delírio de ciúme

Delírio de ciúme e Paranoia: entendendo o quadro clínico

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Neste texto, vamos entender o significado de delírio de ciúme.

Qual a relação entre este delírio e a paranoia? Partiremos de noções presentes em distintas correntes da psicanálise.

O quadro clínico paranóico peculiar do delírio de ciúme: uma abordagem intertextual

Dentro da área do conhecimento chamada de teoria psicanalítica se faz distinção entre três grandes formas de organização psíquica da personalidade, as quais resultam de três maneiras de resolver ou reagir perante o Complexo de Édipo, a saber: a neurótica, a psicótica e a perversa. Atualmente, existem estudos e debates voltados para a inclusão de uma quarta forma de organização psíquica da personalidade, inerente ao espectro autista. Contudo, nesse artigo, irei considerar as três estruturas acima.

Resumidamente, pode-se afirmar que a resolução psíquica do Édipo por parte do neurótico é o recalque, a do perverso é a denegação, e a do psicótico é a foraclusão. De modo igualmente sucinto, é possível destacar que o recalque é advindo da expulsão de um afeto aflitivo da esfera consciente, o qual é armazenado no inconsciente, sem deixar de existir, o que gera perturbações psíquicas e psicosomáticas. O referido afeto perturbador pode ser oriundo de uma experiência traumática real, ou de uma fantasia.

No neurótico o complexo de Édipo se conclui com o reconhecimento da autoridade paterna, ou, dito de outra maneira, a criança, aproximadamente em seus sete anos de idade, resolve simbolicamente o papel de cada um dentro da tríade parental e filial, formada pelo eu, o objeto do investimento libidinal (a mãe), e o terceiro, associado em termos simbólicos à autoridade (o pai). Isso ocorre no caso dos meninos, enquanto as meninas experimentam o complexo de Electra (inverso do Édipo, de acordo com Carl Gustav Jung).

Delírio de ciúme e o Édipo

Vale frisar também que, para as meninas, o Édipo não é o primeiro grande complexo a ser enfrentado na infância, sendo que elas passam, anteriormente, pelo complexo da castração. Achei por bem enfatizar esse aspecto porque, justamente, o medo da castração é o que motiva a criança de sexo masculino a retirar o investimento libidinal da mãe. O menino, portanto, resolve se submeter à autoridade paterna, por medo, sempre em termos simbólicos, de ser castrado, e assim, recalca o afeto /desejo que sente pela mãe. 

Quanto ao perverso, ele denega o Édipo e, ao permanecer dentro da esfera simbólica, ele vai projetar o investimento libidinal para algum objeto outro, se tratando de um objeto de fato, como é o caso dos fetichistas, ou de uma prática sexual, se bem que isso pode ter suas origens em fases anteriores do desenvolvimento psicossexual, como é o caso da fase anal com relação ao sado-masoquismo, inerentemente à retenção fecal, o que aponta para o prazer anal advindo do preenchimento retal (no caso, pelas fezes), e também, para a dominação e manipulação oriunda da sensação de poder que, por sua vez, resulta da referida retenção, a qual, em miúdos, não deixa de ser um ato de rebeldia, de desaforo, com relação aos pais que, comumente, tendem a orientar a criança sobre a importância de se fazer as necessidades.

Segurar a urina ou, principalmente, as fezes, resulta pois em uma sensação de poder, a qual está atrelada à ambivalência de molde sadomasoquista, onde, lembremos, segundo Freud (1905), o sádico inconscientemente é masoquista, enquanto o masoquista, em nível inconsciente é sádico. Ou seja, sadismo e masoquismo sempre coexistem, ainda que um esteja manifesto e o outro latente, um consciente e o outro inconsciente. E enfim, no caso do psicótico, o complexo edípico termina com a que Lacan (1998) chama de foraclusão.

O investimento libidinal

O termo aponta para algo que é transposto para fora de um contexto prévio. O âmbito prévio é aquele simbólico, e o “fora” se refere ao investimento libidinal, o qual é endereçado para a esfera do real. Disso resulta a notória dificuldade do psicótico em definir e delimitar realidade e fantasia, na medida em que, justamente, o simbólico é transposto para fora do real e, logo, torna-se realidade. A realidade “de fato”, por sua vez, é recusada ou negada, e o psicótico tende a criar, em substituição, uma realidade outra, na qual passa a acreditar firmemente. É como um castelo de areia, ou de cartas, cuja fragilidade justifica a ferrenha defesa dessa “realidade ficcional” por parte do sujeito acometido por transtornos de tipo psicótico.

