Entenda o significado do inconsciente e seu lugar entre civilização e barbárie, a partir das perspectivas da Psicanálise e da Filosofia. Neste artigo o autor Marco Bonatti tenta responder a duas perguntas de partida: Se nós somos nosso inconsciente, que forma a totalidade da nossa vida psíquica, influenciando as instâncias do ego (autoconsciência) e superego (proibições e ideais padrão), como podemos ter a autodeterminação? Se o sujeito é um escravo plasmado pelo inconsciente, a liberdade de escolha é uma ilusão filológica?
Civilização e barbárie
No final de 1800 início de 1900 a crise do homem moderno caracterizado pela presunção do cogito e da razão, dono das suas vontades e decisões, senhor das suas escolhas e responsável pelo seu destino, cede o lugar ao homem contemporâneo, um sujeito cindido e dividido, não mais senhor de si, aprisionado entre desejos, pulsões inconscientes e imposições morais, sociais e ideais.
Nietzsche, o profeta da crise do homem e civilização e barbárie
Sem dúvida a filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi precursora da crise secular do Ocidente e do homem moderno, aquela que mais influenciou a reflexão psicanalítica que em seguida levou Sigmund Freud (1856-1939) à descoberta e a sistematização do inconsciente.
O ponto de partida da reflexão filosófica de Nietzsche é a superação dos valores doentios da religião judaico-cristã que transformou o Europeu em um doente neurótico dominado pelo Ego (princípio racional da realidade) e pela moralidade (autoconsciência).
O que caracteriza a “Psicologia do profundo” de Nietzsche é a sua derivação do baixo, das pulsões e daquela fonte inesgotável de energia (chamada por Freud de energia libidinal) que nasce no fundo da alma e que plasma qualquer realidade psicofísica e a construção da identidade autêntica do homem.
A energia pulsional
Quando a energia pulsional não encontra satisfação e não realiza a plenitude e a unicidade do homem, mas é sublimada por pseudo valores “nobres do cristianesimo” (de fato corruptos e artefatos); pela razão secular (de fato manipulada e simples especulação); pela moral hegemônica (da igreja e da cultura de massa) é o triunfo da “renúncia à viver a vida”.
O desejo da morte de Sócrates é o sintoma do apogeu da decadência da filosofia grega, que levou a morte do homem racional cartesiano (cogito ego sum), mas ao mesmo tempo é a derrota do homem cristão que renuncia a “tragédia da vida” e aguarda em vão uma segunda chance celestial de viver.
Se o alicerce da consciência (chamada por Freud de Ego/Superego) que governa o corpo, é corrupta pelos valores dominantes que desprezam a sexualidade e a agressividade, a criação e destruição (forças antagônica do inconsciente freudiano) acontece a mortificação da vida do sujeito transformado em um novo bárbaro, um produto mecânico, repetitivo e não em uma irrepetível obra de arte.
Civilização e barbárie: Quem é o inimigo da vida?
O inimigo da vida é o próprio homem, vítima do pensamento comum e da pseudo civilização; é a realidade manipulada pelas imposições que vêm de fora; é a visão maniqueísta que separa o bem do mal; é a ética do bom pastor e a moral da ovelha (em detrimento do instinto de sobrevivência e da afirmação do princípio de vida).
Um leão vegetariano, por exemplo, seria um péssimo leão se fosse convencido pela moral da ovelha ou pela razão e amor universal a renunciar a seu instinto carnívoro, a sua natureza e essência.
Um leão vegetariano não seria mais o senhor de si, nem o rei da floresta, mas seria dominado pela compaixão e pela piedade (para Nietzsche a moral dos fracos). Isto é, se o leão renunciasse a comer uma ovelha, seria escravo do ressentimento e seu complexo de inferioridade dominaria sua vontade de poder.
A Genealogia da Moral, civilização e barbárie
Enquanto Nietzsche na Genealogia da Moral (1887) explicou claramente que o cristianesimo é o principal inimigo da vida, porque aprisionou o homem a caridade, fé e esperança em uma vida futura; Freud em Tòtem e Tabu (1913) explicou que o pensamento anímico da religião primitiva, tem natureza obsessiva, sendo responsável pela formação do superego que gera o sentimento de culpa que aprisiona o indivíduo.
