Da abordagem fenomenológica da experiência analítica à transferência. Segundo consta no Vocabulário de Psicanálise, “a transferência é classicamente reconhecida como o terreno em que se dá a problemática de um tratamento psicanalítico, pois são a sua instalação, as suas modalidades, a sua interpretação e a sua resolução que caracterizam este” (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001, p. 514).
A seguir, os autores alertam acerca do fato de se tratar de uma noção de difícil definição, devido à amplitude de sua significação dentro do vínculo psicanalítico, dependendo da visão de cada analista sobre o seu ofício, sobre a relação com o paciente, quer dizer, o tempo e o modo do fazer psicanalítico.
Sobre a abordagem fenomenológica
De acordo com o Dicionário de Psicanálise (1998), transferência seria um termo progressivamente introduzido por Sigmund Freud e Sandor Ferenczi (entre 1900 e 1909), para designar um processo constitutivo do tratamento psicanalítico mediante o qual os desejos inconscientes do analisando concernentes a objetos externos passam a se repetir, no âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado na posição desses diversos objetos (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 766-767).
Os autores apontam a preexistência do conceito, que não fora introduzido por Freud, sendo que “a inovação freudiana consistiu em reconhecer nesse fenômeno um componente essencial da psicanálise, a ponto, aliás, de esse novo método se distinguir de todas as outras psicoterapias por empregar a transferência como instrumento da cura no processo de tratamento” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 767).
De antemão (1895) (1900), Freud tinha entendido a transferência como um deslocamento no âmbito das representações psíquicas, sendo que, num segundo momento, o Pai da Psicanálise sistematizou a transferência, ao compreendê-la enquanto reprodução de sentimentos e desejos da criança para com os pais.
Freud e a abordagem fenomenológica
Com base na qualidade desses sentimentos e desejos, Freud (1912) discerniu entre transferência positiva, negativa e ambivalente. Ainda, Freud investiu no aprofundamento deste conceito, que veio a se tornar o elemento central da práxis psicanalítica quando o médico vienense enfatizou o aspecto repetitivo da transferência, quando a mesma reproduz traços da sexualidade infantil, antes direcionada aos pais e que, no contexto da clínica psicoterapêutica, é atualizada e transposta inconscientemente para a pessoa do analista.
Aquilo que, inicialmente, Freud tinha considerado um obstáculo para o tratamento, é compreendido por ele (1920) como sendo o maior aliado do analista, quando o psicoterapeuta consegue manejá-lo da forma adequada, para obter a liberação do recalcado através da conscientização do paciente a respeito de sua neurose infantil (via insight).
Sucintamente, é a partir dessa reedição da neurose clínica em forma de neurose de transferência, que o analista pode absorver o inconsciente do enfermo, ajudando-o a desvendar a neurose infantil e, desta maneira, a obter a cura da neurose clínica (e não só a eliminação dos sintomas patogênicos).
Abordagem fenomenológica e os os psicanalistas freudianos
Se para os psicanalistas freudianos há consenso sobre a relevância das reações transferenciais para com a práxis psicanalítica, mas há diversas abordagens com relação ao manejo da transferência por parte do analistas, é interessante observar, com Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998) que o viés Kleiniano e pós-kleiniano (Bion etc.) aposta numa abordagem voltada para o trabalho intrapsíquico do psicoterapeuta, excluindo a realidade externa, sendo que o analista opera um “fazer de conta”, através do qual coloca a si mesmo na posição de um psicótico, interiorizando a transferência do paciente (trazendo-a para o psiquismo dele, ou seja, transpondo-a do contexto relacional clínico para o âmbito intrapsíquico), o que seria conveniente perante um tipo de transferência psicótico.
Este viés pressupõe o uso da “telepatia” ou, com Freud (citado por Roudinesco e Plon), “transferência de pensamento”. A este respeito, sabe-se que, embora Freud não negasse a possibilidade da psicanálise ser utilizada com pacientes psicóticos, o Pai da Psicanálise alertava para que, nestes casos, o analista passasse a proceder com muito cuidado.
De fato, com Freud, percebe-se que a psicanálise é efetiva e eficaz no caso das neuroses, como histeria e neurose obsessiva. Outros psicanalistas cujas contribuições foram póstumas aos escritos e às experiências freudianas, demonstraram (embora isso não seja uma regra) que a psicanálise pode ser sim, eficaz, no caso de pacientes psicóticos.
A importância dos psicoterapêutas
Melanie Klein e Wilfred Bion, justamente, foram entre eles. E além destes psicoterapêutas, Jaques Lacan, notadamente, foi um dos que tiveram melhores resultados em termos de clínica psicanalítica junto a pacientes acometidos por transtornos psicóticos, apesar que o mesmo Lacan admitiu não saber bem como foi que conseguiu curar certos sujeitos.
