e enunciadas como representação do Sujeito. Em sua obra “Escritos”, Lacan faz uma homenagem ao psicanalista e biógrafo de Freud, Alfred Ernest Jones, ao mencionar suas considerações a respeito da faculdade de simbolizar: “Se considerarmos o progresso do espírito humano em sua gênese, poderemos ver que ele consiste não, como se costuma acreditar, na simples acumulação do que ele adquire, adicionando a si o que está fora, mas nos dois processos seguintes” (LACAN,1995, pág. 696).
A mudança do interesse humano
No primeiro, Jones menciona uma mudança de interesse do ser humano, para ideias que sejam mais complexas e demandam maior desafio para a sua articulação, que embora não percam um certo vínculo com as anteriores, por sua maior importância, estas agora são simbolizadas. No segundo Jones menciona o “desmascaramento” de simbolismos anteriores, que pareciam representar verdades, mas que diante dos novos significantes, “eles revelam não ser realmente senão aspectos ou representações da verdade, os únicos de que nossos espíritos, por razões afetivas ou intelectuais, eram capazes naquela época (Idem, pag. 697). Para fechar os registros psíquicos lacanianos, mencionamos brevemente o Real como aquilo que nos afeta, mas nas palavras do restaurador, escapa à Simbolização, por não haver palavras que o defina. Vale ressaltar que mais no final de sua obra, Lacan modifica a ordem dos registros (S.R.I. para R.S.I.) e passa a considerar o Real como ponto de partida para compreensão da psique humana.
A despeito desse fato, os três registros psíquicos são fundamentais para este novo entendimento do funcionamento da psique e estão, como desejou Lacan, entrelaçados em um “nó borromeano”, onde ao se desnodar um, todo o sistema se corrompe, numa verdadeira alusão a teoria Estrutural de Freud. Com a introdução do “nó borromeano”, temos mais uma oportunidade de realizar diagnósticos diferenciais, por meio da interpretação das intersecções dos registros, ao modo lacaniano de esquematizar o que foi possível na teoria psicanalítica, não para normatizar o entendimento, que será construído em cada setting analítico, mas para de certa forma, gerar uma espécie de Significante mestre, de onde podem partir as demais cadeias de Significantes, com suas significâncias (valorizações) particulares: Portanto, quando observamos o Imaginário invadir o Simbólico, sem a presença do Real, é sinal que o desejo do sujeito está inibido pela tentativa exacerbada de simbolizar a imaginação.
Quando o Real invade o Imaginário, sem a presença do Simbólico, é provável que as convicções do sujeito estão sufocadas nas produções imaginárias e angustiantes do desejo e quando o Simbólico invade o Real, sem a presença do Imaginário, as identificações do Sujeito (moi) com o outro podem estar substituídas pela busca exclusiva de suas próprias convicções (JE). Coutinho Jorge ressalta no volume um de sua obra “Fundamentos de Psicanálise de Freud a Lacan”, as considerações de Lacan sobre as três paixões fundamentais do sujeito, em sua relação com os três registros psíquicos, nas intersecções do nó borromeano: Amor: I – S // R — sentido de completude: um e outro Ódio: R – I // S — sentido de exclusão: um ou outro Ignorância: S – R // I — falta de sentido: nem um nem outro “Decorre daí que, no amor, o real é elidido, pois o amor é uma produção de sentido que elide o não-senso inerente ao real (o amor desconhece o tempo e a morte); ao passo que no ódio, trata-se da elisão do simbólico, pois nele as palavras perdem sua função de mediação salutar entre os sujeitos (como na agressão e na guerra, em que os pactos e tratados fracassam); e, na ignorância, tem-se a elisão do imaginário, isto é, a falta de sentido é radical (a ignorância se atém à interrogação e não à resposta)” (COUTINHO JORGE, Volume 1, 2008, pag. 148).
Conceitos da origem do inconsciente
Nesta fase da construção de seus conceitos, Lacan apresenta o Sujeito como uma espécie de tecelão, que tece os três registros em conjunto, se definindo pelas amarrações que vai criando estruturas (R.S.I.) particulares, para muitos, semelhantes às estruturas clínicas de Freud. Devido às contingências da vida: crise, transformações ou desencadeamentos, podem ocorrer “desnodamentos” como os descritos acima e que podem ou não serem refeitos. Aprofundando um pouco mais esses conceitos, o professor Dunker, esclarece que para Lacan, a Inibição é uma espécie de sequela do EGO freudiano, caracterizada por manifestações como “ a inibição sexual, a incapacidade de sentir prazer, o impedimento de sair de casa, de frequentar lugares abertos, que protegem o sujeito do encontro com o objeto fóbico” (DUNKER, Inibição, 2021, minuto 2:28). Continuando a exemplificar a inibição, Dunker, cita a depressão como um exemplo atual deste fenômeno, por incidir sobre a natureza da pessoa, causando as disfunções relacionadas ao sono, libido, alimentação, inteligência ou fala.