Assim forma-se os modernos sujeitos neuróticos em perene conflito psíquico consigo mesmo, divididos de um lado entre as pulsões e instintos dionisíacos e, de outro, pela opressora moralidade.
A solução proposta por Nietzsche é a destruição e subversão da moral, a afirmação da estética sobre a ética (como força original criadora da arte, da beleza e da música); da sexualidade e da força sobre a piedade; do instinto de Dionísio sobre o moderação de Apolo. É a afirmação de um novo homem (chamado super homem ou além do homem) que enxerga a vida além da morte e tem a coragem de viver “além do bem e do mal” (1886).
A psiquê e o inconsciente
Se a preocupação de Nietzsche é a superação dos valores tradicionais (transvalorização), a aceitação do pecado, o desprezo da religião; a preocupação de Freud é desvendar o labirinto que leva o homem “além do princípio de prazer” (2010).
Neste ensaio Freud mostra como o sujeito psicótico, mas sobretudo neurótico é dominado pelo princípio do prazer, que quando não encontra satisfação imediata transforma-se em inconsciente reprimido e logo depois em sintoma patológico.
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De fato, em civilização e barbárie, o novo sujeito contemporâneo não é mais um indivíduo indivisível, mas é cindido, ou seja, dividido, pois a totalidade da sua psique é inconsciente, formada pela pulsão de vida (Eros) e pela pulsão de morte (Thanatos).
Torna-se quem você é
Repetidamente Nietzsche está impulsando o resgate das instâncias inconscientes e a libertação do homem, legitimando o poder das pulsões originais (Eros e Thanatos) para torná-lo quem verdadeiramente é, evitando qualquer forma de sublimação artefacta que subjuga-lo através da moral ou do costume (que representam a abnegação do valor Vida).
Em tempo posterior Carl Jung (1875-1961) inspirado por Nietzsche sistematiza o princípio de individuação como ápice do desenvolvimento e plenitude da psique, onde a totalidade das pulsões e instâncias psíquicas formam os arquétipos primordiais do homem (persona, sombra, self, anima e animus) ampliando a consciência num processo expansivo de diferenciação do meio e do próximo e de transformação que visa a auto realização da sua individualidade (unicidade).
Segundo Jung, colocar uma pessoa diante da própria sombra equivale a ressaltar a própria luz. Pois somente quem percebe luz e sombra encontra o próprio centro. Portanto, evitar a agressividade não torna o homem bom, mas torna-lo mais deprimido e frustrado. Bem como, evitar a própria sombra, não o faz encontrar a própria luz.
Em definitiva, a contraposição dos opostos teorizada em Nietzsche é sintetizada em Jung na Psicologia analítica para introjeição do inconsciente no consciente e para a união do irracional no racional.
Dionísio versus Apolo em civilização e barbárie
É Interessante notar como em “na origem da tragédia” (1872) Nietzsche faz uma perfeita síntese de duas tendências aparentemente opostas e contraditórias (mas necessárias) da arte e da espiritualidade do homem.
De um lado, existe a arte da perfeição formal, da justa medida, da moderação, o sonho, a luz do sol, a poesia, a harmonia representada pelo Deus Apolo e, por outro lado, existe a negação do limite, a exaltação do desejo, as pulsões e o instinto criativo, a loucura do exagero, da subversão das regras sociais/morais de quem participa da vida sem mediações (freios, ou seja, Superego) representado pelo Deus Dionísio.
É como se Nietzsche em falar da tragédia grega estivesse pensando na tragédia do homem freudiano, adivinhando o conflito intrapsíquico entre um ego, “não senhor em própria morada” desmembrado entre inconsciente e superego.