Lacan inicialmente sublinha o viés revolucionário peculiar da abordagem freudiana. O psiquismo anteriormente considerado estritamente com relação ao imaginário, passa a ser compreendido no âmbito do real, e especificamente, dentro da interação social. A esse respeito, sinaliza-se que o vínculo analítico é, substancialmente, um encontro social entre o paciente e o analista.
A clínica pressupõe um encontro interpessoal de uma natureza que, se não fosse soar estranho ou até parecer um termo de baixo calão, poder-se-ia chamar de “inter-inconsciente”. De acordo com as considerações acima e as posições dos vários psicanalistas, me parece ser possível afirmar que a transferência ocorre dentro de um contexto real, que é o da clínica psicanalítica, no qual ocorre o vínculo entre o paciente e o analista.
A aproximação interpsíquica na abordagem fenomenológica
Dentro deste contexto, todavia, há uma necessária aproximação interpsíquica que, por sua vez, torna-se intrapsíquica (de onde o “palavrão” acima, “inter-inconsciente”). Ou seja, parte-se de um contexto real para adentrar o imaginário e suas fantasias recalcadas, através da disposição do analista em utilizar o próprio inconsciente (o dele, do terapeuta) para absorver parte do inconsciente do analisando.
Este, por sua vez, precisará confiar o suficiente no analista para reproduzir, através do vínculo com o mesmo, comportamentos neuróticos inconscientes, transferindo-os para o âmbito da clínica psicanalítica e, assim, favorecendo a referida absorção por parte do psicoterapeuta que, através da interpretação, descobrirá a neurose infantil do enfermo.
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A neurose clínica, portanto, torna-se neurose de transferência e, por meio da neurose de transferência, é possível promover um insight no paciente, por meio do qual, o sujeito poderá resolver os conflitos advindos do recalcado, quer dizer, dos afetos aflitivos que foram expulsos da mente consciente e não apenas reprimidos, mas sim, recalcados no inconsciente, de onde não cessaram de existir, suscitando a neurose, por sua vez baseada numa neurose anterior, pré-histórica, inerente à primeira infância.
A neurose infantil e a transferência
A tal neurose infantil continua se repetindo de maneira compulsiva, reiterando e se atualizando em novas formas, algo que pode lembrar uma mandala. A transferência, basicamente, é o caminho de acesso ao recalcado, aos desejos inconscientes que, devido ao conflito, produzem a enfermidade neurótica. Feitas essas considerações introdutórias, podemos adentrar a abordagem de Jaques Lacan acerca da transferência, contida no texto Escritos (1998).
Lacan considera a experiência analítica a partir de dois pressupostos: a lei de não-omissão e a lei de não-sistematização. Com relação à primeira, essa se refere àquilo que “compreende-se por si só”, tratando-se de fatos inerentes ao cotidiano. E à segunda refere-se à necessidade de não excluir aspectos como delírios, pressentimentos, sonhos e fantasias e, por outro lado, aspectos como lapsos (de linguagem ou ação).
Sabe-se que Freud atribuía enorme importância aos chamados “atos falhos”, justamente enquanto revelações inconscientes. As duas regras acima são sintetizadas, segundo Lacan, na “lei da Associação Livre”.
Lacan e a experiência analítica
Poder-se-ia resumir a dupla conceituação lacaniana com relação à não-omissão e não-sistematização como: tudo é importante em análise, principalmente aquilo que transcende a esfera consciente, inclusive atos falhos ou incoerências. Lacan considera a experiência analítica enquanto elemento da técnica terapêutica.
E é nela que ocorre a transferência. Mas, antes do que mais nada, o psiquiatra francês realça a importância da linguagem, do signo, que nada mais seria senão o dado da experiência analítica. Lacan pondera acerca da relação existente entre o paciente e a linguagem, e entende a linguagem enquanto “expressão do pensamento puro, não formulado” (LACAN, 1998, p. 86).
O autor sinaliza a complexidade advinda do como olhar para a linguagem, a partir de qual viés? Porém, destaca que, dentro da psicanálise, a reflexão sobre linguagem deve levar a entender, principalmente, aquilo que a linguagem significa para o sujeito. Ou seja, “toca no fato simples de que a linguagem, antes de significar alguma coisa, significa para alguém” (idem).
Adentrando na abordagem fenomenológica de Lacan
Lacan está falando sobre a importância de se compreender a intenção do discurso, mesmo que em si a linguagem não signifique nada. Mas aquele “nada” significa de acordo com a intenção com a qual foi comunicado, inclusive o silêncio.