Vemos claramente nestes exemplos, a manifestação do desejo do sujeito inibida pela tentativa exagerada de simbolização de sua imaginação. Ao depressivo está inibida a faculdade de desejar a tal ponto que em certos casos, menos graves, porém mais crônicos, o indivíduo considera seus sintomas como parte de seu próprio jeito de ser. Com relação a Angústia, no seminário 10, Lacan a considera fazendo relação com o objeto. Se no medo temos o objeto fóbico como causador do processo, na angústia há a falta do objeto na realidade em que se vive, originando um afeto desligado de significante, como causa do sofrimento angustiante. Lacan diria que entre os afetos, a angústia é aquela que não mente, por estar ligada às nossas reações mais primitivas, decorrente da primeira vez em que, quando criança, percebemos o outro (tutor) como “não eu”, e isso nos marcou e nos angustiou.
As relações entre falta e objeto estão sempre presentes nos conceitos lacanianos, que quando envolve os três registros psíquicos, a falta se torna a frustração no Imaginário, a privação no Real e a castração no Simbólico, cada qual com suas manifestações características de sofrimento. A castração do objeto no Simbólico, por exemplo, pode se manifestar pelas produções angustiantes de desejos permeados pela imaginação, como no caso do pequeno Hans. Quanto ao sintoma, Lacan o observa pela estrutura de linguagem, como uma metáfora. O medo da barata não é, portanto do inseto e suas características, mas do que a palavra barata se tornou como “Significante” para o sujeito, e a prova disso é o fato de que este mesmo indivíduo pode não sentir medo de outros insetos semelhantes. Sendo assim, diferente da medicina que diagnostica o sintoma por meio do exame físico e clínico ou da mudança de comportamento do paciente, a psicanálise interpreta o sintoma pela fala, tanto na livre associação propriamente dita, quanto na observação da história de vida do analisando, representada em suas relações e vínculos pessoais.
Os sentimentos do falante
Se o médico quer tratar imediatamente o sintoma para aliviar o sofrimento do paciente, o psicanalista deverá entender o sintoma como uma tentativa do analisando simbolizar o sofrimento, que precisa ser interpretado, elaborado e, só depois descartado da vida do mesmo, por seu próprio desejo de articular novos significantes. A falta do objeto no Imaginário pode causar no indivíduo, a frustração de não saber o que está causando seu sofrimento e essa perda de sentido não se pode tratar apenas com medicamentos compensadores de hormônios ou com a introdução de técnicas de mudanças de comportamento. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça. A origem do que ouvimos de melhor O dicionário de Oxford nos oferece dois significados para ouvir. O primeiro é absolutamente funcional, como sinônimo de escutar o som pelo sentido da audição, e o segundo um pouco mais amplo, como verbo transitivo direto: dar a atenção e atender. Na escrita japonesa, o escutar é representando por um kanji composto por três elementos: ouvidos, olhos e o coração. Esta é uma forma muito interessante de utilizar a linguagem, pois se pode ficar consciente de que o escutar é um exercício que vai além do ouvir o som. É preciso enxergar o que está sendo dito pelo corpo de quem fala e sentir o que está sendo dito pelo coração de quem utiliza seus próprios significantes para dar um valor pessoal ao que está sendo dito.
Portanto o ouvir é promovido para o entender as palavras, as intenções e os sentimentos do falante, desprovido do intuito de aconselhar, recomendar, responder, retrucar, resolver, consertar, mudar, julgar, concordar, discordar, questionar, analisar ou interpretar; conselhos interessantes para quem quer ouvir o que o outro tem de melhor a dizer. Disse bem o dramaturgo e romancista francês Pierre de Marivaux ao externar: “Escutar bem é quase responder”. Ao desenvolver a noção de mal-estar em 1937, Freud incluiu o curar aos ofícios governar e educar, citados na filosofia como “impossíveis de realizar”, por serem estes exercidos com o engajamento da palavra. Para Freud na origem do inconsciente o termo ofício é a mais adequado, pois remete ao mais alto serviço, se destacando em relação ao que se define apenas por profissão. Sendo assim, o ato de ouvir o sintoma na análise, pode levar alguém a se tornar psicanalista fazendo disso seu ofício, não uma profissão, que terá como preço, o mal-estar decorrente de se lidar com a impossibilidade da palavra exprimir tudo o que se sente por um lado ou se interpreta por outro. Lacan concorda com as considerações de Freud e inclui um quarto ofício impossível de realizar, o fazer desejar. Para o mestre francês, somos “pobres tipos (die arme) ” que, pela falta plena do controle do Real, ficamos na posição confortável e ao mesmo tempo sofrível de fazer hipóteses: “dizer toda a verdade é impossível, porque nos faltam as palavras”. (LACAN, 1974, Televisão).
