Neste artigo, analisamos o fenômeno bebê reborn à luz da psicanálise, explorando como o vínculo com essas bonecas hiper-realistas pode funcionar como objeto transicional, sinalizar regressão psíquica ou refletir um mal-estar social relacionado à saúde mental. Com base em autores clássicos e abordagens contemporâneas, o texto discute as implicações emocionais e simbólicas desse apego afetivo que, para muitos, ultrapassa o brincar e adentra o campo do sofrimento e da fantasia.
O Fenômeno das Bonecas ‘Bebê Reborn’ e a Saúde Mental no Brasil
A crescente popularidade das bonecas chamadas de ‘bebês reborn’ no Brasil tem gerado reflexões profundas entre psicanalistas e outros profissionais da saúde, especialmente sobre os impactos emocionais e sociais desse fenômeno.
Essas bonecas hiper-realistas, tratadas por muitos como filhos, levantam questões sobre desamparo, substituição simbólica e regressão psíquica.
Veremos abaixo como psicanalistas clássicos, além de Freud, observariam este fenômeno:
Sigmund Freud e a compulsão à repetição
Freud poderia interpretar esse fenômeno como uma manifestação da compulsão à repetição, onde o sujeito busca reviver experiências passadas não elaboradas.
O apego excessivo a um objeto inanimado como as bonecas ‘bebê reborn’ pode indicar um mecanismo de defesa contra a perda, evitando o confronto com o luto (processo extremamente natural e necessário) e a castração simbólica.
Jacques Lacan e a falta estrutural
Já para Lacan, o desejo humano é estruturado pela falta, e as bonecas ‘bebê reborn’ podem ser vistas como uma tentativa de preencher um vazio simbólico.
A pessoa que investe emocionalmente nessas bonecas pode estar buscando um outro idealizado, que nunca frustra, nunca abandona e nunca exige.
Essa relação pode ser interpretada como uma recusa da castração simbólica, onde o indivíduo tenta negar a incompletude inerente à condição humana.
Melanie Klein e a posição esquizoparanóide
Klein, ao estudar o desenvolvimento infantil, identificou a posição esquizoparanóide, na qual o bebê lida com angústias primitivas projetando aspectos bons e maus em objetos externos.
O fenômeno das bonecas ‘bebê reborn’ pode ser visto como uma tentativa de manter um objeto idealizado, sem frustrações, evitando o contato com aspectos dolorosos da realidade.
Donald Winnicott e o objeto transicional
Winnicott introduziu o conceito de objeto transicional, que ajuda a criança a lidar com a separação materna.
No caso das bonecas ‘bebê reborn’ esse conceito pode ser ampliado para adultos que buscam conforto emocional em um objeto que simula um vínculo afetivo.
No entanto, quando essa relação se torna excessiva, pode indicar um fracasso na constituição do self, onde a pessoa não consegue diferenciar fantasia e realidade.
Autores atuais têm analisado esse fenômeno como um sintoma coletivo, refletindo um mal-estar social marcado por vínculos extremamente frágeis e uma crescente e preocupante dificuldade em lidar com a perda e a frustração.
Apontam que a hiper-realidade das bonecas ‘bebê reborn’ pode ser uma resposta ao desamparo contemporâneo, onde a sociedade contemporânea busca substituir relações genuínas por simulacros afetivos, exacerbados pelas redes sociais, onde tudo parece perfeito.
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No setting analítico, a abordagem psicanalítica do fenômeno dos bebês reborn deve considerar as motivações inconscientes que levam pessoas a estabelecer vínculos intensos com essas bonecas.
Alguns pontos importantes podem ser explorados:
1. Investigação da falta e substituição simbólica
A psicanálise entende que o sujeito é estruturado pela falta, e a relação com a boneca hiper-realista pode ser um mecanismo para preencher essa ausência.
O psicanalista deve ajudar o paciente a identificar o objeto perdido que essa boneca representa, seja um vínculo materno insuficiente, um luto não elaborado ou um desejo infantil que permaneceu ativo na vida adulta.