Se isso é mais evidente para os esquizofrênicos, observa-se que ocorre também para os paranóicos. O grau de debilidade e fragmentação do ego é um aspecto característico da personalidade psicótica. Verifica-se que o discurso do psicótico falha em termos de coesão, além de apresentar um grau de certeza e convicção (apesar da referida fragmentação) que não se encontra no discurso do neurótico, carregado de culpa, insegurança e dúvidas. Nesse sentido, é interessante situar também o perverso, cuja característica principal é a completa falta de pudor, vergonha e culpa, com relação ao seu tipo e grau de desvio sexual. Vale frisar, também, que a grande distinção entre o neurótico e o psicótico pode ser compreendida a partir das defesas do ego, sendo que aquelas psicóticas (negação, identificação projetiva etc.) são extremamente mais arcaicas, quer dizer, apontam para um estágio prehistórico da vida do indivíduo.

E, consequentemente, o nível de regressão é profundamente superior. Trocando em miúdos, vê-se com Freud (1923) que o sujeito nasce completamente ID (totalmente inconsciente), isso é, substancialmente indiferenciado da mãe, com a qual compõe um continuum psíquico integral, apesar da separação corporal sucessiva ao parto e ao corte do cordão umbilical. Notadamente, o ID é inerente às pulsões sexuais (não necessariamente genitais) e agressivas, por ser completamente inconsciente.

Delírio de ciúme e o inconsciente

Enquanto inconsciente é regido pelo princípio do prazer, é atemporal, não-causal, não-lógico-racional, e nele há fragmentação, condensação e deslocamento. Ainda, a representação no ID, por ser integralmente inconsciente, é a da coisa, diferente das esferas pré-consciente e consciente do aparelho psíquico, assim como fora discutido por Freud no livro do século (1900), que são regidas pelo princípio da realidade e, nelas, a representação dominante é a da palavra. Em uma fase sucessiva (aproximadamente seis meses/um ano), do ID surge o Ego, e nesse quesito é importante enfatizar a teoria lacaniana do espelho, onde a origem da individuação infantil e, portanto, a origem da identidade pessoal, é resultado do encontro/confronto com o outro, representado pela mãe.

Numa fase ainda mais madura – dentro do contexto das fases de desenvolvimento psicossexual – observa-se no Ego a emergência do Superego, que é oriundo da introjeção das regras, normas, questões morais, enfim, do que se pode e não se pode fazer. Sobre esse aspecto vale realçar que, se Freud considera a introjeção superegóica como algo inerente à fase fálica e, mais precisamente, ao complexo edípico, Melanie Klein sustenta que o Superego é introjetado anteriormente. A posição kleiniana faz sentido, já que é comum presenciar a situações lúdicas nas quais criancinhas de 2 ou 3 anos, assumindo o papel do adulto, levantam o dedo indicador e afirmam solenemente: “Isso pode” ou “Isso não pode fazer”.

Por sinal, no livro A loucura suprimida do homem são (1987), de Marion Milner, que foi supervisionada por Klein, há um capítulo dedicado à análise de uma menina de 3 anos e ela, como acabei de relatar, passa a interpretar o papel do adulto, apontando para o que se pode e o que não se pode fazer. Pelo que aqui mais importa, na primeira fase da vida de cada indivíduo, pelo menos em termos pós-parto, o recém-nascido vive em simbiose com a mãe, não só fisicamente, como também do ponto de vista psíquico. Isso serve para sublinhar o ímpeto e, às vezes, a violência das defesas psicóticas, na medida em que, o psicótico apresenta mecanismos de defesa do ego que são os mesmos adotados pelo recém-nascido ou bebê.

O ID e o aparelho psíquico

Sendo ID puro, isto é, totalmente inconsciente, o aparelho psíquico está focado apenas na satisfação de pulsões primitivas, sem a presença do Superego para refreá-las ou postergá-las, e sem um Ego funcional, coeso e sadío, para fazer a mediação entre ID e Superego, e entre vida intrapsíquica e realidade externa. O recém-nascido quer algo e ponto final. Se o desejo não for satisfeito ele manifesta sua contrariedade com veemência e um desespero completamente descontrolado. E assim o psicótico em seu surto, ocasionado pelas defesas de um Ego que, como foi discutido, é bastante precário.