Mesmo diante de todas as dificuldades impostas pelo ofício que tem como instrumento a palavra, Freud não se desviou da necessidade de ouvir o paciente, e mais do que isso, incentiva-lo a falar livremente sobre o que ele, em seu íntimo, não quer dizer ou que sua consciência não sabe que seu inconsciente sabe. Para os que quiserem aprender o como fazer, o fundador faz uma analogia ao aprendizado do jogo de xadrez, que oferece um manual de instrução com as regras, as jogadas de abertura e as jogadas finais. Mas “apenas um estudo aplicado de partidas em que mestres se enfrentaram pode preencher essa lacuna das instruções” (FREUD, 2017, pag. 112). Na mesma publicação intitulada “Sobre o Início do Tratamento” (1856-1939), Freud ressalta que o ato de exercer a capacidade de ouvir é tão desafiador, que se faz necessário escolher quem somos capazes de ouvir. Sem qualquer falsa modéstia, o pai da psicanálise na origem do inconsciente confessa praticar o que chamou de “conhecer o paciente”, por uma ou duas semanas, como uma sondagem de caso e então decidir se este será adequado à psicanálise, sem prejuízos de frustração para ambos.
O setting analítico e a origem do inconsciente
Atitude bem diferente daqueles que hoje em dia, não abrem mão do paciente por nada, escondendo suas limitações na complexidade da técnica psicanalítica, tempo de duração da análise ou gravidade do caso. Se esqueceram do conselho fundamental de não irmos além do que já fomos analisados ou confundiram a necessidade de um estudo contínuo, com a falsa oportunidade de aprender com as dores do analisando. Freud continua suas recomendações alertando que o erro do psicanalista é mais grave do que o do clínico, pois o segundo apenas não tem fruto em sua ação, enquanto o primeiro erra na prática da técnica, o que coloca em risco a confiabilidade da relação no setting analítico. Ele recomenda até substituir o tempo reservado para o analista explicar a técnica da psicanálise, com o objetivo de ganhar a confiança do analisando nas entrevistas iniciais, pela oportunidade do mesmo falar o máximo de tempo possível, já que em sua experiência clínica, confiantes e céticos tiveram o mesmo resultado ao final de todo o processo analítico, sendo até mais proveitoso o comportamento do cético, que já revela desde o início, um dos sintomas a serem ouvidos para o diagnóstico diferencial.
É muito interessante ouvir Freud recomendando a utilização do divã no setting analítico, como uma possibilidade de “livre ouvir”. Ora, se o analisando precisa de um “ambiente ideal” para livre associar com uma desenvoltura crescente, o analista também necessita de um ambiente no qual possa praticar uma escuta com atenção flutuante, sem se constranger com as manifestações de seu próprio corpo: “Já que, enquanto escuto, entrego-me ao decurso de meus pensamentos inconscientes, e não quero que as minhas feições forneçam aos pacientes material para interpretações, ou que influenciem em suas comunicações” (Idem, pag. 124). Os que escolheram o ofício de curar pela escuta da palavra, embora devam ter habilidades naturais para o seu exercício, são seres humanos com estrutura clínica definida e estão desejosamente também em tratamento. Prevenir que uma transferência se torne uma resistência, é um dever de todo analista que quer ter sucesso em contribuir com a cura do analisando, ao mesmo tempo em que se cura. Já diria Freud que precisamos ser um espelho que reflete o inconsciente do paciente e não um reflexo distorcido dos julgamentos e condenações de sua consciência.
