Entenda a importância da palavra, da fala e da Psicanálise e linguagem. Neste artigo, o autor Marco Bonatti explora a função e o significado da palavra, da fala e da escuta do analisando dentro do processo analítico, relacionando Psicanálise e Linguagem.
Psicanálise e linguagem: relações entre clínica e linguística
Na antiguidade clássica, o maior Mestre da oralidade e do uso da palavra é, sem dúvida alguma, Sócrates (470-399 a.C), que a diferença dos Sofistas, não deixou nada escrito e usou a palavra como meio (não como fim) para chegar à verdade. Sócrates é considerado o homem mais sábio do Mundo porque pelo menos uma coisa sabia: “sabia de não saber”.
“Fala para que eu te veja” clamava Sócrates para desmascarar os presuntos sábios de Atenas, mostrando a primazia da palavra e da oralidade como meio para revelar que o essencial não se escuta (em primeira instância), e não se vê (a aparência engana). Para Sócrates a palavra não era um fim, mas um meio, parte de um processo de construção para chegar à verdade.
A técnica infalível de Sócrates para investigar o que era verdade ou falsidade inspirava-se na ironia e na maiêutica. Em um primeiro momento Sócrates fazia perguntas ao seu interlocutor fingindo (ironia) de não saber a resposta e acentuando a sabedoria do outro que no decorrer da conversa o levaria a umas contradições insolúveis.
Método de indagação, Psicanálise e linguagem
Já no segundo momento, quando o interlocutor encontrava-se em um impasse (fim da linha), Sócrates, que nunca dava soluções, fazia perguntas mais sutis e afuniladas (que estimulavam à auto reflexão), induzindo o outro a descobrir a verdade (ou a falsidade) escondida dentro de si.
Este método de indagação é conhecido como maiêutica, ou seja, a arte da parteira que pretende fazer nascer (parir) a verdade como uma obstétrica faz com um bebê.
A cura pela fala na intersecção entre a Psicanálise e linguagem
Ao meu ver a análise psicanalítica tem uma finalidade parecida com a maiêutica: revelar aquilo que é inconsciente e que é responsável pelo sintoma e malestar psicológico, deixando aflorar e brotar “algo novo” (emoção, afeto, representação, etc) para o consciente. Além disso, parece existir uma verossimilhança entre o clássico humanismo socrático focado na palavra e no discurso do homem e a moderna Psicanálise freudiana focada na atenção pela fala (e.g. cura pela fala) do paciente.
Ambas as disciplinas têm como centro da reflexão os problemas do homem. A primeira tem como foco a reflexão sobre a justiça, a ética, a morte, a vida, o amor, etc.; A segunda tem como foco todo tipo de neurose, psicose e perversão que afligem o paciente. A primeira busca a verdade filosófica. A segunda busca a realidade psíquica na sua totalidade.
Em definitiva, se o filósofo é o parteiro das almas, o Psicanalista é o arqueólogo da psique humana. O problema é como encontrar (através da palavra, do discurso e da linguagem) a verdade que se ignora; o conhecimento que se desconhece, trazendo à luz aquilo que é encoberto, escondido, ou até mesmo inconsciente?
Linguagem e a resposta de Platão
Para Platão (428-347 a.C) o maior discípulo de Sócrates a resposta é a reminiscências (em grego, anamnese), ou seja, para conhecer algo é necessário lembrar (memória) aquilo que a alma já sabia antes de se encarnar (teoria do inatismo).
Em outras palavras, conhecer é lembrar, é ter memória, pois, para Platão a mente humana não adquire conhecimento fora de si, mas dentro de si, lembrando aquilo que antes contemplou (no mundo inteligível das idéias) e que depois esqueceu (no mundo sensível, material e terreno).
Através do mito órfico sabemos que às almas têm a possibilidade de conhecer as ideias (eidos, um modelo perfeito de formas e conceitos) enquanto vagam no universo (mito da parelha alada), antes de encontrar hospitalidade em um corpo (reencarnação).
Um exemplo dentro de Psicanálise e linguagem
Por exemplo, a palavra cavalos corresponde a uma ideia, Eidos (modelo ideal, contemplado pela alma no hiperurânio) e inteligível em que todos os modelos de cavalos reais e existentes na terra inspiram-se.