Disso decorre que uma palavra ou até mesmo um olhar podem desencadear um surto psicótico. Ao transpor essa atitude para um ser adulto (ou adolescente), compreende-se o teor fortemente regressivo das defesas psicóticas do Ego, e isso vale não só para a falta de satisfação imediata ou postergação de determinado desejo pulsional, como também, para a contrariedade, manifestada por alguém, a respeito da “veracidade” da “realidade ficcional” criada pelo indivíduo psicótico em substituição do real. É notório que não se deve contrariar um sujeito psicótico quanto à sua fabulação. É preciso demonstrar acreditar na mesma.

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    O psicótico não duvida, e tudo para ele é levado ao pé da letra. Dessa forma, e devido à foraclusão, o psicótico é incapaz de simbolizar e, logo, não consegue compreender metáforas. Pensando em um ditado italiano: “a manhã tem o ouro em sua boca” (tradução livre e literal), que é como dizer que acordar cedo, de manhazinha, potencialmente vai ajudar a pessoa a ganhar mais dinheiro. Esse “é como dizer” não é compreendido pelo psicótico, principalmente pelo esquizofrênico, mas, dependendo, tampouco é compreendido pelo paranóico.

    Delírio de ciúme e o Dicionário de Psicanálise

    O Dicionário de Psicanálise aponta para a raíz etimológica da paranóia: “Termo derivado do grego (para = contra, noos = espírito), que designa a loucura no sentido da exaltação e do delírio” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 572). Atualmente, o termo loucura tende a ser evitado, assim como o referimento à perturbação psíquica enquanto doença. O próprio DSM – Manual diagnóstico e estatístico de saúde mental, editado pela Associação Americana de Psiquiatria e referência mundial no campo Psi (Psicanálise, Psicologia e Psiquiatria), juntamente com o CID, que é o manual editado e utilizado pela OMS – Organização Mundial de Saúde, aponta para a expressão “transtornos psicopatológicos” ao invés de “loucura” ou “doenças mentais”.

    Os autores destacam a introdução do termo dentro da tradição alemã e francesa, e resumem as perspectivas freudiana, kleiniana e lacaniana: a paranóia tornou-se, ao lado da esquizofrenia e da psicose maníacodepressiva, um dos três componentes modernos da psicose em geral. Caracteriza-se por um delírio sistematizado, pela predominância da interpretação e pela inexistência de deterioração intelectual. Nela se incluem o delírio de perseguição, a erotomania, o delírio de grandeza e o delírio de ciúme. Foi nesse sentido que Sigmund Freud retomou o termo, em 1911, designando a paranóia como uma defesa contra a homossexualidade.

    Depois dele, Melanie Klein e Jacques Lacan desenvolveram para a psicanálise uma concepção estrutural da paranóia, uma aproximando-a da esquizofrenia (posição esquizo-paranóide), no contexto de uma definição da relação de objeto, o outro fazendo dela a própria essência do processo psicótico (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 572). Roland Chemama, no Dicionário de Psicanálise de sua autoria e organização, realça a associação da paranóia com a foraclusão, a partir da teoria lacaniana denominada de “Nomes-do-Pai”.

    Delírio de ciúme e Paranoia

    Chemama destaca, sobre paranóia, Organização psicótica da personalidade ligada à ausência, no sujeito, da função paterna simbólica. Esta “fordusão do Nome-do-Pai” retira todo o sentido daquilo que depende da significação fálica, cujo encontro mergulha o sujeito na confusão, devolvendo-lhe no real, sob a forma de alucinações, o que lhe está faltando no nível simbólico. O delírio irá suprir a metáfora paterna fracassada, ao construir uma “metáfora delirante”, destinada a dar sentido e coesão ao que não o tem (CHEMAMA, 1995, p. 159). Falar em paranóia, de acordo com os trechos citados, remete inexoravelmente para o delírio.

    A esse respeito, vê-se com Laplanche e Pontalis que por paranóia se endende uma Psicose crônica caracterizada por um delírio mais ou menos bem sistematizado, pelo predomínio da interpretação e pela ausência de enfraquecimento intelectual, e que geralmente não evolui para a deterioração. Freud inclui na paranóia não só o delírio de perseguição, como a erotomania, o delírio de ciúme e o delirio de grandeza (LAPLANCHE e PONTALIS, 2000, p. 334). Mas, o que seria um delírio? Trata-se de um termo amplamente utilizado no lugar comum, assim como na literatura romanesca, onde é comum ler sobre, entre outros, “delírios de amor” e, nesse sentido, é possível verificar que inúmeros motéis, dentro e ao redor das cidades brasileiras (e não só), apresentam algum nome ligado aos referidos delírios eróticos, ou sentimentais.