Feitas as recomendações, vem a pergunta de todo analista novato e ansioso por curar as dores de seus pacientes: por onde começo? Freud é enfático em dizer que o mais importante não é de onde começamos o tratamento e sim de nossa disposição em ouvir de onde o paciente quer começar o tratamento, desde de que observadas as regras da livre associação, apresentadas com a clássica analogia ao viajante sentado à janela do trem, que descreve a paisagem, conforme vai passando a sua vista, sem qualquer interpretação ou crítica na origem do inconsciente. Além de reforçada a importância da não omissão de fatos desagradáveis e do sigilo das informações para que a análise ocorra, com a menor influência ou desvios externos possíveis; não construir narrativas de histórias com começo, meio e fim ou preparações prévias que tendem apenas ao fortalecimento de resistências, disfarçadas de empenho, com o sucesso da análise. “Dizemos a ele, portanto, antes que eu possa lhe dizer algo, preciso ter muitas informações a seu respeito; por favor, me informa o que sabe sobre si próprio” (Idem, pag. 125). Freud insiste em deixar claro que o tratamento jamais começará de onde o analista indicar, nem na primeira vez e nem nas outras vezes que se sucederão durante a análise. Sua sugestão é nos agarrarmos fortemente na convicção de que “o não ter nada para falar” é uma resistência clara e inconsciente à descoberta da neurose, que precisa ser enfrentada desde o início.
O bloqueio dos pensamentos
Como garante o mestre de xadrez que venceu as mais difíceis partidas, mais cedo ou mais tarde o analisando cederá, mesmo que tudo se inicie com uma forte declaração de desconfiança de todo o método psicanalítico ou da dificuldade de se expor a um estranho. O que podemos fazer é confrontar sua postura de silêncio, sugerindo possibilidades que possam estar bloqueando seus pensamentos: o que ouviu a respeito da psicanálise; o julgamento prévio do que iria ser dito e preferiu se calar ou até mesmo a distração com objetos do consultório. Em outras palavras, se for para o analista falar, que seja algo que estimule o analisando a falar, e nunca falar no lugar dele ou em auxilio a ele. Até mesmo quando parecer justo ao analisando nos indagar sobre nossa opinião acerca do que ele sofre, nos é necessário contrapor com a indagação: por que minha opinião a esse respeito é importante ou fará diferença no que você tem a dizer sobre isso? Temos tantas coisas a ouvir, por que nos preocuparmos com o que haveríamos de dizer? Freud segue sua defesa de tese, dando exemplos do que descobriu ao “escutar” o que chamou de atos casuais de seus pacientes.
O coprófilo de alto requinte que acertava até a barra da calça para se deitar no divã; uma jovem exibicionista narcisista que puxava a bainha da saia para não mostrar seus tornozelos. “Assim como a primeira resistência, também os primeiros sintomas ou os primeiros atos casuais dos pacientes podem demandar um interesse especial, denunciando um complexo que domina a sua neurose” (Idem, pag. 129). Mas então nunca haveremos de falar? Como fica a questão da tradução das produções do paciente, a sintetização dos elementos inconscientes que estão fragmentados, a comunicação dos confrontamentos, que aprendemos ser objetivos da Escuta Analítica, e estão enroscados na garganta de nossa ansiedade? Freud é muito claro que a fala do analista só deve acontecer após ser identificado uma transferência produtiva do analisando para o analista. Roudinesco nos oferece uma definição bastante clara do que é a transferência: “Um processo constitutivo do tratamento psicanalítico mediante o qual os desejos inconscientes do analisando concernentes a objetos externos passam a se repetir, no âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado na posição desses diversos objetos” (ROUDINESCO,1998, pag. 767).
Para a autora, foi após a descoberta deste processo da origem do inconsciente, que se pôde abandonar de vez outras técnicas menos produtivas como a hipnose, a sugestão, e a catarse, sendo para muitos autores, a transferência, uma das principais contribuições de Freud para o processo psicanalítico. Não queremos nos demorar no aprofundamento da transferência, por não ser este o objetivo deste trabalho, porém uma coisa é certa, não se identifica este processo, a não ser pela ação de ouvir com interesse genuíno de compreender, no tempo certo, o que o analisando nos tem a dizer. Precisamos confiar que o analisando já nos enxerga desde o princípio, como o “Sujeito Suposto Saber” de seus males e não precisamos perder tempo em querer provar sermos o “Mestre Certamente Sabido”, pela ansiedade de compreender e diagnosticar suas queixas, com rótulos contendo nomes falsamente capazes de solucionar todos os seus problemas. Freud com a origem do inconsciente adverte que para esses arrogantes do diagnóstico rápido, está reservada a repulsa definitiva de toda a análise.