Isto é, para Platão podemos pensar e reconhecer um cavalo porque nossa alma já conheceu seu referente Eidos, no mundo das idéias.
O legado de Aristóteles, a Psicanálise e linguagem
De opinião contrária é Aristóteles (384-322 a.C) que nega a existência de uma ideia (Eidos) desvinculada da própria matéria; para ele a ideia de cavalo existe somente porque está relacionada a uma matéria e podemos reconhecer o cavalo porque fizemos a experiência de encontrá-lo durante nossa vida.
Vale ainda ressaltar que o filósofo para conhecer o Eidos precisa quebrar as correntes da ignorância e da perceção sensorial que encerram o homem a uma falsa visão da realidade (e.g. Mito da caverna); enquanto o Psicanalista precisa liberar o analisando dos sintomas que o tem acorrentado e preso a uma fantasia ou a um ponto de fixação (evento traumático), ressignificando a atualidade e deixando aflorar (representação mais afeto) o que foi recalcado no inconsciente.
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A Psicanálise e linguagem para Voltaire
Contudo em uma sociedade globalizada e líquida, super tecnológica e saturada pela informação, a simples palavra e fala podem revelar as respostas ocultas e a verdade que o homem busca? Um dia alguém disse que a palavra foi dada ao homem para mascarar seu pensamento e também a realidade.
Este homem, respondia ao nome de Voltaire (1694-1778) o pai do iluminismo francês. Disse Voltaire nos Diálogos de Evémero (1777): “Ils (les hommes) ne se servent de la pensée que pour autoriser leurs injustices, et n’emploient les parles que pour déguiser leurs pensées”.
Em outras palavras, para Voltaire os homens usam o pensamento para justificar suas injustiças, e a fala, apenas, para esconder seus pensamentos. Em definitiva, para Voltaire o simples uso da palavra não é suficiente para chegar à verdade.
A percepção subjetiva das qualidade das recordações verbais
É importante ressaltar que uma palavra tem um significado e um significante e que este deve ser contextualizado e interpretado para cada analisando. Por exemplo, se eu pedisse para você pensar em três adjetivos (qualidades) para descrever a palavra cão, quais você escolheria?
Talvez, você escolheria bom, afetuoso e fiel, mas uma outra pessoa que foi mordida ou atacada por um cão poderia dizer: mal, feroz e traidor. Em definitiva, Freud explica que a qualidade da sua resposta (pensamento) depende da experiência de vida, de como foi interiorizada e revivida através da memória e das representações que em seguida são transferidas para a consciência por meio da percepção do sujeito.
Isto é, dois sujeitos podem ter percepções e memórias diferentes em relação a um fato, ou seja, atribuir significados e chegar a conclusões divergentes, apesar de utilizar as mesmas palavras.
Um expemplo
Por exemplo, um analisando pode utilizar palavras de afetividade e amor para esconder a agressividade e o ódio que se manifestou em algo recalcado no inconsciente.
Este é um caso de formação reativa, mecanismo de defesa estudado por Freud ao descrever o sistema de proteção do ego, quando um sujeito substitui uma situação dolorosa, por uma reação oposta.
A linguagem é o espelho do mundo
É interessante notar que para Ludwig Wittgenstein (1889-1951) existe um isomorfismo lógico entre a realidade e o mundo, ou seja, a linguagem é o espelho do mundo. Em particular: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo” (Wigesteien, Tratado Filosófico, 1921).
É o que acontece com as palavras que ganham significado e sentido quando se relacionam entre si e quando estão dentro de um contexto, de um discurso ou de uma frase que nos permite expressar um juízo de valor (verdadeiro ou falso).
Lembro que um dia conheci na Colômbia um menino de rua (gamin) que tinha como melhor companheiro de viagem um cachorro que o protegia durante as noites frias de Bogotá dos ataques dos ratos. Quando perguntei o nome do seu fiel amigo ele respondeu Pedro. Pedro como o nome do seu pai.
O abandono do filho
É possível pensar que o menino foi abandonado pelo pai e iniciou um processo de transferência com o cachorro Pedro transferindo-lhe as expectativas e os desejos inconscientes (amor paterno).
“Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada”. (Laplanche e Pontalis, 1967/1996, p. 492).