    Segundo o artigo online1 Amor, paixão e loucura: ciúme obsessivo e delirante (Síndrome de Otelo), de autoria da médica psiquiatra e neurologista Elisabete Castelon Konkiewitz, “delírio é uma crença fantasiosa, porém inabalável, ou seja, uma convicção que resiste a todas as evidências externas do contrário” (KONKIEWITZ, 2020). O CID 10 (Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento), assim descreve o transtorno delirante: Esse grupo de transtornos é caracterizado pelo desenvolvimento de um delírio isolado ou de um conjunto de delírios relacionados entre si, que são usualmente persistentes e muitas vezes duram toda a vida. Os delírios são altamente variáveis no conteúdo. Frequentemente, eles são persecutórios, hipocondríacos ou grandiosos, mas podem estar relacionados com litígios, ciúmes (…)

    Transtorno delirante

    Outra psicopatologia está caracteristicamente ausente, mas podem estar presentes, de forma intermitente, sintomas depressivos e podem se desenvolver alucinações olfativas e táteis, em alguns casos. Alucinações auditivas (vozes) claras e persistentes, sintomas esquizofrênicos, tais como delírios de controle e embotamento afetivo marcante, e evidência de doença cerebral definitiva são todos incompatíveis com esse diagnóstico (CID 10, 1993, p. 96). O trecho do CID 10, referente ao verbete Transtorno delirante, enfatiza bastante a distinção entre esse transtorno e a organização psicótica denominada esquizofrenia.

    Nesse artigo irei focar principalmente nos delírios de ciúme, típicos do quadro paranóico. De que se trata? Resumidamente, pode-se sugerir que o delírio de ciúme é uma construção fantasística de tipo obsessivo, que pode alcançar o nível da monomania, ou ideia fixa. De acordo com o artigo Monomania, definição e exemplos, a mesma pode ser assim descrita: Monomania se trata de uma paranoia em que o indivíduo acaba se fixando em uma única ideia em sua vida. Com isso, a sua vida se direciona para um canal ideológico e se molda ao redor disso. Assim, se torna refém de um único pensamento e acredita que isso define a sua vida e o seu mundo” (REDAÇÃO PSICANÁLISE CLÍNICA, 2020).

    Quanto ao ciúme delirante, portanto, ocorre uma ideação mórbida através da qual o indivíduo cria em sua mente a certeza de estar sendo traído, e alimenta sua imaginação com convicções acerca do suposto adultério da parceira ou, no caso da mulher, do parceiro. Disso resulta um alto grau de aflição e prejuízo na vida relacional, o qual pode atingir, inclusive, a esfera profissional da existência humana, tornando a pessoa disfuncional. E também, a referida obsessão paranóica motivada por ciúmes pode criar problemas e constrangimento tão significativos e severos para a outra pessoa (seja cônjuge, namorada/o, ou noiva/o) que essa pode chegar a perder o emprego, ou clientes, ou parcerias profissionais devido ao ciúme doentío do/a companheiro/a.

    O vazio existencial e o delírio de ciúme

    A essa altura, vale perguntar: existe algum tipo ou grau de ciúme que não seja caracterizado pela morbidez? A resposta é: não. Popularmente, é lugar comum que certo grau de ciúme é até necessário, ou ainda, que esse ciúme moderado seria a comprovação de um verdadeiro envolvimento afetivo. Porém, essa ilusão é negada pelo fato que o amor verdadeiro nunca é posse, e que a pessoa amada não é um objeto sexual do qual dispomos. O problema, de antemão, é inerente ao vazio existencial, e ao fato das pessoas tenderem a preencher esse vazio, quando não com interações imediatistas e superficiais, de fato descompromissadas, com “relacionamentos sérios”, nos quais ambas as partes se comprometem a honrar um pacto tácito ou explícito de fidelidade.

    Logo, a pessoa parceira acaba por, simbolicamente, preencher o vazio existencial e, consequentemente, sua traição pode suscitar reações violentas. Explico melhor. Com a Bíblia Sagrada, “e os dois se tornarão uma só carne. Assim eles já não são dois, mas uma só carne” (MARCOS 10, 8). Essa fusão numa só unidade é algo que remete implicitamente à relação do bebê recém-nascido com a mamãe, quando, de fato, eles são uma coisa só, devido ao fato de nascermos completamente inconscientes, totalmente “ID”. E é comum que parceiros amorosos chamem um ao outro de “bebê”, assim como é comum que ocorra algum tipo de regressão, dentro das interações sentimentais.