A terapia psicanalítica e teorias
Por mais frustrante que possa parecer, a terapia psicanalítica com a origem do inconsciente é talvez o único tratamento, em que uma possível cura é fruto do diagnóstico declarado pelo paciente, em suas livres associações, conduzidas pelo analista. Precisamos saber nos satisfazer com o fato de que, se a cura veio pela fala do analisando, ele só foi capaz de falar, porque o “seguramos pelo ouvido”, enquanto ele caminhava cego pelos labirintos do seu próprio Inconsciente. Lacan Inicia seu Seminário “Sobre os Escritos Técnicos de Freud” em 1954, com a pergunta: “Qu’est-ce que nous faisons quand nous faisons de l’analyse? – O que fazemos quando fazemos análise? (LACAN,1986, pag. 19). Isso para chamar a atenção, de seus alunos e colegas, para a confusão em que havia se tornado, a prática analítica naquele momento, faltando até mesmo uma orientação coincidente sobre aquilo do que se trata uma análise, do que se deveria fazer, e o que se pretende obter. E onde podemos nos segurar, para que não sejamos também nós, a nos apoiar em pequenos “balaústres de elaborações teóricas de Freud”? Para Lacan devemos nos segurar ao fato de que a psicanálise é uma relação “inter-humana”, praticada na interação entre duas pessoas, o que significa que a situação analítica é uma estrutura de linguagem entre dois seres falantes, e o papel principal do analista é tornar o “sujeito capaz de suportar o diálogo analítico” (Idem, pag. 11).
E também, para que esta dupla se torne uma tríade, ao valorizarmos a importância da palavra, como objeto indispensável para a reconstrução dessa história de passados, que se contextualiza no presente. “O fato de que o sujeito revive, rememora, no sentido intuitivo da palavra, os eventos formadores da sua existência, não é em si mesmo, tão importante. O que conta é o que ele disso reconstrói” (Idem, pag. 22). Considerando as estruturas de discurso de Lacan, vamos nos deter no lado que ouve o melhor do que é dito pelo analisando. Na análise, estando no lugar do outro, recebemos a demanda formulada por um agente barrado, que está impactado pela perda ou pela falta do Objeto: a, nos considerando um “Suposto Significante Mestre” do seu sofrimento. Por nossa vez, com base em tudo o que ouvimos do agente e do que supomos saber, precisamos produzir um conteúdo contextualizado no presente, porém, considerando as influências de um saber efetivo, de que o sujeito não tem consciência que sabe. Para sermos capazes de assim ouvir, Lacan nos coloca um pressuposto fundamental: a primazia dos Significantes sobre os significados.
Agindo desta forma não correremos o risco de compreender antes da hora o que o analisando tem a nos dizer, pois estaremos sempre focados em ouvir o próximo Significante, que trará maior valor ao que está sendo articulado. O que importa os “Significados que Supomos Saber” diante dos significantes que o sujeito tem a nos dizer, com suas significâncias particulares? Assim como em Freud, em Lacan temos tantas coisas a ouvir de nosso analisando, que não devemos nos preocupar, como prioridade, com o que lhe deveremos falar. Precisamos ouvir o que o contingente (o que cessa de não se inscrever) gerou de “signo” ao tocar seu impossível (o que não cessa de não se inscrever) e qual foi a possível (o que cessa de se escrever) influência deste choque, e que necessidade (o que não cessa de se escrever) de repetição está causando sofrimento em sua vida. Lacan diria que na análise, ao ouvirmos o analisando sob a primazia do significante, reproduzimos as colisões dos contingentes com os impossíveis do sujeito, em um ambiente seguro, isto é, por meio de significantes, que abrem espaço para o impossível se tornar possível (o que cessa de se inscrever) e o movimento da vida voltar a girar em torno do desejo. A mesma pergunta que fiz a Freud, faço agora a Lacan.
Fundamentos da Técnica Psicanalítica e a origem do inconsciente
Se a análise com a origem do inconsciente é uma relação inter-humana de dois seres falantes, onde não existe somente o paciente, como poderemos gerar aliança terapêutica com o mesmo, sem falar? Bem, Lacan diria que será melhor nos calarmos, até que estejamos prontos a abrir mão do que supomos saber, e agir sob a primazia dos Significantes do analisando sobre os significados do nosso saber. Até porque, quando formos nos dirigir a ele, em nosso discurso, este não será feito tendo o “Suposto Significante Mestre” como agente e sim o Objeto: a, justamente para instigar o Sujeito barrado do analisando, voltar a produzir seus próprios Significantes Mestres, que serão fundamentais para se voltar a desejar. É este o ofício que Lacan introduz, aos três de Freud, como “impossível de realizar”: O fazer desejar. Se Freud nos orientou a escutar com uma atenção flutuante, Lacan aperfeiçoou o método, introduzindo a escuta pelo significante flutuante. Bruce Fink inicia sua obra “Fundamentos da Técnica Psicanalítica”, alertando para o fato de que embora muitos autores tenham falado sobre a importância da escuta, entre eles Freud e Lacan, “há surpreendentemente poucos bons ouvintes no mundo psicoterapêutico” (FINK, 2017, pag.17). Na sequência vem o motivo principal: “A nossa tendência é de ouvir tudo em relação a nós mesmos” (Idem, idem). E aqui não é uma questão de identificar o que é, e o que não é normal na escuta humana.