Além disso os romanos diziam nomem omen, uma locução latina que significa que no nome existe um presságio e um destino que caracteriza a pessoa na sua unicidade e individualidade.
O círculo Hermenêutico
Segundo Hans Gadamer (1900-2002) a interpretação e o processo cognitivo da linguagem passa pelos prejuízos históricos e estes determinam a compreensão do presente (e.g. círculo hermenêutico).
O intérprete não pode presidir dos prejuízos, nem de si mesmo, mas precisa usar a phrónesis (sabedoria e prudência) para ampliar seu horizonte cultural e não ficar preso nele.
Por exemplo, chamar uma pessoa de “zé ninguém, bicho, macho, gringo” etc., evidencia, além da involução cultural de um grupo social, as limitações e resistências, preconceitos e prejuízos individuais que é necessário superar e vencer.
Funções da palavra: Psicanálise e linguagem
A palavra tem funções diferentes. Por exemplo, um cientista naturalista em falar de uma árvore associaria a palavra inteligência (e.g. neurobiologia vegetal), enquanto uma pessoa leiga poderia apostrofa-la sic et simpliciter de vegetal (desprejativo).
Além disso, uma palavra tem um significado diferente quando falamos de hábitos alimentares. Por outro lado, para uma pessoa omnívora um bife representa apenas um pedaço de carne (dissonância cognitiva); enquanto para uma pessoa vegetariana-vegana a palavra bife representa um Ser vivo. Em sentido axiológico para um vegano “Somos lo que (no) comemos”.
É dizer, existe um isomorfismo de valores entre aquilo que somos e aquilo que não comemos. Bonatti, M. Z., Revista Prospectiva en Psicologia, data publicação 01/07/2020, Vol. 4 N.2 p.48, disponível em: https://www.kennedy.edu.ar/revista-prospectivas-en-psicologia/
Antropomorfismo linguístico
Além do mais, uma palavra pode ser o resultado de um antropomorfismo linguístico de uma particular época histórica, cultura e sociedade. Você já parou para pensar no significado da palavra Alunos? A-lunos (significante) significa A (privativo) lumes (luz), ou seja, pessoa sem luz.
Você gostaria de ser classificado como um Aluno do IBPC (alguém sem luz) ou como estudante do IBPC? Contudo, se ser chamado de Aluno provocasse em você uma indignação inaceitável, talvez fosse necessário descobrir se isto é o resultado de uma fixação emocional (e.g. catexia) ou do modelo de perfeição (eu ideal, ideal do ego) que está causando um prejuízo no seu dinamismo psíquico (e.g. complexo de inferioridade).
A negação da palavra e do conceito
Cabe analisar ainda um famoso caso histórico de negação de palavra ou pensamento. Para Santo Agostinho (354-430 d.C) o mal não existia. Para demonstrar a sua hipótese, ele negou a existência do mal e chegou a afirmar que “o mal é a ausência de bem”.
Para ele a palavra assumia uma importância fundamental dentro do discurso teológico para demonstrar que a existência de Deus estava totalmente desvinculada da existência do mal. Porque, se Deus criou todo o universo, Ele também criou o mal? A resposta de Agostinho é categórica: não, nunca, jamas!
Deus não criou o mal, mas criou o livre arbítrio, portanto a pessoa escolheria não praticar o bem, ergo o mal é a ausência de bem, demonstrando assim que o mal, ontologicamente, não existia. Ora, pela perspectiva psicanalítica a negação total de algo (e.g. o mal) e a substituição com uma realidade ficcional (e.g. o bem) pode ser a consequência de um eu fragilizado, uma manifestação de defesa psicótica (e.g. a negação como mecanismo de defesa). Infelizmente, não é possível ressuscitar Santo Agostinho para uma análise clínica.
A comunicação: linguagem, subjetividade e psique
É interessante notar, que para a psicologia social, o conteúdo de uma comunicação (oral, escrita, corporal, visual) é determinada pelo destinatário e poucas vezes corresponde ao significado atribuído pelo emissor. Ou seja, falamos algo que é interpretado de forma diferente para quem escuta.
Assim sendo, é necessário que também o psicanalista rompa e ultrapasse suas resistências (psicológica e culturais) para entender, interpretar e trabalhar com seus pacientes.
Vale a máxima: “uma análise só vai até o ponto onde foi a análise do analista”.