    A frustração da referida unidade provoca a violência da qual, cotidiamente, lemos ou assistimos através dos veículos da imprensa. Uma vez afirmado que o ciúme é sempre doentío, por remeter à necessidade de posse e controle sobre o outro, através de quem preencho o meu vazio existencial, tornando-me um só ser com essa pessoa, é interessante abordar essa temática por meio de um viés intertextual, através de música, cinema e literatura.

    Um pouco da literatura romanesca

    No que diz respeito à música, trago para a análise e discussão a canção “Tango della gelosia”2 (Tango do ciúme, em nossa tradução livre e literal), do artista italiano Vasco Rossi; quanto ao cinema, abordarei os filmes “Os bons companheiros” (1990) e “Touro indomável” (1980), ambos de Martin Scorsese; e “Paterson” (2016), de Jim Jarmusch; e para concluir, no âmbito da literatura romanesca, mencionarei a famosa obra shakespeareana “Otelo” e um conto breve “Para sempre fiel”, de Nelson Rodrigues. Segue uma parte da letra da música do cantor Vasco Rossi: Non é la gelosia, quello che sento, quello che sento dentro (Não é ciúme, aquilo que sinto, aquilo que sinto dentro de mim).

    É più una malattia, che non ci riesco, che non capisco proprio (É mais uma doença, que não entendo, que não consigo mesmo entender). Ma dimmi una bugia, che cosa conta, se tu sei solo mia, che cosa importa, il resto è una follia, come un fantasma, il resto è colpa mia, colpa mia e basta…ma non andare via (Mas me fala uma mentira, o que é que tem, se tu és só minha, o que é que importa, o resto é uma loucura, como um fantasma, o resto é culpa minha, culpa minha e basta..mas não vá embora). Stammi vicino, stammi molto vicino, e non andare via, neanche com lo sguardo, quando mi siedi accanto…(Fica perto de mim, e não vá embora, nem mesmo com o olhar, quando sentas ao meu lado…).

    Perchè la gelosia, è solo questo, perchè la gelosia, non è nient’ altro, niente che colpa mia, perchè senz’altro, senz’altro che sei mia, e di chi altro…(Porque o ciúme, é só isso, porque o ciúme, não é nada mais do que isso, nada mais do que culpa minha, porque é claro, é claro que tu és minha, e de quem mais…). A sonoridade da música do artista italiano é um tango, intenso, sentimental, e a interpretação do cantor realça, na medida certa, o desespero de quem reconhece a sua própria culpa e a aflição que isso traz para consigo mesmo.

    Delírio de ciúme na Música e o senso de desespero

    A música devolve um senso de desespero, aquele de quem não aguenta mais, pois é ciente do fato da mulher ser dele, mas ainda assim, não consegue conter seu ciúme, deplorável e mórbido. Se na arte o particular precisa ecoar no universal, percebe-se que a música Tango della gelosia potencialmente aciona algum mecanismo associativo em qualquer pessoa, o qual remete para alguma crse de ciúme do ouvinte, ou a alguma situação presenciada.

    Quando Vasco Rossi canta, para a mulher: “não vá embora, nem mesmo com o olhar, quando estás sentada ao meu lado”, trata-se de uma cena da vida real que, com muita probabilidade, qualquer pessoa já presenciou, quando já não foi protagonista ou vítima da mesma. No cinema, há inúmeras representações de delírios de ciúme. Neste contexto, irei mencionar alguns deles. Em Os bons companheiros (Martin Scorsese, 1990), Karen Hill (Lorraine Bracco), esposa do gângster Henry Hill (Ray Liotta), se desloca para um prédio, levando consigo as filhas pequenas do casal. Descontrolada, Karen toca o intefone de Janet Rossi, amante de Henry e viciada em cocaína.

    Como a adúltera não atende, Karen começa a tocar os interfones de forma randômica, informando os demais moradores que, naquele prédio, reside uma prostituta (a amante do marido). A sequência continua com o afiliado Henry Hill sendo acordado pela esposa, a qual, em pé por cima da cama, aponta-lhe uma arma de fogo, pronta para atirar, enquanto lhe pergunta se ele ama a outra. Henry responde que só ama ela (Karen).

