somos o que comemos

Somos o que (não) comemos: alimentação e sentido da vida

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Somos o que comemos? Falaremos da Alimentação Vegana-vegetariana, do Sentido de Vida e da formação de uma nova consciência e identidade no Ser.

O artigo científico do Dr. Bonatti, doutorado em Psicologia Social na UK de Buenos Aires e Psicanalista Clínico no IBPC, inscreve-se no quadro epistemológico da psicologia existencialista e da análise existencial de Viktor Frankl (1905-1997) e responde a uma questão ancestral: “Somos o que comemos?”.

Neste artigo procura-se analisar quais das cinco ideias antropológicas do homem (Max Scheler, 2000) representam as pessoas com alimentação Vegana-vegetariana e como influenciam o Sentido de Vida, que valoriza a dimensão cognitiva-espiritual do homem. Isto é, a capacidade de auto transcendência sobre seus apetites e desejos.

Somos o que comemos: não se come mais como antigamente

Mudam os estilos de vida, o tempo que gastamos comendo, muda o espaço e o jeito de sentar na mesa, muda a linguagem e as palavras que associamos à comida, mudam os sistemas de produção dos alimentos e a exploração dos recursos naturais, muda a relação do homem com a terra e com os seres animais, vegetais e minerais. Acima de tudo, muda a percepção e a inferência dos alimentos sobre a saúde, física e mental, as ideias do homem e os valores que caracterizam o sentido de vida do indivíduo, gerando uma nova sensibilidade, liberdade e responsabilidade.

Neste contexto, surgem vários modelos alimentares como espaço material, mental e subjetivo dentro do qual transitam experiências e estilos de vida, saberes e sabores, ideias e novos valores que fundamentam a essência bio-psico-sócio-espiritual de uma pessoa. A análise dos dados desta pesquisa mostra como a alimentação Vegana-vegetariana envolve mudanças nas práticas e valores, na forma de pensar e perceber a realidade e a si mesmo, inaugurando uma nova posição do homem no Cosmos através de uma emergente categoria de sentido.

É importante ressaltar que o desenho desta pesquisa científica, que aqui apresentamos em forma sintética, é descritivo com abordagem qualitativa, que o tipo de desenho é exploratório emergente e que o método de captação dos dados é netnográfico. Ficou interessado (a)? Continue a leitura para descobrir a importância de dar um Sentido e uma Missão na própria Vida!

Somos o que comemos: crise alimentar, ecológica e humana

Vivemos uma crise alimentar, ecológica e humana que afeta a subjetividade e a vida das pessoas e das futuras gerações. O relatório (ONU-FAO, 2014) alerta que em 2050 a população mundial chegará a 9 bilhões de pessoas e que o consumo de carnes e laticínios é responsável por consumir 70% da água doce do planeta, 38% do uso da terra e produz 19% das emissões de gases. A crise do século XXI redesenha os valores sociais e o potencial da alimentação para construir e alimentar a identidade existencial de uma pessoa. (Massimo Montanari, 2010).

Isto é, na medida em que o homem percebe e estabelece uma ordem e coerência entre valores e atitudes, incluindo o processo de significação da alimentação nas experiências vividas, ele constrói sua identidade e sentido de vida.

A alienação do homem

No entanto, o risco é que a crise da era pós-moderna leve à alienação do homem e a seu distanciamento da natureza. Segundo Hannah Arendt (1906-1975), o homo faber é um fabricante ativo e enérgico que transformou a natureza e os alimentos em um objeto que pode dominar, fabricar e comer conforme seu apetite, mas desaparece “a possibilidade de transcender o mundo material em categorias, saberes e experiências.”

Em outras palavras, a fabricação de objetos através da manipulação do mundo, transforma a natureza em objeto de consumo, em campo empírico de exploração, reduzindo a motivação humana ao princípio de utilidade e não ao princípio da vida. Isso nos permite pensar que a pessoa é o único Ser responsável por seu projeto de vida, ele é “homo copula mundi”, um meio-termo na hierarquia da criação, com liberdade de escolha entre a barbárie da vida consumista moderna e a elevação espiritual. Na maioria das vezes o consumismo acaba consumindo a pessoa.

No entanto, a crise também produz novas oportunidades e a possibilidade de repensar as próprias ideias, a alimentação e a posição do homem no Cosmo (Max Scheler, 2003).

O arquétipo da alimentação vegana-vegetariana

É cultivar valores, alimentar o espírito através de uma escolha incondicional em defesa da vida, é religar o imanente com o transcendente, o corpo e o espírito da pessoa.

Pois, todos nós amamos a natureza e os animais, mas não nas refeições onde minimizamos os efeitos negativos do comportamento e do pensamento (não associamos um pedaço de bacon à vida de um porco ou um bife à vida de uma vaca) e maximizamos a nossa liberdade de escolha.

Na nossa cultura ninguém pensaria em comer um gato ou um cachorro porque, diferentemente dos outros animais, criamos com eles laços afetivos, ou seja, valores que estão acima do poder e do livre arbítrio. Valorizamos o princípio de vida e não o de utilidade.

Somos o que comemos: Biodiversidade e natureza

Por honestidade intelectual e acadêmica é importante mostrar a posição científica indicada por Claudio Bertonatti (2018) de que não é necessário ser vegano ou vegetariano para conservar a natureza e a biodiversidade (por exemplo, ambientalistas onívoros). Se observarmos a fauna, percebemos que nos campos de cultivo agrícola não há mais aves e as poucas que ali estão acabaram sendo perseguidas, como anfíbios, mamíferos e répteis.

Segundo Bertinotti as pessoas veganas-vegetarianas evitam a morte e o sofrimento de animais domésticos (por exemplo, vacas, porcos e cabras, etc.), mas não de espécies selvagens, que estão desaparecendo. Ser vegano-vegetariano não impede a morte de animais, além de comer plantas, seres com vida própria (como demostrou a neurobiologia vegetal).

