O objetivo aqui é apresentar uma análise do conto Alma Infantil, ou Alma de Criança, do autor Hermann Hesse. Este é um relato afetivo sobre atos condenáveis de um menino que não sabe bem como escondê-los.
Ele vai brincar de esconde-esconde com suas atitudes, narrando os fatos pelos quais passa com uma memória emotiva surpreendente. O conto reflete aspectos da infância do próprio autor.
Hermann Hesse
Hermann Hesse (1877-1962) nasceu na Alemanha e se naturalizou suíço em 1923. Foi criado num meio rigoroso, e acabou rompendo com esses valores, assumindo também uma veia literária. Recebeu um Prêmio Nobel em 1946.
Teve contato com a Psicologia Analítica, devido a uma depressão decorrente da Primeira Guerra Mundial, e esta abordagem teve influência em sua obra.
Hermann Hesse escreveu o conto Alma de Criança em 1919. O conto nos lembra angústias e os riscos da infância, com dinâmicas psíquicas que podem seguir o indivíduo pela vida.
O conto Alma Infantil
No começo do conto o menino, de onze anos, e um amigo chamado Oskar Weber resolvem ter a inusitada – e péssima – ideia de juntar dinheiro para comprar uma arma. Ele conheceu Weber faz pouco tempo, mas está chamando Weber de melhor amigo, admirado com aquele que parece ser tudo o que ele não é.
Weber é destemido, tem desenvoltura diante do perigo, e os golpes da escola não doem nele. Sua linguagem é grossa, crua. O menino interpreta isso como ser “adulto”. Incomoda ser criança e só ter que obedecer, não ser ninguém no mundo dos adultos.
O menino entra numa espiral de acontecimentos, distanciando-se do que seu lar rigoroso esperaria dele.
Só obedecer torna-se um peso
O menino entra no aposento dos pais, levando coisas de lá. Encontra vários figos secos. Intrigado com aquela descoberta, experimenta uns, leva mais figos para seu quarto, escondendo-os. Ele se sente um criminoso, percebendo que seu ato não tem mais volta.
Lembra-se de um criminoso que viu ser arrastado sob gritos na sua cidade, e que naquele momento até ele havia gritado com o bandido. Agora ele era o bandido, ele furtou figos. Vai narrando como se sente naquele novo papel, escondendo tudo o que fazia, ansiando o momento em que seria descoberto.
Ele percebe que admira pessoas que não têm que obedecer sempre. Mais tarde, foge, não vai à aula. Mais tarde, entra numa briga de rua com Weber. Mais tarde, aparece sujo e rasgado em casa.
E agora? Incertezas e fantasia do conto Alma Infantil
Agora ele não tem escapatória, ele é um “delinquente”, a briga em casa é certa! Mas, ao contrário, agora estão tão gentis com ele.
Ele havia se preparado para mais uma briga em casa, que não acontece. O dia seguinte é um domingo e eles saem juntos, mesmo que fosse para ser da forma costumeira, com um e outro problema pelo caminho.
O menino reflete essas questões, fantasiando muitas coisas, sem saber o que fará quando descobrirem a verdade.
As regras
Mais tarde ele está encontrando a paz, ninguém descobriu nada. É quando o pai rigoroso entra no seu quarto. Só um olhar dele é suficiente, o menino lhe mostra os figos escondidos e… mente, dizendo que os comprou. Ele vai de equívoco em equívoco e chateado, pois foi pego despreparado. O pai resolve tirar a prova, vão os dois perguntar ao vendedor, de quem ele diz que comprou os frutos. Agora a vergonha será pública.
Quantos sobressaltos ele passa por mentir e mentir, e ter comido figos, que talvez ninguém quisesse dividir. Ele se pergunta durante o conto: “que faziam os figos na casa?”. Mas ninguém fala sobre isso, ele tem que seguir as regras. Ele não seguiu as regras e irá pagar. Não é como Weber, que sai das encrencas sem sentir.
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O pai vai desistir do teatro público, mas ainda vemos aqueles dramas infantis, um esconde-esconde, um pega-pega, e no fim ninguém sabe o porquê da comida gostosa ser escondida. Quanto ao menino, ele vai crescer, terá a vida inteira para aprender a ajustar suas atitudes. O quanto antes, melhor.
O menino e a neurose
No conto, Hermann Hesse chega a citar o termo “neurose”. O menino nota que nada que ele projetava parecia prosperar, nem o cofrinho para comprar a arma, ele não havia colocado mais nada mais lá. O menino não sabia o que o fazia ficar perto de Weber. Provavelmente aquela natureza neurótica fazia parte disso. Enquanto ele se reprimia, Weber realizava seus desejos.
Isso chama a atenção para a importância de se observar esses arranjos inconscientes, a começar na formação de grupos, onde crianças e adolescentes vivem ou estudam. Quando Weber soube que o pai do menino ganhava melhor que o seu, já o convenceu a formar um “fundo” para comprar uma arma de “dois canos”. Como a dizer: um para mim, outro para você.
Dependendo de quem tem como companhia (um perverso), o neurótico pode ser empregado como “culpado favorito”. O que poderia acontecer com o menino andando com alguém como Weber é que Weber poderia cometer um grande erro e ele “iria junto”, como no cano duplo da arma. Iria se dar mal, “entrar pelo cano”.
O culpado
Seria apontado como “culpado” das decisões equivocadas de Weber. E muita gente iria acreditar nisso.
Quando se viu bandido prestes a ser denunciado por figos, ele rompeu a amizade com Weber, projetando nele todo o desprezo que sentia por si mesmo.
Quem sabe até já estava brigando para não ser apontado como culpado de algo que sabia que chegaria, a sentença sobre figos ou algo muito pior depois, caso chegassem um dia a comprar uma arma.
A sequência emocional no conto Alma Infantil
O menino revela no conto o que sentia no ato de furtar figos, a “tentação”: chegou a casa e não viu ninguém. Sentiu-se mal, procurou o pai para conversar, lamentavelmente não o viu, viu coisas, os figos e os levou. Arrependeu-se, culpou-se, condenou-se.
Teria sido mais fácil furtar, se o pai fosse um bandido, mas o dele era alguém de aparência muito justa. Ele sofre com cada uma daquelas condições emocionais que relata numa sequência impressionante.
Não conversam a respeito, mas o menino dá “a volta por cima”: é confinado pelo pai no sótão da casa. Entretanto, lá encontra livros que “não eram de criança”, lendo-os durante o castigo.
Sentimento de criança
Se na casa as pessoas são austeras, lá as conversas podiam ser escondidas, falando-se até numa outra língua para ninguém entender. Lá tem livros picantes escondidos e figos escondidos. O que mais estaria escondido?
Ele escondeu coisas, talvez outros já brincassem disso também. Ao fim, narra que o pai o perdoou, terminando com a frase: – Mais que eu a ele. O pai o havia perdoado, mas ele não tinha perdoado tanto o pai.
Ele percebeu, embora não pudesse dizer, que ele também tinha o direito de sentir. A criança também sente medo, insegurança e se sente só.
O presente artigo foi escrito por Regina Ulrich([email protected]). Autora de livros, poesias, tem PhD em Neurociências, e gosta de contribuir em atividades de voluntariado.