2. Trabalho com a regressão e o desamparo
Pacientes que investem emocionalmente nessas bonecas podem estar em um estado de regressão psíquica, retornando a fases anteriores do desenvolvimento emocional para evitar o confronto com perdas reais, devendo o psicanalista auxiliar na elaboração desse desamparo, permitindo ao paciente reencontrar sua capacidade simbólica sem necessidade de depender de um objeto hiper-realista.
3. Integração do real, simbólico e imaginário
Sob a ótica lacaniana, pode-se examinar como essa relação se insere nos três registros fundamentais:
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Imaginário: A boneca como um objeto que sustenta uma fantasia de plenitude;
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Simbólico: O papel da boneca na estruturação dos significantes do sujeito, incluindo sua relação com a maternidade e o desejo;
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Real: O efeito dessa relação na vida cotidiana do paciente, identificando se há uma ruptura do laço social ou se a boneca ‘bebê reborn’ funciona apenas como um suporte transitório.
4. A abordagem winnicottiana tendo como foco o relacionamento mãe-bebê e o objeto transicional
O analista pode investigar se a boneca atua como um objeto transicional legítimo ou se há uma fixação patológica.
Se a boneca estiver impedindo o paciente de estabelecer vínculos reais, será necessário trabalhar a aceitação da perda e da separação como parte do amadurecimento emocional.
5. Diferenciação entre sintoma individual e sintoma social
A psicanálise deve levar em consideração que o fenômeno das bonecas hiper-realistas pode estar refletindo um mal-estar coletivo, relacionado à dificuldade de lidar com vínculos afetivos e à crescente busca por simulações de afeto.
O setting analítico pode e deve investigar se essa relação com a boneca responde a uma questão subjetiva específica ou se há prováveis influências culturais e sociais que reforçam essa tendência.
Modalidades Psicanalíticas para Compreender o Vínculo com o Bebê Reborn
A abordagem psicanalítica para pacientes que vivenciam o fenômeno das bonecas ‘bebê reborn’ pode modalizar conforme a técnica utilizada, levando em consideração aspectos como regressão psíquica, substituição simbólica e elaboração do luto.
Aqui estão algumas possibilidades de modalidades na abordagem psicanalítica, levando-se em conta pensamentos e teorias dos psicanalistas ditos ‘clássicos’:
1. Psicanálise Freudiana: Exploração do Inconsciente e da Compulsão à Repetição
O tratamento pode focar na identificação de conflitos infantis não resolvidos, investigando possíveis traumas ou perdas precoces.
O uso da boneca pode estar relacionado à compulsão à repetição, mecanismo pelo qual o sujeito revive experiências traumáticas para tentar dominá-las.
O psicanalista pode auxiliar o paciente a associar essa substituição simbólica a desejos inconscientes, trabalhando a aceitação da perda e promovendo a elaboração do luto.
2. Psicanálise Lacaniana: Castração Simbólica e Desejo
No setting lacaniano, o psicanalista pode explorar como a relação com a boneca associa-se na estrutura discursiva, identificando o que essa boneca representa na estrutura significante do paciente.
Além disso, pode-se trabalhar a castração simbólica, ajudando o paciente a reconhecer que a completude é impossível e que a falta está na origem de um desejo não satisfeito, sendo constitutiva da subjetividade.
Técnicas como a pontuação e a interpretação podem ser utilizadas para evidenciar como a boneca funciona como um objeto que disfarça a ausência sentida.
3. Psicanálise Winnicottiana: O Verdadeiro Self e o Objeto Transicional
Para pacientes que usam a boneca como um suporte emocional, a abordagem winnicottiana pode investigar se ela atua como um objeto transicional ou se há um enfraquecimento da experiência subjetiva, onde o vínculo com a boneca substitui relações reais.
O tratamento pode incluir intervenções que ajudem a construção de um verdadeiro self, possibilitando ao paciente tolerar frustrações e a desenvolver vínculos saudáveis.