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    Segundo Bertonatti (2018), a partir do momento em que o ser humano passa a criar gado e adotar a agricultura como sistema de produção, gera um impacto ambiental que produz desmatamento, condena e obriga a natureza a abrir espaço para o cultivo em massa (queimadas, manipulação genética de sementes, monoculturas de arroz, trigo, soja, uso de fertilizantes, poluição e empobrecimento da terra). Não há culturas ou espécies animais cuja sobrevivência não resulte na morte de outros seres vivos. É importante ser prudente e solidário com toda a natureza, entendendo que o impacto zero é impossível, que nosso universo se limita ao que conhecemos, que a biodiversidade é algo maior e que a morte faz parte do ciclo natural da vida.

    A humanidade é uma máquina que devora o mundo

    Somos todos cosmófagos, devoramos e comemos a natureza que nos rodeia e o mundo em que vivemos. Todos os homens, independentemente das escolhas alimentares, são devoradores do planeta vegetal, animal e mineral.

    No entanto, é preciso reconhecer que a alimentação vegana-vegetariana é a mais sustentável do planeta, do ecossistema e da vida tout court, é um ato de amor incondicional ao próximo.

    PARA FEUERBACH: “SOMOS O QUE COMEMOS”

    Segundo a visão materialista de Ludwig Feuerbach (1804-1872), a afirmação “Somos o que comemos” responde à uma auto evidência antropológica, o homem é o que ele come. Ou seja, a identidade do homem se reduz ao corpo e a tudo aquilo que é introduzido nele para sua sobrevivência e funcionamento. Por outro lado, se o homem é também o que pensa, sente, valora e que faz sentido: comer é algo mais complexo do que um simples ato material-mecânico e tem repercussões bio-psico-sócio-espirituais.

    Por exemplo, se for feita uma anamnese, será percebido e valorizado o poder e a energia de cada alimento, o que acontece com uma semente de girassol quando cresce, se desenvolve com a força vital da terra, da água (Tales, 624 a.C.- 546 a.C.) e do calor (Heráclito, 535 a.C-475 a.C.) expandindo-se através do vento (Anaxímenes, 585 a.C-528 a.C.). Será também valorizada a importância da preparação e consumo dos alimentos; se comprovará que não é possível separar a pessoa dos fenômenos da physis-natureza (arché) e como estes influenciam o humor, os valores, as emoções, o espírito, a saúde e a existência.

    A existência da pessoa é um microcosmo de natureza e de relações espirituais, faz parte de um ecossistema global de trocas entre todos os seres animais, vegetais e minerais. Segundo Hipócrates (século V-VI aC) existe um equilíbrio entre o macrocosmo da natureza e o microcosmo do homem; uma relação entre os principais elementos constituintes o universo (água, terra, fogo e ar) e as quatro qualidades primárias dos ingredientes (quente, frio, úmido e seco). Dessa forma, as combinações entre os elementos do universo e as qualidades dos ingredientes alimentam a natureza e a existência de qualquer ser vivo.

    Identidade e alimentação

    Segundo Levi Strauss (1908-2009), a divisão entre alimentos crus e cozidos representa dois modelos de identidade opostos. A comida crua é o símbolo da natureza primitiva do homem e a comida cozida é o símbolo do homem civilizado, que domina o fogo e a natureza e é o símbolo da civilização. Na Grécia clássica, o pão era um símbolo do ser humano. A expressão usada por Homero para definir o homem é “comedor de pão”; enquanto para os Maias o homem foi criado através da farinha.

    Na Idade Média, há uma supervalorização social do aspecto psicossomático, que valoriza a carne e a gordura corporal, símbolo da onipotência, do poder e da identidade social dos senhores feudais. Diferentemente, nos mosteiros, os sacerdotes e os monges optam pelo consumo de hortaliças e frutas, por terem uma conotação moral-espiritual relacionada à posição do homem no Paraíso, antes de sua queda terrena.

    Na era moderna, o poder da ostentação e o perigo da escassez dos recursos naturais (que caracterizavam a Idade Média) tornam-se o perigo da abundância e cresce a necessidade de limitar e controlar a alimentação (poder de resignação e renúncia). Na era contemporânea difunde-se a alimentação Vegana-vegetariana relacionada a livre escolha e a liberdade que visa alimentar a alma (poder de rejeição e abstenção).

    Cultivar a alma

    Segundo Barcellos (2017), o gosto que inspira a gastronomia é uma forma de cultivar a alma, resultado de uma função sentimental-emocional que implica um julgamento subjetivo e axiológico, rejeição e aceitação.

    Nesse sentido, a comida é o meio, o viés, para a absorção de uma quantidade do mundo, ela transformam a alma da pessoa em mundo (por exemplo, existem tipos de alma que são resultado de sabores como colérico, melancólico , sanguínea, fleumática, adstringente, ácida, purgativa, biliosa, seca e úmida).

    Gastronomia é a única palavra grega que contém astronomia

    É interessante notar que gastronomia (gaster = ventre e nomia = lei), é a única palavra grega que contém astronomia. É assim que os planetas (metafísica) e a ciência “(g)astronómica” estão presentes na vida e envolvem a existência da pessoa.

    Atualmente há pessoas indiferentes ao que comem e outras que consideram a alimentação o ponto central da vida do Ser, do poder ser, do dasein, ou seja, do aqui-e-agora, do Ser com o outro e do Ser no mundo.

    Somos o que comemos: Self estendido e empírico

    No mesmo sentido, para Belk (1989) o Self estendido é o Self do Eu, expandido do significado atribuído ao consumo que determinados objetos ou alimentos representam para o indivíduo em termos de símbolos, substâncias, emoções e valores que caracterizam aspectos importantes da personalidade.