    Sobre o pensamento de Karen

    Segue o fluxo de pensamento de Karen, a qual admite para si mesma estar apaixonada e atraída pelo marido, apesar de tudo. A dilatação temporal, acompanhada por detalhes da arma fotografada sob vários ângulos, aumenta a tensão e suspense da cena, que é fortemente dramática. E a interpretação de Karen é igualmente magistral, encenando até mesmo leves reações nervosas que enfatizam a emocionalidade, por meio da expressão facial. Scorsese consegue um equilíbrio perfeito entre sutileza e intensidade, elegância e ímpeto, o que vai muito além das representações corriqueiras (e medíocres) da emotividade entre casais, comumente carregadas e cafona.

    Henry consegue acalmar Karen, repetindo que ela tenha cuidado e, assim que ela se deixar levar pela emoção e as lágrimas, o marido lhe retira a arma e a derruba da cama, apontando-lhe por sua vez o revolver e perguntando como se sente. Uma das representações fílmicas mais memoráveis do delírio de ciúme ocorre em outro longametragem estupendamente dirigido por Martin Scorsese, Touro Indomável (1980). Trata-se de um filme baseado na autobiografia homônima (em inglês, Raging Bull, que também é o título original do longametragem), sobre a vida do campeão de boxe Jake La Motta.

    Enciumado, La Motta começa uma conversa com a esposa, Vickie (Cathy Moriarty), enquanto ela está ajeitando a cama do casal. A conversa sobe de tom, Jake puxa os cabelos da mulher, começa a insinuar e acusá-la e, enfim, a esbofeteia. Ela se retira e se tranca no banheiro. Jake a persegue, quebra a porta, agarra a esposa, e a acusa de ter transado com todo mundo, inclusive com o irmão dele.

    Sobre a sétima arte

    Obsessionado, Jake continua a repetir que ela trepou com o irmão, Joey (Joe Pesci), apesar dela negar as acusações. Karen não aguenta mais e, sarcasticamente, afirma ter transado com todo mundo, inclusive com o cunhado, e ainda, enfatiza o fato de ter “chupado o pau dele” (de Joey). Jake a esbofeteia mais e sai pela calçada. Vickie o persegue, bate nele pelas costas, mas ele a derruba por trás de um carro, segue pelo seu caminho e entra na casa de Joey, enquanto o irmão está almoçando com a esposa e os filhos pequenos. Sem falar nada, Jake agarra Joey, o derruba, e enquanto bate nele afirma: “Você trepou com a minha esposa, hein?”. Trata-se de uma das cenas mais eloquentes sobre delírio de ciúme já representadas na Sétima Arte.

    O filme revela a degeneração psíquica do campeão, que por sua vez acompanha o declínio profissional do atleta. O pugilista, aposentado e bem acima do peso, se reduz a trabalhar como comediante, um entertainer vulgar e medíocre, em botecos de quinta categoria. A sequência analisada representa, de maneira fidedigna, o quadro paranóico inerente ao delírio de ciúme, no qual ocorre a construção fantasística de uma realidade paralela e o descontrole que resulta da intensificação do delírio. A ideação de Jake La Motta torna-se obsessiva, isto é, uma monomania, a qual acaba por atrapalhar o casamento, a carreira esportiva e até mesmo a amizade e parceria com o irmão Joey, que é sparring e agente do atleta.

    Vale frisar que o primeiro exemplo fílmico, extrato do longa Os bons companheiros, representa um caso de ciúme exasperado, como é o caso de Karen, que reage a partir do impulso gerado pela emoção, mas, ainda assim, não cria uma fantasia sobre ser traída. Ou seja, a personagem Karen Hill reage de forma descontrolada perante uma situação real, já que, de fato, ela estava sendo traída por Henry, seu esposo. Ciente do adultério ela descarrega sua raiva e indignação primeiro contra a amante de Henry, ao gerar constrangimento por meio do interfone, no prédio onde a adúltera reside.

    Delírio de ciúme e o filme: Touro indomável

    Quanto ao segundo filme, Touro indomável, o mesmo chega a representar de maneira verossímil, o comportamento de um homem acometido por um quadro paranóico, isto é, psicótico e, especificamente, por delírios de ciúme. Jake La Motta, diferente de Karen Hill, não tem provas acerca da suposta traição da esposa, e sim, ele mesmo depara-se com uma construção fantasística que, aos poucos, torna-se uma verdadeira ideia fixa. E é isso que se entende por ciúme delirante. Paterson (2016) é um longametragem de Jim Jarmusch, ambientado na cidade homônima, um centro urbano pacato do Nova Jersey, onde o motorista de ônibus, também chamado de Paterson, se divide entre trabalho, vida conjugal e o hobby da poesia.