Consciência moral, civilização e barbárie
É como se Nietzsche estivesse dando ao homem uma nova chance (para evitar “o eterno retorno” acrescentamos do recalque) colocando o homem em uma encruzilhada que o empurre na direção da superação do sintoma doentio da existência; uma terceira via (transcendente e metapsíquica), além do tempo e do espaço, além de uma vida ordinária e falseada pela consciência moral que o impede de ser o que é, e o obliga a repetir (eterno retorno) a farsa da existência doentia no vórtice desta enfermidade coletiva.
Um homem que apesar de tudo e de todos vai além do próprio homem, que através da força vital da vontade de poder (eu quero, Inconsciente) busca uma extrema síntese (isto é, a superação) entre “eu sou” (Ego) e “eu não posso” (Superego).
A morte de Deus (SUPEREGO)
A hipótese de Nietzsche é que se Deus está morto, não existe mais um legislador moral, cai o fundamento de todas as religiões que tinham o objetivo de consolá-lo e iludi-lo.
Para Ludwig Feuerbach (1804-1872) a religião é um fenômeno absolutamente humano posto que o homem coloca em Deus as aspirações e desejos que não consegue realizar nele, pois “não é Deus que cria o homem e sua condição, mas o homem que cria Deus”.
Em outras palavras, a religião é o cárcere da consciência do homem que consegue cativá-los e transformá-lo em um animal domesticado (civilizado), em um bicho de estimação que participa da vida como espectador e não como protagonista.
A liberdade das imposições morais
Se os homens mataram Deus, não existe mais aparo, o homem pode subverter os valores tradicionais, liberta-se das imposições morais, podendo actuar e valorar a vida de uma forma incondicional.
Em outras palavras, a religião representa o verdadeiro niilismo passivo que condena os homens (através da separação do bem e do mal), reprimindo as pulsões originais que produzem a culpa e a doença. Segundo Nietzsche os sacerdotes precisam da doença para poder “vender” a cura (redenção) e ter o controle sobre a consciência do homem. E os fiéis através da confissão e a absolvição do pecado obtém o equilíbrio da tensão psíquica (descarga emocional).
Segundo a visão de Nietzsche a missa, as orações, preces, procissões são os sintomas de uma neurose obsessiva compulsiva (aprisionamento de rituais e repetições) do retorno do recalcado da morte de Deus causada pelo homem, que não aparece na consciência, mas é vivenciada como sintoma (TOC).
A finalidade da psicanálise freudiana
A finalidade da psicanálise freudiana é justamente deixar aflorar o sintoma e ressignificá-lo para a consciência para que desapareça o trauma enterrado no inconsciente. Da mesma forma, o postulado ateo da responsabilidade de N. Hartmann (1882-1950) afirma que a presença de Deus anula o homem como ser moral dotado de livre arbítrio.
Em outras palavras, a liberdade somente é alcançada transcendendo qualquer imposição ou condicionamento. Portanto, o homem desamparado por Deus, não tem mais um escudo ou justificação da sua existência infeliz mas, pelo contrário pode atingir a liberdade de transformar-se em um ser integral e total, além de qualquer condicionamento.
A compaixão não domina mais a força
Isto é, se a terra (imanente) não é mais subjugada pelo Sol (supra sensível); se a compaixão não domina mais a força; se a sexualidade não é mais subjugada pela moral (“Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração”); se o desejo não é mais suprimido pela consciência; se as paixões, os instintos e os excessos não são mais subjugados pela moderação, o homem adquire a liberdade e a plenitude de si.
A vontade de poder, alimentada por um processo expansivo de energia criativa Inconsciente, permite ao homem de superar-se, de ir além, de dominar seus desejos efêmeros e de “bailar acima de si”, de pensar acima do pensamento, de falar acima da linguagem, de sentir-se livre acima da liberdade e de amar acima da dor (amor fati).
Se não fosse a civilização promovida pelo EGO haveria a barbárie provocada pelo ID?
A resposta de Nietzsche a Freud é NÃO. Pelo contrário, a nova barbárie é a moral dos perdedores e dos escravos, dos animais desnaturados, jogado na existência, daqueles que não têm coragem de viver e lutar, de expressar, ouvir e interpretar as pulsões vitais, renunciando a “dizer SIM a vida”.