    É necessário entender que a declinação axiológica do Self estendido e a mudança de atitudes sobre a própria alimentação – estilo de vida – pode inferir sobre o aqui-e-agora (Dasein), a ideia do homem e o sentido da vida da pessoa com fundamentos teóricos na psicologia existencialista de Viktor Frankl (1905-1997). Em outras palavras, a identidade não se limita somente ao Eu, ao próprio corpo e a aspectos psíquicos, mas também a ideias e experiências, lugares, processos internos, relacionamentos e objetos possuídos e consumidos, como por exemplo a escolha da própria alimentação.

    Nessa perspectiva, é possível considerar a alimentação vegana-vegetariana como fundamento do Self empírico da pessoa (Williams James, 1890), incluindo na categoria Self tudo o que faz parte de nós (Eu): comida, coisas, objetos e experiência de vida. Em síntese, uma forma de saber quem somos é observando os alimentos que comemos, pois, pelo processo de incorporação também nos contaminamos com todos os significados e ideias presentes no objeto consumido.

    Max Scheller: as cinco ideias do homem

    Nesse sentido, a alimentação da pessoa vegana-vegetariana envolve mudanças nas principais ideias do homem (Max Scheller, 2000). È dizer, somos o que pensamos.

    De acordo com a construção teórica de Max Scheler (1874-1928), serão analisadas as ideias filosóficas antropológicas do homem (idéia judaico-cristã; ideia racional; ideia naturalista; idéia espiritualista negativa; ideia total) e suas relações com o sentido da vida da pessoa na perspectiva da análise existencial e logoterapia (terapia do sentido) de Viktor Frankl.

    Ideia judeo cristiana do homem

    Em relação à identificação da pessoa vegana-vegetariana com as cinco ideias de homem (Max Scheler, 2000) podemos descartar a identificação com a ideia judaico-cristã. De fato, o discurso teológico se origina na categoria do pecado, implicando consequências ético-morais para a pessoa. Somente Deus determina o que é justo ou o que é pecado e pode redimir o homem.

    Por exemplo, o evangelho anuncia: “Não há nada no exterior do ser humano que, entrando nele, possa torná-lo impuro!” (Mc 7,15). Ou seja, aquilo que entra pela boca, inclusive a alimentação, desce para o ventre; viceversa o que torna o homem impuro é o que sai da sua boca, porque provém diretamente do seu coração.

    A religião católica afirma que comer carne não é um pecado moral em si, mas pode se transformar em desvio, (folia do ventre) ou em pecados de voracidade, comer o fruto da planta, (cf. Gn 3,6). Porém, para um Vegano-vegetariano, o fato de comer carne representa a maior violência contra a vida de um ser vivo.

    Somos o que comemos

    A análise dos dados comprova que a pessoa Vegana-vegetariana é totalmente livre, não dependendo de um ser superior, mas vinculada a uma livre escolha interior, que parte da autoconsciência e dos valores existenciais escolhidos.

    Em suma, a pessoa vegana-vegetariana justifica com a mente o que decidiu antecipadamente com o coração, independentemente de qualquer imposição religiosa ou regra externa.

    Nessa perspectiva, há uma ruptura entre a pessoa vegana-vegetariana e a lei divina, que determina o que é justo e o que é pecado.

    Ideia natural do homem

    Da mesma forma, podemos excluir a identificação da pessoa Vegana-vegetariana com a ideia natural do homem (Max Scheler, 2000). Isso nos permite pensar que a pessoa Vegana-vegetariana não se define na relação com a natureza, mas na relação com todos os seres vivos e com o meio social. De fato, o momento mais importante da formação pedagógica da ideia naturalista é empírico, fundado na experiência e na relação direta com a natureza, gerando uma personalidade amputada, dualista e cartesiana.

    A ideia natural do homem é vítima do dualismo cartesiano, que separa a res cogitans, a alma racional, da res extensa, o corpo, inclusive o corpo social.

    A síntese e reunificação da identidade e da subjetividade da pessoa Vegana-vegetariana só pode ocorrer na sociedade e não fora dela, a partir do momento em que o aspecto biológico-utilitário do estado natural encontra o outro-social, superando o dualismo (alma-corpo) com uma dimensão unitária do homem (Bio-psico-sócio-espiritual).

    Ideia racional do homem e somos o que comemos

    Em relação à identificação da pessoa Vegana-vegetariana com a ideia racional de homem (Max Scheler, 2000), observou-se que a contribuição teórica do homem racional aponta que a sociedade é o novo sujeito coletivo, que passa a substituir os critérios de sangue, família, terra e mundo. Em outras palavras, o surgimento da sociedade pós-moderna ocultou o mundo e imediatamente a pessoa, transformando a natureza e os seres “inferiores” (animais, vegetais e minerais) em objeto que o homem pode dominar, fabricar e comer conforme sua necessidade.

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    O homem racional, stricto sensu, é um construtor da realidade, que renuncia a descobrir o eterno e o imprevisível, torna-se em um fabricante de instrumentos e processos, um artesão repetitivo, facilitador de verdades imanentes que são imitações de ideias, super sensíveis.

    É possível observar que a pessoa Vegana-vegetariana rompe com a tendência do homem racional de substituir a ação pela contemplação, enfatizando que a atividade do pensamento é inspirada no princípio da utilidade e não no princípio da vida.

    Ideia espiritual negativa do homem

    A pessoa Vegana-vegetariana caracteriza-se pela prevalência da ideia espiritualista negativa do homem (Max Scheler, 2000). Na verdade, o que distingue o homem de qualquer ser vivo não é apenas a capacidade de expandir seu conhecimento por meio da razão, mas também a capacidade de transcender a si mesmo por meio da inteligência.