4. Psicanálise Kleiniana: A Integração do Objeto e a Elaboração de Fantasias
O pensamento de Melanie Klein pode ajudar o paciente a identificar fantasias inconscientes ligadas à boneca hiper-realista, explorando se há projeções de angústias primitivas ou uma idealização extrema do objeto (boneca).
Técnicas como a interpretação de fantasias agressivas e ansiedades persecutórias podem ser usadas para permitir a integração de aspectos bons e maus, favorecendo uma percepção mais realista da própria individualidade.
Independentemente da técnica escolhida, o fundamental é compreender o significado que a boneca tem para o paciente e como isso afeta sua subjetivação e seus laços sociais.
O processo terapêutico no setting analítico deve procurar integrar a experiência emocional vivida pelo paciente, possibilitando um espaço onde este possa ressignificar a relação com a boneca e construir novas formas de vínculo afetivos e sociais.
Ressignificar o Vínculo com o Bebê Reborn na Clínica Psicanalítica
O fenômeno das bonecas ‘bebês reborn’ no Brasil tem gerado também intensos debates culturais, especialmente sobre os limites entre fantasia, afeto e saúde mental.
Em um mundo onde relações interpessoais são cada vez mais mediadas por tecnologia e isolamento, a busca por um objeto hiper-realista deve ser observada como uma tentativa de reconstrução simbólica do afeto.
Em um contexto cultural onde a imagem e o hiper-realismo ganham centralidade, as bonecas hiper-realistas parecem funcionar como símbolos que são descolados de significados concretos.
É de senso comum que o brincar na infância é essencial para a saúde psíquica, pois permite uma expressão segura dos impulsos e fantasias inconscientes da criança.
No entanto, quando a fantasia se mescla com a realidade, existe o risco de se entrar no campo do delírio, já que parece existir por parte das pessoas que “vivem a experiência” da posse de uma boneca ‘bebê reborn’ (existem ‘maternidades’, simulações de partos, chá de bebês, tentativas de consultas com médicos pediatras e até mesmo disputas judiciais pela “guarda” da boneca, dentre outras peculiaridades observadas neste fenômeno social e cultural) uma preocupante dificuldade em lidar com perdas e uma grande fragilidade na obtenção de laços sociais e trocas afetivas reais.
Entre o Sintoma Coletivo e a Possibilidade Terapêutica: Considerações Finais sobre o Bebê Reborn
Este impacto cultural das bonecas hiper-realistas tem suscitado debates sobre ética e saúde mental que chegaram ao Congresso Brasileiro, onde propostas de regulamentação para evitar abusos estão sendo estudadas, incluindo a proibição de atendimento em unidades de saúde, públicas e privadas e multas para quem utilizar as bonecas para fins não permitidos.
É alarmante notar o que o fenômeno das bonecas hiper-realistas revela sobre a subjetividade contemporânea, podendo ser um sintoma de um desamparo coletivo contemporâneo, refletindo um mal-estar social marcado por vínculos sociais extremamente frágeis e uma crescente dificuldade cultural e social em lidar com perdas e a frustrações.
Não se pode deixar de fazer uma importante observação de que as bonecas hiper-realistas podem ser um recurso terapêutico legítimo, especialmente para pessoas em luto ou em sofrimento psíquico, desde que dentro de um processo terapêutico conduzido por profissionais da área de saúde mental, como o psicanalista, o psiquiatra e o psicólogo.
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Artigo escrito por Julieta Pedrosa. Analista em formação. Graduada em Arquitetura e Urbanismo/UFRJ. Pós-graduada em Análise e Avaliação de Projetos/FGV. Formada em Gemologia e CAD/CAM pelo GIA-Gemological Institute of America, com diversos cursos nacionais e internacionais na área da Joalheria. Designer de joias no Julie Joias Brasileiras Atelier (IG @juliejoiasbrasileirasatelier), produz também conteúdo diário sobre psicanálise e autoconhecimento no IG @analisandose_ Escritora, professora de História da Joalheria e de Gemologia. Livro: Pequenos Contos no Espelho, disponível na Amazon https://encurtador.com.br/uRZP5