O autor parece sugerir estar se referindo à sobre-coisa. Quer dizer, há a coisa (sentido do que é dito, da linguagem), e há a sobre-coisa (a intenção), de onde pode-se interpretar a outra coisa (material inconsciente).
Lacan afirma que a resposta do ouvinte seria um movimento através do qual o ouvinte “sente” o “sentido” da linguagem utilizada pelo interlocutor. Mas é necessário suspender esse movimento, ou seja, a resposta, para que ele possa não tanto sentir, e sim, compreender o sentido do discurso. E é isso que o analista faz.
A compreensão do analista
Através da compreensão do sentido, o analista percebe a intenção do discurso, pois todo discurso tem uma intenção subjacente. Segundo o autor existem diversas modalidades de intenção: reivindicatória, punitiva, propiciatória, demonstrativa e puramente agressiva (entre outras).
É na experiência, portanto, que se releva a intenção do discurso, que é “inconsciente enquanto expressa, consciente enquanto reprimida” (p.86). Lacan parece sugerir que a intenção do discurso pode representar uma chave de acesso ao inconsciente.
Me parece que, consequentemente, existe um vínculo entre intenção do discurso e transferência, sendo que, ambas, para se tornarem manifestas, expressas, precisam ser inconscientes. A repressão ocorre quando o sujeito percebe estar revelando, mostrando uma das cartas que segura em suas mãos.
A ambiguidade constitutiva
Automaticamente, ele tentará encobri-la, escondê-la. Lacan fala em “ambiguidade constitutiva” da intenção, havendo uma contradição entre ela e o pensamento. A intenção mente contra o pensamento.
A impassibilidade do analista viabiliza a substituição de si, enquanto interlocutor, por outro, com quem, de fato, o sujeito analisando está a se comunicar, e assim, “o sujeito trai a imagem com que o substitui” (p. 87).
Percebe-se a pertinência desta discussão fenomenológica sobre a experiência analítica com relação às reações transferenciais. Ainda, sobre intenção, o autor ressalta: “Entretanto, à medida que essas intenções tornam-se mais expressas no discurso, elas são entremeadas de discursos com que o sujeito as apóia, as reforça, fazendo-as recobrar o fôlego: ele formula aquilo de que sofre e o que quer superar aqui (…)” (p. 87).
A importância da perspectiva e abordagem fenomenológica
Ocorre então a emergência de “relatos puros e que parecem fora do assunto, ‘hors du sujet’, que o sujeito agora joga no fluxo de seu discurso, eventos sem intenção e fragmentos das lembranças que constituem sua história, e, dentre os mais disjuntos, aqueles que afloram de sua infância” (idem). Mais uma vez, a impassibilidade do analista, suscitou uma imagem, a imagem de um retrato de família. Imago do pai, da mãe, de um irmão.
Essa imagem é explicativa acerca do sujeito analisando, mas ele a ignora, pois ela emerge de maneira inconsciente (e fragmentária), fora do logos racional e causal. Daí a famosa frase lacaniana: “Penso onde não sou, logo sou onde não penso”.
Quanto à transferência, é neste momento que, “enquanto o analista acaba de reconhecer essa imagem, o sujeito, pelo debate que conduz, acaba de lhe impor o papel dela” (p. 88). De “lhe” impor, isto é, ao analista, bien sûr.
A interpretação do analista
É através dessa perspectiva fenomenológica, focada na experiência analítica, que Jaques Lacan explica a transferência, ou reação transferencial. E acrescenta: “é dessa posição que o analista extrai o poder de que irá dispor para sua ação sobre o sujeito” (idem).
A partir deste momento analítico, o psicoterapeuta irá proceder, segundo Lacan, de duas maneiras, através da “elucidação intelectual” (via interpretação), e o da “manobra afetiva” (pela transferência).
Ainda, Lacan aponta para as noções de técnica e tato, ambas importantes quanto ao manejo da situação transferencial: a técnica se refere à fixação dos tempos, que dependem das reações do sujeito analisando; e o tato se refere à velocidade da intervenção do analista, cuja finalidade, lembremos é a de devolver ao sujeito analisando uma visão coesa de sua neurose infantil, completada a partir dos fragmentos aparentemente incoerentes oferecidos de maneira inconsciente pelo enfermo.
Considerações finais
Verifica-se, assim, a importância desse breve fragmento dos Escritos, caracterizado por uma abordagem fenomenológica da experiência psicanalítica, para uma melhor compreensão a respeito das reações transferenciais.
O presente artigo foi escrito pelo autor Riccardo Migliore, que possui PhD em Letras pela Universidade Federal da Paraíba, é psicoterapeuta e professor de meditação. Formando em Psicanálise Clínica, pós-graduando em Psicanálise. Maiores informações: www.institutoportaldaalma.com