    É importante ressaltar que a forma e o conteúdo peculiares da ideia espiritual negativa, permite intelligere por meio da parte emocional-instintiva. Ocorre notar que raciocinar não é o mesmo que intelligere. Ou seja, todos os homens têm razão e, pela lógica, podem pensar, abstrair, deduzir e inferir. No entanto, esse processo lógico-racional não é garantia de resultado, sendo possível raciocinar bem e chegar a uma conclusão errada. A idéia espiritual negativa aniquila a razão moderna para dar voz ao coração e ouvir a instância mais remota da pessoa.

    A pessoa Vegana-vegetariana através do espírito, como razão universal (logos) elevou-se ao espírito supremo-universal; enquanto o homem racional, caracterizado pelo logo-pneuma, ascendeu à imago dei sobre todos os seres, numa posição de dominação e exploração. Essa última espiritualidade que, para simplificação epistemológica, chamamos de espiritual positiva, é derivada da concepção cristã-tomista, a alma da pessoa é um espírito imortal criado por Deus (espírito imóvel), de modo que a essência da pessoa é consubstancial com a essência divina (analogatum princeps).

    Somos o que comemos

    Isso nos permite pensar que o conflito espiritual é caracterizado por uma tese, representada pelo paradigma cristão da espiritualidade positiva, e por uma antítese, representada por uma ideia espiritual negativa, a-religiosa. Porém, o próprio ato espiritual (aspecto categórico) não garante o sentido da vida, se não há uma prática coerente entre valores e atitudes.

    A crise da pessoa pós-moderna, a relação entre o livre-arbítrio e o determinismo social, transformou o ato espiritual em um ato condicionado artificial, construído pela razão, linguagem, técnica e ciência, que ao invés de transcender a si mesmo, torna a pessoa um aspirante ilegítimo do absoluto-infinito, legitimando a destruição da natureza e a mortificação da vida.

    Para nós, é possível superar esta aporia espiritual reconhecendo o dualismo do espírito, como oposição categórica (ideia espiritual positiva vs. negativa) e como dialética entre razão imanente (finita, humana) e liberdade, como vontades transcendentes (autoconsciência supra inteligível). No entanto, é possível separar razão, emoção e inteligência no nível das categorias, mas não como estruturas ontológicas do ser. O indivíduo é uma síntese indivisível de corpo e psiquê.

    Ser indivisível

    A palavra indivíduo é formada com a negação “in” sobre o adjetivo latino “dividuus” (divisível).

    O indivíduo é um Ser indivisível, resultado da primazia do mistério sobre a razão.

    Em suma, a pessoa Vegana-vegetariana escolhe, em forma clara e distinta, a idéia espiritual negativa que se manifesta simultaneamente com a ideia total do homem (Max Scheler, 2000).

    Ideia total do homem

    Segundo a ideia total do homem todas as coisas existem por si mesmas e as decisões não são fornecidas por um ser superior que determina a orientação e a consciência das pessoas. Ou seja, os valores e a responsabilidade do “homem total” têm origem humana e não divina. Na Genealogia da Moral, Friedrich Nietzsche (1844-1900) opõe o homem decadente (da religião judaico-cristã e platônica) ao homem nobre e superior, que cria seus próprios valores, não depende do julgamento alheio para inspirar suas ações.

    Em outras palavras, não se trata de depender de alguém, tudo é uma escolha que depende dos valores escolhidos pela pessoa, que são orientados pela possibilidade de transcender suas próprias necessidades materiais, pois o ser superior mora dentro de cada um e depende da evolução da consciência individual e sua conversão em autoconsciência. Isso permite pensar que todos os Veganos-vegetarianos, inclusive os ateus, possuem um “inconsciente espiritual” em diálogo com algo superior e que se apresenta à consciência em termos de valores, mesmo que não acreditem em Deus.

    Apesar de não haver um Ser superior que oriente, a pessoa Vegana-vegetariana pode atribuir-se e obedecer a valores ético-morais que estão constantemente em diálogo, entre sua autoconsciência e seu lado espiritual. Os valores são uma busca de dentro para fora. Da mesma forma, considerando a rejeição de um ser superior e a aceitação de si mesmo como um Ser superior, criador de valores absolutos e práticos, podemos afirmar que a pessoa vegana-vegetariana se identifica com a ideia total do homem.

    Amor espiritual hiato

    Além disso, isso nos permite pensar uma nova categoria axiológica que chamaremos de amor espiritual hiato, uma inferência que se origina de uma predicação primária (a ideia espiritualista negativa) e uma predicação secundária (a ideia total).

    A forma como opera o “amor espiritual hiato” é a de uma ruptura e um salto agápico hacia um amor total, incondicional, com todos os seres vivos.

    Viktor Frankl: o homem é o ser em busca de sentido

    Em última análise, os dados recolhidos na investigação permitem-nos afirmar que somos o que pensamos, e sobretudo, o que faz sentido.

    Segundo Viktor Frankl: “o homem transcende a si mesmo seja em direção ao outro ser humano, seja em busca de sentido […] com amor o homem aprende o Outro Ser […] e com a consciência ele aprende o significado único e singular de cada situação.”

    O ser humano é um todo unitário: Bio (Soma) – Psique (Alma) – Socio (Alter) – Espiritual (Pneuma) que se caracteriza por sua motivação, responsabilidade, liberdade e busca primordial de sentido.

    As três componentes da categoria de sentido:

    O LADO COGNITIVO

    A categoria Sentido de Vida possui três componentes estruturais.

    O aspecto cognitivo implica a percepção (afetiva e cognitiva) da pessoa agir através de uma livre escolha de valores (ordem) e de implementá-los na prática (coerência). Em outras palavras, é a capacidade da pessoa de ordenar coerentemente aqueles valores que orientam seu comportamento e experiência de vida.