Com todas as conexões cognitivas que possuímos sobre a origem do inconsciente, entrelaçadas com um sistema límbico altamente desenvolvido, não poderia ser diferente. Aliás é essa estrutura que nos permite compartilhar nossos afetos com outras pessoas, transformando-os em sentimentos, bem como reconhecermos mutuante os nossos sofrimentos por meio das narrativas. Porém a escuta empática, considerada por muitos especialistas em comunicação, como o mais alto nível de escuta humana, por escutarmos com a intenção de compreender, pode nos levar ao erro no setting analítico. Fink considera que os analistas que procuram praticar essa empatia com o paciente, buscando afinidades que viabilizem a criação de um laço terapêutico, tem boa intenção, mas ainda sim falham redondamente, já que para o autor, somos muito mais diferentes do que pensamos. Sua sugestão é utilizar no lugar da afirmação empática “deve ter sido doloroso para você” demonstrando a compreensão do sofrimento do analisando, uma pergunta de interesse “e como foi isso para você? ”, que tem o mesmo efeito de gerar vinculo, com a “vantagem de não colocar palavras na boca do paciente” (Idem, pag. 20).
Assim como Freud se considerou necessitado de análise com a origem do inconsciente e Lacan se incluía frequentemente entre os neuróticos, Fink relata ter caído também nessa “armadilha” da empatia, que pode ser muito útil para a conversa entre semelhantes no cotidiano da vida, mas não entre Sujeitos, como deve ser na análise. O psicanalista e escritor nos lembra que foi isso que Lacan chamou de dimensão imaginária da experiência, na qual buscamos afinidades no outro, com a pretensão de nos considerarmos iguais a ele. “Isso significa essencialmente que quanto mais o analista trabalha no modo imaginário, menos ele consegue ouvir” (Idem, pag. 22). Lacan deixou muito claro que se a psicanálise trata de uma relação inter-humana, como descrito anteriormente, o próprio fundamento desse discurso no setting analítico é o mal-entendido. É necessário enxergar como um privilégio, o fato de que não precisamos do entendimento, para criarmos um vínculo ou uma aliança terapêutica com o analisando. Basta que até as nossas dúvidas em relação aos significantes articulados por ele, sejam colocadas como o interesse de saber mais a respeito.
A metafísica psicanalítica
Fink relata que em sua experiência na supervisão da prática analítica, testemunhou muitos casos em que o analista se colocou como alvo do discurso do paciente: “geralmente vejo como mau sinal quando um analista só consegue resumir com suas palavras o que o paciente disse e não se lembra das palavras dele” (Idem, pag. 24). Talvez isso seja reflexo de significantes de nossa sociedade, que colocam o especialista na posição de quem fala, ensina, educa, governa, diagnostica e tem propriedade intelectual da verdade. Observamos o discurso do Universitário dominando todos as relações inter-humanas modernas. Porque tomaram ciência dos significantes de outros seres falantes, a quem consideraram como “mestres absolutos do saber” e se tornaram doutores na articulação de uma visão de verdade teórica e muitas vezes fora de contexto, se acham no direito de ser portadores do selo de seus gurus. Vivemos uma época em que as convicções da vida não se fazem mais nas produções da busca do próprio objeto de desejo, com seus gozos que escapam pelos vãos dos dedos e deixam marcas de experiência de vida. Compartilho da opinião de Roudinesco, que diz que os mestres forjados na experiência de suas convicções se foram e que Lacan pode ter sido o último grande construtor da metafísica psicanalítica.
Para a historiadora francesa, os mestres dessa nova era, seriam muito menores do que os anteriores e certamente não seriam seguidos por falta de consistência prática em seus constructos. Fazem seu discurso de cima de palanques feitos de livros, dos quais tiraram frases pontuais que apenas confirmam sua própria perspectiva, repetindo erros velhos como novos, pela descoberta de conceitos que foram encobertos por contextos que não existem mais. Sob o pretexto de uma educação mais participativa, as novas gerações são incentivadas a não ouvir nem quando estão sendo assujeitados, quanto mais na fase de simbolização de seus próprios significantes. Algumas vezes ouço críticas ao estilo de falar de Lacan, argumentadas que em seus vídeos, ele articula muito mal as palavras, é prolixo na linha de raciocínio e de difícil entendimento prático. Para esses eu costumo dizer que é óbvio que seja dessa forma, pois a especialidade do mestre francês é ouvir e não falar. Lacan foi capaz de ouvir a Freud como nenhum outro, e se era cheio de vírgulas em seus discursos, certamente queria oferecer a maior diversidade de significantes possíveis, para atingir o máximo de ouvintes disponíveis, em seus Seminários. Roudinesco diz que o que a fascinou em escrever a biografia de Lacan, foi o paradoxo em que ele vivia.