    Todos os dias, após o trabalho, ele se dirige para o mesmo pub, onde se entretém na conversação com o barman (e supostamente, dono do estabelecimento), Doc. Há uma mulher que também costuma se juntar à roda de conversa, ela afirma ter acabado com o namorado. Uma noite, ele chega ao local e aponta uma arma para a ex-namorada. Logo, é desarmado de maneira fria e eficaz por Paterson que, apesar da suposta mansidão, é um ex fuzileiro naval. O desfecho revela que a arma era falsa.

    No entanto, só o delírio de ciúme e a negação, quanto ao fim do relacionamento, podem induzir um homem a protagonizar uma cena tão humilhante e constrangedora, para além de perigosa. Se alguma pessoa armada estivesse no pub, com certeza ia atirar no homem que estava segurando uma arma de fogo ameaçando atirar na ex-mulher dele. Se já troue exemplos fílmicos e musicais, não há como desconsiderar a literatura e seus clássicos inerentes à representação romanesca do ciúme delirante.

    Obra de Shakespeare e o delírio de ciúme

    Otelo (William Shakespeare, 1603) é uma obra tão marcante e significativa que, na literatura psiquiátrica, o delírio de ciúme também é chamado de sindrome de Otelo. Sucintamente, o personagem do drama shakespeariano não cria por si só a ideação paranóica referente à suposta traição por parte de Desdêmona, mas sim, é incentivado, ou melhor, seu juízo é envenenado aos poucos por parte de Iago, até que o protagonista do drama resolve matar Desdémona. Todavia, ele vem a descobrir a inocência da amada e, portanto, comete suicídio. No âmbito da literatura brasileira, há quem sugira aproximações entre Dom Casmurro e Otelo, fazendo do clássico de Machado de Assis um exemplo de delírio de ciúmes.

    Entretanto, há um conto breve de Nelson Rodrigues que me parece mais apropriado: trata-se de Para sempre fiel, texto que faz parte da coletânea A vida como ela é (1994). Esse conto retrata o namoro de Odilon e Odaléia. Desde o que se supões ser o primeiro encontro entre o casal, após informar Odaléia sobre o número de suas ex-namoradas, Odilon afirma: “Às vezes eu penso que minha sina, minha vocação é ser traído”. A narrativa continua com Odaléia tentando convencer Odilon da veracidade de seu sentimento e, também, de sua fidelidade. Odaléia chega até a afirmar: “Não há no mundo um amor que se compare ao meu. Você é meu primeiro amor e será o último!”.

    A pequena, como é descrita por Rodrigues em seu característico estilo literário, aparentemente consegue fazer com que o namorado confie nela. Ela volta para casa e se abre para a mãe, informando (o leitor) que Odilon a pediu em casamento. Percebe-se a euforia da jovem mulher. Porém, no segundo encontro, Odilon se apresenta profundamente abatido e volta às suas ideações sobre traição. Ao agarrar-se no namorado, Odaléia exclama: “Você quer que eu faça o que para provar o meu amor? Eu faço o que você quiser!”. Chorando, Odilon deixa a namorada no ônibus, dizendo: “Você deve me chutar enquanto é tempo. Eu não interesso nem a você, nem a mulher nenhuma. Agora mesmo, neste momento, eu estou pensando que você há de me trair um dia. Isso deve ser doença. Eu sou um doente mental”. E Odaléia insiste em querer convencer o namorado de que ela vai ter como provar o seu amor e sua fidelidade: “E se eu provar que te amo? Se eu provar que te serei fiel, até morrer?”.

    A crença e a aprovação em sua fidelidade

    Odaléia tem uma conversa com a mãe, abre-se e conta a história por completo, enquanto chora e insiste: “Já pensou como Odilon deve sofrer? Imagine um homem que não acredita em mulher nenhuma. Deve ser tristíssimo. E eu tenho de arranjar um jeito, um meio de provar que eu serei fiel sempre, que serei fiel até morrer, que eu não trairei nunca! E provarei”. Seguem alguns outros rendezvous, os quais, nas palavras do autor: “Foram encontros penosíssimos; ele a atormentava, sem dó nem piedade: ‘Quando me trairás? Quando?’”.