    Nesta ordem de coerência, são importantes os alimentos consumidos, os símbolos e representações que a pessoa vivencia e que “tornam possível uma conexão entre emoção e cognição”.

    O LADO MOTIVACIONAL

    A segunda componente do Sentido é representada pelo aspecto motivacional, daqueles que buscam atingir um objetivo que tenha significado.

    A motivação pressupõe uma vontade de sentido, um objetivo significativo na vida, que leva uma pessoa a compreender um propósito e a ter um sentido existencial.

    O LADO AFETIVO EMOCIONAL

    Por último, o aspecto afetivo-emocional proporciona à uma pessoa aquele retorno de sentido, em termos de satisfação, gratificação e felicidade.

    Segundo Damásio (2013) o sentido é “a percepção de ordem e coerência na própria existência, associada à busca e cumprimento de um objetivo-meta significativo, que tem como resultado a satisfação ou a felicidade”.

    Em suma, a motivação para adotar uma alimentação Vegana-vegetariana tem a ver com a procura de coerência entre valores e comportamentos, faz parte de um despertar da consciência, que orienta a pessoa para uma alimentação, não mais como um produto-social, mas como um produto-espiritual.

    Somos o que comemos: O sentido de vida da pessoa vegana-vegetariana

    é fruto de um ato concreto de amor e empatia. È a capacidade de sentir a dor dos outros seres vivos, a possibilidade de sair da dimensão egocêntrica e considerar a importância da vida como parte de uma consciência mais ampla, coletiva e universal.

    Isto é, tudo o que comemos não se transforma apenas em células vivas e energia, mas também em valores, contaminando o corpo-espírito de uma pessoa.

    É importante ressaltar que o processo de busca de sentido da pessoa vegana-vegetariana se inicia pela vontade de sentido, que é o motor móvel que impulsiona o sentido, que parte do inconsciente espiritual, para se tornar consciente transcendental e pela mediação do espírito (Nous), inteligência supra-sensível, transcende a pessoa, anulando as necessidades materiais e os limites do conhecimento sensível para se tornar ideia espiritual negativa, idéia total e valor inteligível.

    Responsabilidade, ou seja, a resposta ética e somos o que comemos

    Nessa perspectiva, a alimentação Vegana-vegetariana representa a resposta ética (responsabilidade) às questões que a vida põe à uma pessoa. É dizer, uma ética que valoriza a vida segundo o espírito, que visa proteger o planeta e se identifica pela prática dos valores de benevolência, amor e universalismo, que mais dão sentido à vida de uma pessoa (Hernan Lanosa, 2014). Observe-se que a maioria das pessoas considera a alimentação Vegana-vegetariana uma forma de reforçar os valores autotranscendentes de justiça, defesa da vida e do planeta.

    Em outras palavras, abster-se do consumo de carne é a expressão de uma liberdade negativa, de autolimitação, de renúncia, de abstenção ética, que se manifesta através da intuição ética da consciência (valor) e depois se torna um imperativo categórico (comportamento) . Observa-se também que não há dicotomia entre dever e desejo, mas sim uma síntese entre o dever, que obedece à razão (e.g. Imperativo Categórico – Tese) e o desejo, que obedece à intuição (e.g. ética dos valores – Antítese).

    Dessa forma, a liberdade pode ser pensada como o Poder Ser da pessoa, como a possibilidade (potência) de transformar atitudes em comportamentos (atos), por meio da liberdade transcendente (escolha) que fundamenta o Sentido.

    Uma nova categoria: o poder de sentido

    A análise existencial mostra a constituição de uma nova categoria, que chamaremos Poder do Sentido, uma inferência que parte de uma predicação primária “a vontade de poder” e uma secundária “a vontade de sentido”. O Poder do Sentido nasce de dentro e transcende a vida e a morte da pessoa, é baseado na empatia que inspira os valores e o comportamentos do ser.

    O Poder do Sentido não é uma força que desaparece com a morte, mas que precede a vida da pessoa e se reforça através da alimentação. É o baricentro espiritual da pessoa Vegana-vegetariana, é o divino que reside nela, que transcende o amor próprio, que nos permite afirmar que somos o que acreditamos e sentimos, mostrando o grau de abertura e o salto agápico do Ser, que aponta para uma nova identidade e consciência.

    Em síntese, o sentido de Vida passa por todos os momentos que vivemos, os alimentos que comemos e os que evitamos comer, as ideias e atitudes que iluminam o projeto existencial que escolhemos para nós, para a humanidade e para o planeta. Viktor Frankl (2014) dizia para seus alunos: “A vida é como um teatro, onde o homem pode ficar na plateia ou ser o ator principal que interpreta o papel mais importante, a sua própria existência […] na vida não são permitidos ensaios.”

    Primeira consideração: AUT AUT, ISTO OU AQUILO

    A análise dos dados permite-nos afirmar que a alimentação da pessoa Vegana-vegetariana representa uma forma de cultivar a alma, fruto de uma consciência intencional que implica um julgamento subjetivo, aceitação ou rejeição (e.g. Aut, Aut: isto ou aquilo). Isso nos permite pensar que na medida em que rejeitamos alguns alimentos, por exemplo comer carne, em forma categórica e axiológica, porque representa a abnegação do valor da vida: Somos o que (não) comemos.

    Por outro lado, é uma questão antropológica evidente, o corpo faz parte da nossa existência e somos feitos em parte pelo que comemos e em parte pelo que (não) comemos, pois as nossas células acabam por ser compostas pelo alimento do qual nutrimos e por aqueles que negamos absorver. Portanto, se de um lado somos o que comemos (aspecto biológico), por outro lado somos o que não comemos (aspecto axiológico). Os Veganos-vegetarianos escolhem valores. Isso nos permite pensar que a rejeição, fruto de uma decisão responsável e de uma livre escolha, define quem somos (identidade e Self).