Em suas palavras, o francês era um Conservador de formação burguesa, que vivia e argumentava como um Libertino convicto. É fácil considerar que assim foi, porque Lacan construiu suas teorias baseadas em um contexto social sedento de liberdade e utilizou seus significantes conservadores apenas como referência para uma nova articulação, alinhada com o que estava ouvindo como perspectiva do desejo humano. O mesmo devemos fazer com nossos analisandos. Ouvir suas articulações como uma perspectiva de desejo, com significantes próprios, sem a necessidade de concordar com eles e nem conosco. Haverá momentos em que precisaremos nos colocar ao lado do analisando para enxergar do mesmo ponto de vista que ele, e em outros, precisaremos estar a diante dele, guiando para pontos de vistas diferentes, sem mudar de posição, isto é, sem ajudar nem prejudicar, sem apoiar nem desamparar, sem elogiar nem criticar, apenas convidando ambos a ouvir o que está sendo dito. Se algo nos escapar como um lapso, que seja uma articulação que prove que estamos ouvindo bem o que está sendo dito naquele momento. Fink nos oferece uma definição interessante do que seria a atenção flutuante elaborada por Freud.
A interpretação da origem do inconsciente
Ele a chamou de “atenção totalmente suspensa” ou “atenção uniformemente suspensa”, isto é, não presumir nada do que vai ocorrer em qualquer caso ou sessão. Ora, se não queremos que o paciente se prepare antecipadamente para vir a sessão, a fim de evitar julgamentos e críticas restritivas de seu subjetivo, o mesmo deve ser praticado por nós, para que estejamos na mesma sintonia: “é o que nos possibilita ouvir o que é novo e diferente daquilo que o paciente diz” (Idem, pag. 28). Tudo bem que é mais fácil falar do que praticar, mas dificilmente um psicanalista de fato, tem por característica se interessar pelo que é fácil de discernir ou interpretar. A parte mais difícil é confiar mais no mal-entendido do que no entendido. Isso porque o inconsciente é intervalar ao que está sendo articulado com os significantes. De que vale se preparar antecipadamente à análise, procurando entender as principais palavras ditas pelo paciente nas sessões anteriores, para encontrar conexões com o que será dito na seguinte, se tudo o que precisamos saber, não foi dito literalmente. Lacan é direto em sua orientação de fechar o ouvido ao significado: “Não procurem entender!
Que um de seus ouvidos torne-se tão surdo, quanto o outro seja aguçado. E esse é o que você precisa emprestar para ouvir sons, fonemas, palavras, locuções, frases, não se esquecendo das pausas, escansões, cortes, pontos finais e paralelismos” (Idem, pag. 29). Roudinesco é muito feliz em esclarecer que a questão da psicanálise é analisar o sentido e não o comportamento do paciente, e os sentidos estão nas entrelinhas do que está sendo dito ou manifesto. É o que provavelmente Freud chamaria de conduzir o paciente, durante a análise, por uma espécie de sonho de vigília ou o divagar diurno, no qual o conteúdo manifesto está longe de ter mais relevância do que o universo que está latente, que se apresenta intervalar, apenas para os ouvidos “desatentos” de significados propriamente ditos. Ouvir analiticamente falando, fora o trocadilho, significa confiar que, se o paciente manifestou um conteúdo parcial sobre qualquer situação, a história só terá sentido pleno para ele, que sabe o que ficou latente e escondeu, ou não sabe que sabe e omitiu inconscientemente. O papel do analista é então, ouvir o conteúdo destes vazios, para encontrar as peças que foram substituídas por outras que não se encaixam, na experiência de vida do analisando.