Um lobo que não come as ovelhas é um mau lobo, assim como uma rosa que renuncia a suas espinhas é uma péssima rosa. O poeta e místico Angelus Silesius (1624- 1677), disse: “uma rosa é uma rosa sem um porquê. Ela floresce porque floresce. Não se importa consigo mesma. E não pede que você olhe para ela.”
Isto é, uma rosa vive sem intenções, sem uma vida estabelecida a priori e sem depender das expectativas dos outros, pois ela possui uma sabedoria inata porque apoia suas raízes no profundo (sombra, inconsciente) da própria raízes e essência.
Nietzsche e a inversão dialética
En definitiva, para Nietzsche é necessária uma inversão dialética: o homem moderno racional representa o novo bárbaro, escravo enquanto civilizado pelo Ego e pela moral; diversamente o homem que aceita o mundo no devir imanente, que ouça os impulsos inconsciente reprimido e consiga a satisfação dos instintos sem medicação externa (Deus, costume, religião, moral) é o Super homem.
Da mesma forma, a vontade de poder do super homem é a possibilidade de realizar o gozo dos desejos instintivos, liberando as pulsões (sexualidade e agressividade, eu quero) contra a falsa moral (Superego, Eu não devo) e os limites imposto pela consciência (ego, Eu posso).
De fato, se o homem é um complexo de forças e energias antagônicas, o conceito de “indivíduo é falso”, pois não existe unidade indissolúvel e Ser indivisível, mas um ser cindido e dividido em diversas instâncias psíquicas (Freud).
Considerações finais
Contudo, para existir um Ser além do homem è necessário que exista um homem; para existir um além da moral é necessária uma moral; para existir o pecado precisa existir uma lei, ou seja, são as contradições necessárias que alimentam, em sentido dialético a criação e a destruição, a vida e a morte, o bem e o mal da vida na Terra.
Em conclusão, se o inconsciente é “o verdadeiro psiquismo, o psiquismo real” (Freud), que governa pensamentos, sentimentos, princípios morais e experiências vivenciadas e o funcionamento da mente; se os instintos (agressivos e libidinais) dominam a totalidade da vida psíquica do homem, talvez seja necessário chegar a um compromisso dialético entre o espírito Dionisiaco e a Cruz (Nietzsche).
Talvez, seja necessário repensar em novas categorias, ressignificando a definição “civilização do ego e a barbárie do ID”, que possa resgatar a verdadeira essência inconsciente do homem (eg. o inconsciente de uma semente transforma-se em rosa sem um porquê), libertando o neurótico (e a humanidade inteira), eternamente reprimida no conflito psíquico que causa traumas, fixações, recalque (e que destes brotam os sintomas e as enfermidades) que limitam a plena, total e autêntica realização de si.
O presente artigo foi escrito por Marco Bonatti, residente em Fortaleza/CE (e-mail: [email protected] facebook: [email protected]), possui doutorado PhD em Psicologia Social – UK – Buenos Aires, Argentina; Graduação em Filosofia FCF/UECE – Fortaleza, Brasil; Pós graduação em relações internacionais, Valencia, Espanha; Graduação em língua francesa na Sorbonne, Paris, França; Atualmente é Psicanalista em formação e colunista no IBPC/SP (Instituto Brasileiro Psicanálise Clínica).
3 thoughts on “Civilização e barbárie: qual o lugar do inconsciente?”
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Parabéns pelo artigo! O filme ” De médico e louco todo mundo tem um pouco “, descreve um pouco acerca de NIETZSCHE .
Se levarmos ao pé da letra o que diz Nietzsche, isso nos levará ao comportamento dos nossos ancestrais que habitavam cavernas. Nao podemos levar em consideração as religiões também como arcabouço de nossa fundamentação filosófica, elas são produto do gênio humano, profundamente imerso na escuridão. Devemos atentar para o que disse o Cristo e não para o que dizem as religiões que são criação da nossa mente deturpada e doentia. Jung acreditava em Deus e Nietzsche deu sinais claros que cria também. Devemos tomar muito cuidado com as interpretações literais. No mais, parabens pelo artigo.