    Interessante notar, que responsabilidade em alemão (Verantwortung) indica a relação da pessoa com a resposta (Antwort). Em termos existencialistas, a responsabilidade é a resposta da pessoa a uma pergunta que a vida põe e que se transforma em um juízo de valor e compromisso ético e psicológico-social. Numa perspetiva existencialista, somos o que (não) comemos porque somos os nossos valores, pensamentos, comportamentos, o que sentimos, a escolha de não comer o que amamos de forma incondicional e agápica.

    No caso específico, Nós somos os valores que intuímos a priori (epoché)

    Epoché é uma palavra grega que significa suspensão do juízo sobre as opiniões da consciência ingênua ou comum e que conduz ao resíduo fenomenológico, ou seja, a consciência intencional. Em outras palavras, os valores são qualidades axiológico-materiais (essências e objetivos determinados a priori) que aparecem à intuição e são percebidos pela consciência intencional. Portanto, quando as escolhas são sustentadas por uma autoconsciência que ilumina os valores, somos o que sentimos no coração que permite uma forma de ascese que supera o egoísmo e os apetites imanentes da pessoa.

    A construção da subjetividade e da ética é um processo de escolha e redução fenomenológica da consciência intencional que se origina no coração, determinando a vontade de sentido e sucessivamente se transforma em dever, mas não se reduz, sic et simpliciter (simplesmente), a uma manifestação a priori do imperativo categórico kantiano. Da mesma forma, Blade Pascal (1623-1662) em seu famoso aforismo “ordre du coeur or de una logique du coeur”, afirmou que existe um componente emocional do espírito, uma percepção afetiva do amor e do desejo que se origina a priori e não depende do pensamento e da lógica.

    Por outro lado, para Immanuel Kant, o imperativo categórico é um dever absoluto e incondicional que ilumina o agir da pessoa, implica o sacrifício da vontade particular em prol de uma dimensão racional e de uma máxima universal a priori. Em definitiva, a construção da subjetividade da pessoa Vegana-vegetariana não é resultado de um processo de especulação racional, mas é fruto da evolução espiritual da autoconsciência, que aprende a ética, por meio da intuição de valores (emocional a priori) e que se constrói na epoché da consciência intencional-transcendental.

    Vehano-vegetariano

    Em suma, é mais do que evidente que para o Vegano-vegetariano a separação cartesiana entre o corpo-máquina imanente, o sujeito como espírito transcendente e o objeto (comida, como dissociação significado-significante da categoria vida) não é possível.

    Somos o que comemos: O corpo físico é inseparável do sujeito espiritual e do objeto-alimento

    Assim o corpo e o espírito são influenciados e contaminados pelo que comemos, mas principalmente pelo que (não) comemos. No entanto, as duas afirmações não são auto excludentes e dicotômicas: a primeira afirmação representa a tese (somos o que comemos) e a segunda negação representa a antítese (somos o que não comemos).

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    A tese é quando a verdade é imediatamente apresentada, obviamente em forma ingênua. A tese é definir as coisas em sentido abstrato: Somos o que comemos – Consciência Empírica. A antítese é quando eu analiso esta verdade, a tiro de seu contexto genérico e lhe confiro uma verdade específica.

    A antítese nega que as coisas sejam tão simples e recupera todas as determinações que a tese havia perdido, que havia esquecido, que havia negligenciado, recupera o objeto do fenômeno em sua complexidade, nos outros elementos específicos: Nós somos o que nós (não) comemos – Autoconsciência. Agora, vamos analisar como tudo isso se desenvolve na prática da consciência.

    Segunda consideração sobre somos o que comemos: a síntese do homem entre uma afirmação e uma negação

    Num sentido fenomenológico, somos uma síntese dialética de uma afirmação e uma negação.

    Entretanto, a síntese, que representa o momento mais importante da evolução da consciência, ocorre em etapas graduais. Vamos analisá-las.

    1 ETAPA DA TESE, OU SEJA, CONSCIÊNCIA EMPÍRICA

    No início desse processo somos uma “consciência empírica” que representa a consciência comum e ingênua de uma pessoa que adota qualquer tipo de hábito alimentar.

    Nessa fase, a consciência se encontra como uma simples presença no mundo junto com outros objetos e ainda não tem nenhum tipo de conhecimento do que é, do que pode fazer ou se tornar, do que pode ou não comer.

    A través a dialéctica interna a consciência empírica (ou seja, a certeza sensível, a percepção e o intelecto) chega uma emancipação da consciência que gradualmente compreende que é distinta, sente que não tem somente apetites por tudo aquilo que existe ao seu redor; percebe que pode conhecer as propriedades e características daquilo que come; ela entende que é a legisladora no que diz respeito à sua escolha alimentar, que ela encontra como um objeto fora de si mesma.

    2 ETAPA DA ANTÍTESE, OU SEJA, AUTOCONSCIÊNCIA

    Nesta fase a consciência entende que está consciente de algo e se torna auto consciência. No entanto, a auto consciência é caracterizada pelo desejo e ganância de controlar tudo o que encontra em si, inclusive o poder de dominar o outro. Portanto, ocorre um inevitável e necessário conflito dialético com outras auto consciências, que são alter, ou seja, alteridade em relação a si mesmo.

    Todas as auto consciências querem ter direito a tudo (bellum omnium contra omnes) enquanto são caracterizadas pelo mesmo apetite, pelo mesmo desejo de supremacia, de conhecimento, que tenderá a subjugar as mais fracas, mas isso nunca poderá resultar na morte de uma autoconsciência, porque a presença de ambas ou de todas, seja um ganhando ou perdendo, é necessária para permitir a existência do outro.