Escutar ou ouvir
Em definitiva, se a atenção pela palavra e pela fala é o eixo central da análise psicanalítica, escutar é o mesmo que ouvir?
A resposta é negativa, pense na frase “entrou por um ouvido e saiu pelo outro” que bem mostra que o simples ato de ouvir não determina uma comunicação, quando a informação não é interiorizada.
Viceversa a expressão “fala que eu te escuto”, mostra o sentido da função de escutar, expressa o poder da fala e dá atenção, introspecção, empatia do outro no processo, podendo resultar em um alívio para a angústia e na cura pela palavra (e.g. método da associação livre).
A escuta Psicanalítica entre a Psicanálise e linguagem
No processo psicoterapêutico a palavra do analisando ocupa o espaço central da “escuta analítica”. Aqui a “atenção flutuante” do analista trata de colher o significado do discurso como um todo (eg. Gestalt).
A essência da escuta psicanalítica freudiana firma-se na técnica da associação livre, onde o paciente fala livremente, sem censura, deixando aflorar conteúdos remotos (inconsciente), descarregando a tensão psíquica e baixando o mecanismo de defesa que permite ultrapassar a censura entre pré consciente e inconsciente.
O mecanismo de falar o que vier à mente do paciente, de exprimir em forma livre, indeterminada e espontânea qualquer pensamentos, sem objetivos específicos é a chave mestra, a chave de ouro de Freud para encontrar o inconsciente.
O inconsciente
Aquilo que é inconsciente, através da palavra e da escuta psicanalítica, pode torna-se consciente, desvendado, decifrado, desenterrado. Portanto, é a partir da palavra, da fala, da imagem, do sonho, da lembrança que surge a Psicanálise como ciência, método terapia e cura para desvendar o mundo oculto da psique e resolver/aliviar/revelar a origem dos traumas, frustrações e das principais organizações psíquicas (neurose, psicose, perversão) que afligem o homem.
Entretanto não é somente a palavra dita, mas também aquela não dita que faz a diferença em psicanálise. Todas as palavras são importantes, sobretudo aquelas erradas ou aparentemente insignificantes como os “Atos falhos, chistes, esquecimentos…” (Freud, 1905).
Do ponto de vista psicanalítico todas as discordâncias na linguagem, memória ou comportamento do sujeito não são erros ou simples acasos, mas acertos indiretos “um sem querer, querendo” sendo a manifestação do inconsciente (desejo, recalque, sintoma) a essência mais autêntica e a totalidade da vida psíquica do Ser.
Conclusão
Em conclusão, a atenção pela palavra, fala e linguagem pressupõe um grande esforço de superação e uma diligente preparação de todo Psicanalista antes, durante e depois do setting analítico.
Talvez, após todas estas palavras seja necessário um pouco de silêncio (outra forma de linguagem) para escutar a voz do poeta:
“Prefiro a música. Porque ela ouve o meu silêncio e ainda traduz o que estou sentindo, sem que eu precise me explicar”. (Autor desconhecido).
O presente artigo foi escrito por Marco Bonatti. Residente em Fortaleza/CE (e-mail: [email protected], Facebook: [email protected]), possui doutorado PhD em Psicologia Social – UK – Buenos Aires, Argentina; Graduação em Filosofia FCF/UECE – Fortaleza, Brasil; Pós graduação em relações internacionais, Valencia, Espanha; Graduação em língua francesa na Sorbonne, Paris, França; Atualmente é Psicanalista em formação e colunista no IBPC/SP (Instituto Brasileiro Psicanálise Clínica).
2 thoughts on “Psicanálise e linguagem: relações entre clínica e linguística”
Molto interessante in questo articolo l’escursus storico-filosofico che sviluppa il dott. Bonatti sul tema psicoanalitico chiave della parola e dei suoi sensi/non sensi. A partire ovviamente da Socrate per arrivare sino a Voltaire e Wittgenstein e Gadamer, Bonatti procede tenendo costantemente viva per il lettore la relazione di affinità e analogia con le teorie freudiane. L’autore propone anche giustamente le principali e differenti sfaccettature del ruolo del detto/non detto nella vita psichica e nella relazione paziente/analista, inserendo anche considerazioni personali nient’affatto peregrine.
prof. Claudio Marozzi
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