    E ela sempre pronta a afirmar que ia encontrar uma maneira de demonstrar a sua dignidade de namorada e futura esposa. Segue um momento no qual o delírio de ciúme se torna explícito e muito bem resumido por Rodrigues: “Cessaram os encontros. Quinze dias depois, Odilon, numa amargura tremenda, faz os seus cálculos: ‘No mínimo, arranjou outro e deve andar se esbaldando por aí!’”. Enquanto a paranóia toma conta do noivo, o desfecho, duríssimo, chega a ele por meio de um amigo: Odaléia tinha tomado veneno e estava morrendo em seu quarto.

    Quando Odilon chega na residência da noiva, abre caminho entre os parentes dela até encontrá-la já defunta. Na parede, uma última mensagem deixada pela jovem: “As mortas não traem”. O conto põe em evidência a fabulação psíquica produzida pelo enciumado delirante. No caso do personagem Odilon, no conto de Nelson Rodrigues, trata-se de algo diferente dos casos, agressivos, ou mesmo violentos, observados através dos textos ficcionais anteriores, como é o caso dos filmes de Scorsese. Escolhi intencionalmente situações diferentes e perfis distintos.

    O caso de Odilon e o delírio de ciúme

    No caso de Odilon, trata-se de um delírio calmo e constante, uma negatividade inerente, algo como um loop (laço) autohipnótico negativo, insistindo com o fato que ele será traído, que ele não pode vivenciar um relacionamento bem sucedido, que será inexoravelmente abandonado, após a traição da sua companheira. Não há gritaria, nem insultos, e tanto menos espancamentos. Odilon é contido e aparentemente equilibrado. O único momento em que ele se deixa levar pela emoção é quando chora, ao deixar Odaléia no ônibus.

    Ainda assim, pela descrição trata-se de um choro discreto. A partir das demais referências textuais consideradas, embora se tratem de obras ficcionais, pode-se verificar que o delírio de ciúme se manifesta de diversas maneiras, possivelmente, de acordo com outros traços da personalidade do sujeito. Há quadros mais abruptos e violentos, e outros mais leves e contidos, mas não por isso menos aflitivos, tanto para a pessoa acometida pela ideação fantasística inerente à suposta traição (atual ou porvindoura), como para a outra pessoa, a/o companheira/o do indivíduo paranóico, a qual é direta ou indiretamente, suave ou duramente, acusada de adultério.

    Além disso, é importante sublinhar que, quer se trate dos delírios de ciúme do enfurecido Jake La Motta, quer se considere o quadro paranóico de Odilon, aparentemente mais pacato e caracterizado por uma resignada mansidão, o ponto em comum é a constância, a insistência, a fixidez da ideação delirante, a qual leva a exasperação não somente a pessoa paranóica, e sim, quem quer que seja que tenha a infeliz ideia de se relacionar com essa pessoa, e que é por ela constantemente acusada de traição, efetiva ou potencial, presente, passada ou futura.

    Conclusão

    Para concluírmos, o tratamento do quadro clínico de paranóia e, no caso específico, aquele inerente aos delírios de ciúme, deve ocorrer por meio de estabilização psiquiátrica – isto é, através de medicamentos específicos antipsicóticos, possivelmente associados com ansiolíticos e/ou antidepressivos – e, paralelamente, uma vez que o paciente estiver estável, o acompanhamento psicanalítico pode coadjuvar o tratamento psiquiátrico, principalmente no que diz respeito à superação da monomania, ou ideia fixa, que representa o principal empecilho com relação à funcionalidade do indivíduo acometido por esse transtorno psicopatológico.

    No caso da psicose, notadamente, o psicanalista procede de maneira diferente a respeito da práxis com neuróticos. O jeito deve ser mais suave, jamais contundente, e a finalidade do acompanhamento é auxiliar o paciente a conviver melhor com a sua psicose.

    O presente artigo foi escrito por Riccardo Migliore(). PhD em Letras pela UFPB. Psicanalista Clínico formado pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica, pós-graduando em Psicanálise (Faveni) e concluinte no curso Avançado Tópicos de Clínica Psicanalítica (IBPC). Psicoterapeuta, atende online e presencial.

    2 thoughts on “Delírio de ciúme e Paranoia: entendendo o quadro clínico

    1. Mizael Carvalho disse:

      Parabéns pelo belíssimo artigo!

    2. Mizael Carvalho disse:

      Concordo com o Mizael, parabéns.

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