    Surge um conflito entre a autoconsciência de quem afirma “quero comer carne” (tese) e a autoconsciência de quem nega “não quero comer carne” (antítese). Esse processo dialético, que se resolve em uma síntese, pode ser interno a uma pessoa e ocorre também na história da alimentação, que é uma busca constante de transformação espiritual e uma aspiração da psique humana.

    A dialética senhor-escravo

    Segundo Hegel (1980) nessa fase, surge a “dialética senhor-escravo”, que posteriormente, pela inversão de papéis, o senhor será escravizado, passará a ser escravo de seu próprio escravo que, graças ao trabalho, emancipa sua consciência e libertar-se (inversão dialética).

    É interessante notar que essa dialética é sempre interna à autoconsciência e também ocorre com as pessoas Vegana-vegetariana. Ou seja, a autoconsciência que se mostrou mais fraca (a mais medrosa das duas se afastará por medo de desaparecer ou ser superada dialeticamente) se tornará momentaneamente autoconsciência submissa (escravo – caracterizada por uma negação: não comer carne), enquanto que a outra, que teve mais coragem, se tornará autoconsciência dominante (senhor – caracterizado por uma afirmação: quero comer carne).

    No entanto, os papéis entre o senhor e o escravo estarão destinados a uma inversão dialética por meio de um elemento fundamental para a consciência (o trabalho), que no caso dos Veganos-vegetarianos representa sua consciência de mundo, sua missão de vida (educar outras consciências).

    Somos o que comemos e a teoria hegeliana

    A teoria hegeliana aponta que a verdade absoluta é prerrogativa de um ser onipotente e onisciente, portanto, o homem percebe que somente Deus pode atingir esses objetivos. Comparado a Deus, o homem se percebe como um nada, ou seja, uma “consciência infeliz”.

    A consciência infeliz nada mais é do que essa exasperação da ruptura interna, da dilaceração da consciência, que se caracteriza pelo fato de a autoconsciência buscar seu conteúdo não mais dentro de si, mas fora de si, em outra dimensão, ou seja, em uma dimensão transcendente. A incapacidade de atingir os objetivos a que se propõe torna-a, na verdade, infeliz e dependente de Deus.

    Segundo Blaise Pascal (1623-1662) “o homem é miséria e grandeza”, porque quer chegar ao infinito para conhecer a verdade, mas é miserável porque esse objetivo não pode ser alcançado nesta vida terrena. A consciência infeliz é a autoconsciência dos seus próprios limites que tenta lutar para subir até Deus, perder-se em Deus (por exemplo, misticismo cristão); que tenta encontrar o caminho do ascetismo (por exemplo, Siddhartha); que tenta anular a relação-dependência com Deus (por exemplo, a Ideia total da pessoas Vegana-vegetariana).

    Princípio do idealismo

    No entanto, ao contrário do princípio do idealismo, onde no estágio da razão o ser e o pensamento coincidem (entendem que Deus, a realidade e o homem são racionais e têm a mesma capacidade de conhecer o mundo), segundo a minha humilde opinião para uma pessoa Vegana-vegetariana, sentir e amar é mais importante do que pensar e isso inevitavelmente leva à negação da razão hegeliana (veja a idéia espiritual negativa).

    Em outras palavras, a consciência não pode ser encerrada na caverna do pragmatismo, da razão hegeliana ou do niilismo cético, mas obedece ao coração que tem suas raízes no “inconsciente transcendental”.

    De fato, o coração entende razões que a mesma razão desconhece.

    Crimes e castigos

    Em Crimes e Castigos, F. Dostoievski (1821-1881) inaugura outro modelo de percepção da consciência. O jovem Raskol’nikov (autor do assassinato) deve se render a uma prostituta Sonja (princípio da realidade) demonstrando que a consciência não pode ser encerrada em ideologia, cultura ou poder e que representa uma categoria transcendente, capaz de libertação e aceitação da dor como parte inelutável da vida, como liberdade da pessoa.

    Em outras palavras, quando a consciência do Vegano-vegetariano percebe que o lugar (dasein: o aqui-e-agora) que ele procura está justamente na dimensão do infinito, mas na realidade o infinito já está dentro dele mesmo e pode ser incorporado através de uma alimentação Vegana-vegetariana. Ao final deste processo, chega-se a uma composição, a uma harmonização, a autoconsciência percebe que é simultaneamente finita e infinita; ou seja, o infinito já se expressa dentro de si através da escolha alimentar.

    Ainda assim, o processo de conscientização e síntese dialética não se encerra com a negação da razão (tese) pela ideia espiritualista negativa (antítese) da pessoa vegana-vegetariana. A ideia espiritualista negativa e a ideia total (antítese) entram em conflito dialético com a ideia racional, a ideia judaico-cristã e a ideia natural do homem (tese). A posterior recomposição da autoconsciência ocorre por meio da terceira etapa, ou seja, da afirmação da ética dos valores (princípio da vida) e da negação da religião.

    Somos o que comemos e Hegel

    Para Hegel (1770-1831), no estágio do espírito realiza-se o ethos (a ética de uma sociedade). No entanto, o ethos representa apenas o momento afirmativo (tese), enquanto a “ética dos valores” e a consciência intencional representam o momento negativo (antítese).

    Em suma, o ego e o mundo (inicialmente separados) se unem, assimilam (o mundo vira alimento, vira ideias, valores e significado). Essa assimilação modifica, dialeticamente e espiritualmente, a identidade da pessoa (sou o que como e sou o que não como) superando a separação cartesiana (objeto-sujeito, alma-corpo).

    Em definitiva, o ser humano não é dicotômico e cartesiano, mas uma integralidade de corpo-alma-sociedade-espírito e do ponto de vista fenomenológico-existencial somos a síntese do que comemos e do que não comemos, tese e antítese, afirmação e negação que é resolvido em favor do princípio da vida (síntese).