Nunca com a postura de quem pega o infrator no pulo, mas com o interesse de quem quer apenas fazer a verdade subjetiva ser dita aos ouvidos da dupla presente no setting analítico. Fink nos oferece um exemplo interessante na obra citada, de um paciente que lhe procurou por ser um verdadeiro canalha e possuir uma alma diabólica, porém durante as primeiras semanas de análise, nada que o mesmo contou de sua vida, chegou sequer perto de comprovar suas percepções iniciais. Após alguns meses de análise, o paciente começou a se recordar de situações que levaram a formação em sua psique, de um Superego que o acusava tiranicamente como tal. Para sermos bons psicanalistas teremos que transformar a concepção de objeto de desejo em relação ao nosso analisando ideal. Trocar a descrição consciente dos sintomas, pelo silêncio revelador do Inconsciente. Se alegrar mais em ser colocado como o objeto do sofrimento revivido do paciente, do que a causa de momentos de prazer em sua caminhada sofredora. Preferir o mal-entendido do que foi entredito do que o entendimento pleno do que foi dito. Trocar o semelhante que fala o que se quer ouvir, pelo sujeito que resiste em dizer o que se precisa ouvir. Deixar de querer mudar as pessoas e seus comportamentos, para querer transformar os discursos que articulam seus desejos. Desenvolver mais o silêncio interno que ouve, do que a articulação interna que fala.
Conclusão
Freud pode ser contestado pelos excessos de sua teoria da sexualidade, como fundamento da psicanálise e Lacan censurado pelos excessos filosóficos que embutiu na teoria psicanalítica, sonhada que era, para estar na prateleira da ciência natural. Mas, acusados que foram, seriam inocentados de “seus crimes”, pois não há provas de que eles elaboraram seus constructos como verdades absolutas e incontestáveis. Freud sempre sonhou com o momento em que a ciência poderia comprovar ou não os seus achados e Lacan sempre quis capacitar seus alunos para desafiar sua filosofia estruturalista, levando seus conceitos a novos patamares de entendimento prático. Imagino um bom papo entre os dois, em outro plano, no verso, multiverso, infinito ou campo etérico em possam se encontrar, seguido de discussões calorosas de conceitos, boas risadas e muitos charutos. Conforme pudemos verificar no desenrolar deste trabalho, Freud e Lacan nunca se desviaram do inconsciente como a origem do melhor que fazemos, falamos e devemos dar ouvidos na prática psicanalítica. Se é difícil de provar a existência do inconsciente como instância pela biologia, é muito mais impossível provar a sua inexistência como estrutura de linguagem pela linguística.
Parodiando Foucault, não foi o que Freud ou Lacan elaboraram que escandalizou sua geração de cientistas e filósofos, mas a maneira inédita e consistente com que esses conceitos foram construídos. Neurocientistas sempre torcerão o nariz para o que excede ao equilibro químico-orgânico do cérebro e Linguistas sempre negarão o sujeito intervalar aos significantes que se sobrepõem aos significados. Porém, como suas teorias não conseguem explicar todos os fenômenos, por falta de conhecimento dos mecanismos ou de palavras para descrever os significados, acabam por se passar como desconfiáveis totalitaristas do saber. Quer encontrar Freud ou Lacan, olhe para o Inconsciente. O fundador estará sempre nos indicando os processos psíquicos que o definem, os sonhos, lapsos, chistes e sintomas que o manifestam e a energia pulsional que o revela como a origem do que podemos fazer de melhor. De sua parte, o restaurador estará sempre nos incentivando a buscar os significantes que o definem, os discursos que o manifestam e o objeto do desejo que o revela como a origem do que podemos falar de melhor.
Se não concordar com o determinismo implacável do inconsciente freudiano, poderá encontrar abrigo na articulação estruturada do Inconsciente lacaniano. Se não quiser encarar o Superego ácido da teoria estrutural de Freud, poderá dialogar com o Sujeito intervalar da teoria dos significantes de Lacan. Como conclusão deste trabalho recomendo que um bom psicanalista deve intervalar a Freud e Lacan. Nem só Freud nos define plenamente, tão pouco Lacan nos explica totalmente, pois tanto faltam processos para um como palavras ao outro. Como no mito andrógino de Aristófanes, para o fortalecimento da psicanálise, tomemos Freud e Lacan como um ser mítico formado com as características freudianas e lacanianas, que juntos tem o grande poder de interpretar o funcionamento subjetivo humano, qualquer que seja sua manifestação de desejo ou necessidade de prazer. E que não sejamos nós como Zeus, ao querer separar um do outro pela espada obtusa de nossa intolerância a filosofia de um ou a cientificidade do outro.
Referências bibliográficas
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Este artigo foi escrito por ALBERTO D. MISTRELLO, concluinte a formação em psicanálise clínica.
4 thoughts on “A origem do inconsciente no que fazemos e dizemos”
Show de bola, excelente o artigo.
Parabéns pelo artigo! Muito bem escrito com excelente articulação!
Muito bom comentário! Parabéns pelo livro.
Excelente, parabéns!!
Elisângela Fernandes psicanalista online.