    3 ETAPA DA SÍNTESE A FAVOR DO PRINCÍPIO DE VIDA: SOMOS O QUE NÃO COMEMOS

    A síntese da pessoa vegana-vegetariana ocorre pela superação (em alemão Überwindung) da tese inicial (somos o que comemos) com a afirmação do princípio da vida (que nega a morte de todos os seres vivos) que permite o salto da autoconsciência e a manifestação de valores materiais-transcendentes (justiça, paz e amor espiritual hiato).

    Acredito que a síntese da consciência não se resolve em favor do espírito formal-positivo-racional e absoluto hegeliano (Geist), mas na ideia espiritual negativa e total (Scheler, 2000), que se fundamenta na ética de valores e se define na auto consciência intencional.

    Em conclusão: somos o que comemos?

    A minha resposta a pergunta de partida é sim e não, ou seja, é tanto uma afirmação (sim), quanto uma negação (não). É evidente que em sentido ontológico “o ser é o que é” e evidentemente o que come (Aristóteles docet), mas em sentido axiológico-fenomenológico e sobretudo existencial, podemos afirmar que a pessoa Vegana-vegetariana se identifica com aquilo que sua autoconsciência nega comer.

    No fundo, a pessoa Vegana-vegetariana caracteriza-se por um Self estendido, fruto de um processo dialéctico de síntese e de escolha alimentar, que procura a eliminação e não a acumulação, a renúncia e não a abundância, que parte de dentro para fora e que supera o estágio hedonista através do salto agápico do processo fenomenológico da consciência. De fato, existe liberdade de escolha alimentar, mas a liberdade não é um fim e nem é o resultado do espírito absoluto hegeliano (a razão), mas é sempre a consequência da Verdade como disse Dostoiévski.

    Em conclusão, a alimentação da pessoa Vegana-vegetariana, implica uma ruptura com o paradigma tradicional de subjetividade e autoconsciência, e é caracterizada pela formação de uma nova relevante e revolucionária categoria de Sentido que pode ser expressa pela máxima:

    “SOMOS O QUE (NÃO) COMEMOS”.

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    Artigo escrito por Marco Bonatti. Sou Doutor PhD em Psicologia Social na UK na Argentina; Analista Reichiano do Corpo e do Caráter; Psicanalista Clínico e colunista no IBPC. Ajudo você a superar todos os conflitos psíquicos e desafios da vida. Faça análise e terapia diretamente on-line, no conforto da sua casa. Preços acessíveis a todos! EXPERIMENTE A PRIMEIRA SESSÃO GRATUITA! Escreva uma mensagem no WhatsApp descrevendo seu problema. WhatsApp (Brasil): +55 (85) 994263190 WhatsApp (exterior): +39 3703713601 E-mail: [email protected] Telegram: DrMarcoBonatti

    2 thoughts on “Somos o que (não) comemos: alimentação e sentido da vida

    1. Claudio marozzi disse:

      Um título não imediatamente inteligível é o deste longo artigo do dr. Bonati. Porém, ao desvendar o texto por meio de inúmeras citações de grandes autores, tanto no campo psicológico quanto no filosófico, Bonatti nos leva a uma compreensão profunda de seu pressuposto, que tem como foco a tese de que a escolha da vida vegana/vegetariana leva à maior harmonia possível consigo mesmo, com os outros e, finalmente, com a totalidade do ser.
      Partindo da constatação irrefutável do momento de crise, portanto de transformação, da humanidade com seu habitat próprio, consumido sem qualquer restrição ética, passando então pela tese materialista defendida por Feuerbach no ensaio “Ciências naturais e revolução” (o famoso pressuposto ), Dr. Bonatti acaba transformando-o em seu oposto: somos o que não comemos.
      De todos os autores devidamente citados, na minha opinião três são os fundamentais.
      O primeiro é Max Sheler com sua teoria das ideias filosóficas fundamentais (judaico-cristã; racional; naturalista; espiritualista negativo; total). Analisando-os em relação à escolha vegana/vegetariana, o autor com agudas observações chega à conclusão de que ela é atribuível às duas últimas, pois é conotada como a capacidade de transcender a si mesmo por meio da inteligência e da escolha de valores, o que não depender de alguém fora ou acima de nós: o v/v sabe transcender suas próprias necessidades materiais, assumindo apenas a consequente responsabilidade sobre si.
      O segundo é Viktor Frankl (com seus três componentes da teoria do significado), enquanto o terceiro é mesmo Hegel, cuja Fenomenologia do Espírito é revisitada por Bonatti (e eu diria com resultados admiráveis) para explicar, por meio das categorias dialéticas fundamentais da texto do grande idealista, a construção da subjetividade vegana-vegetariana como resultado de um processo de evolução espiritual de autoconsciência, que supera a relação materialista e cosmófaga com o mundo chegando a uma nova e ética comunhão com ele, que visa proteger o planeta e se identifica com a prática dos valores da benevolência, amor e universalismo.
      Eis então que a .
      O v/v é então o que ele (NÃO) come, porque escolheu com responsabilidade para si mesmo, para a humanidade e para o planeta.
      Não foi pouca coisa que o Dr. Bonatti enfrentou, e parece que em algumas passagens houve certo esforço para manter solidamente o fio da discussão, objetivo que, de qualquer forma, foi amplamente bem-sucedido. O verdadeiro ponto que se pode apontar para ele é antes o de um acúmulo excessivo de material, em suma, de uma certa prolixidade que prejudica a clareza do texto. Este defeito é compensado pela superabundância de material que Bonatti põe diante de nós, uma autêntica mina da qual todos podem se apropriar de pedras preciosas de grande valor.
      O leitor terá a resposta se conseguiu convencê-lo de sua tese.
      prof. Cláudio Marozzi

    2. Mizael Carvalho disse:

      Obrigado por compartilhar seus conhecimentos!

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