Hoje falaremos sobre a escrita terapêutica. Clarice Lispector encanta gerações de leitores de todas as idades. A poeta ucraniana mais brasileira que existiu já foi objeto de biografias, estudos e análises das mais diversas áreas do saber. Sua obra é um legado inestimável para a literatura mundial, ocupando, com integral mérito, seu lugar de honra na história.
Clarice escreve como quem se agarra a uma tábua de salvação. As palavras escorrem de sua mente para sua mão como se sua vida dependesse disso. Sua obra traz, muito vívidas, inúmeras questões de interesse da psicanálise, como a fantasia, a solidão, a angústia e o inconsciente. Mas, entretecendo todos os seus romances, de “Perto do Coração Selvagem” (1943) até “Um Sopro de Vida” (1978), uma nota de fundo se faz insistente e comum, clamando atenção: o escrever como catarse.
Entendendo sobre a escrita terapêutica
No seu último livro, “Um Sopro de Vida”, uma Clarice mais madura e autoconsciente que nunca, confessa:
“Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz” (LISPECTOR,1978)
O uso da poesia e da escrita como terapia para cura e crescimento pessoal não é recente. A origem desta modalidade terapêutica remonta a épocas remotas nas quais líderes espirituais, como xamãs e feiticeiros, nos seus ritos religiosos, entoavam poesias a fim de alcançar o bem-estar da tribo ou de indivíduos. Toda a obra lispectoriana é em si um grande grito, um eco de angústia, um desabafo catártico, que poderia ser feito através da fala, da música, do teatro, dança ou da pintura, mas que, para Clarice, precisa ser pela escrita.
“Me deram um nome e me alienaram de mim”
Clarice Lispector nasceu em 1920, na Ucrânia, em Chechelnyk, tendo recebido o nome de Chaya. Ainda bebê, mudou-se com a família para o Brasil, onde viveu grande parte da vida, nas cidades de Maceió, Recife e Rio de Janeiro. Em sua biografia, “Clarice,” Benjamin Moser escreveu:
“A criança frágil se tornou uma artista famosa num país que seus pais mal eram capazes de imaginar. Mas sob outro nome. O nome que ela recebeu em Tchechelnik, Chaya, que em hebraico significa “vida” – e que também tem a apropriada conotação de “animal” – desapareceria, reaparecendo apenas em hebraico em sua lápide tumular, e mantendo-se pouco conhecido no Brasil até décadas depois de sua morte”. (MOSER, 2009)
A importância do nome para a formação da identidade do sujeito dispensa maiores explanações. Com o desenvolvimento do ego ocorrendo ainda nos primeiros anos de vida, revelam-se latentes as implicações para a escritora de ter seu nome modificado na mais tenra infância. O debruçar psicanalítico sobre o distanciamento do “eu” para o “ideal do eu” e as angústias advindas desse abismo dialogam com o sentir e o expressar-se da autora. Tal ideal é fruto do fato de sermos falados pelos outros, mãe, pai, amigos, sobretudo na infância.
A escrita terapêutica e a realidade psíquica
Não se nasce com esse ideal, sendo ele construído a partir do discurso do outro, da palavra, das nossas relações e da significância que tal discurso exterior imprime sobre nós. Portanto, o homem é essencialmente feito de palavras, tendo elas interferência pungente, máxima no desencadear da vida, adentrando e desencadeando reações no próprio organismo. As palavras entranham-se no sujeito, constituindo a realidade psíquica. Tal realidade está imbricada com a forma de interpretação do que se ouve.
Uma das funções do Ego é atender às exigências da realidade, afirmando, assim, a própria autonomia. Essa questão relativa ao nome perdido reverberaria por toda a sua vida e densa obra, estando toda ela repleta de nomes secretos, ocultados, disfarçados. Faz parte da escrita clariceana a obsessão pelo processo pelo qual as coisas são trazidas à existência, nomeadas, batizadas ou rebatizadas, investindo nessas questões grande significação mística. Tal fissura pode ser compreendida pela psicanálise como originária da infância, quando, subitamente, recebeu outro nome. Essa busca incessante pela sua real identidade, por pertencer a si, ecoaria por toda a sua escrita.
“É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.” (LISPECTOR, 1980)
A escrita como terapia
Por muitas décadas, a íntima ligação entre poesia e cura permaneceu nas sombras. Apesar de inegável, essa conexão foi por muito tempo deixada de lado pelos estudiosos de ambos os temas, tanto pelos que se debruçavam sobre a literatura quanto pelos profissionais da área de saúde. Historicamente, registra-se que o primeiro poeta terapeuta viveu no primeiro século Depois de Cristo. Era um médico romano chamado Soranus que teria prescrito tragédia para seus pacientes maníacos e comédia para os que sofriam de depressão.
Há relatos de que o Hospital da Pensilvânia, fundado por Benjamin Franklin em 1751, empregava tratamentos auxiliares para os pacientes mentais, nos quais se incluíam leitura e redação. Também o médico Benjamin Rush, conhecido como o “Pai da Psiquiatria Americana”, utilizou a música e a literatura como tratamentos auxiliares eficazes, tendo sido o renomado médico o primeiro americano a recomendar, ainda no início de 1800, aos seus pacientes mentais a leitura e a escrita.
É certo que a cura e as artes estiveram historicamente entrelaçadas, tendo o próprio pai da psicanálise, Sigmund Freud, afirmado: “Não eu, mas o poeta descobriu o inconsciente” (FREUD, 1909). Diversos teóricos, como Adler, Jung, Arieti e Reik compreenderam e expressaram em seus escritos terem sido os poetas os primeiros a desbravar caminhos que só depois a ciência ousou enfrentar. Foram cunhados termos como “psicopoesia” e “psicodrama” para aproximar o diálogo entre artes e terapia. Já nos anos 60 do século XX, com a progressiva evolução da psicoterapia de grupo, os profissionais da área descobriram a eficácia da “poesia terapêutica”, passando a incorporá-la em seu trabalho.
A escrita terapêutica e disciplinas
Tal ferramenta teve seu emprego ampliado ao longo dos últimos anos, florescendo nas mais diversas disciplinas, como reabilitação, educação, recreação e arte terapia. Atualmente, sabe-se que a escrita é uma função vital, despontando como uma das maneiras mais eficazes e profundas de se analisar a condição humana. O psiquiatra Owen Heninger afirmou: “A poesia torna as forças inconscientes conscientes e compreensíveis. Ela fornece uma saída para as emoções.” (OWEN HENINGER, 2000).
Hoje, a ciência compreende que a escrita é sim terapêutica. A Presidente da International Stress Management Association no Brasil (Isma-BR), a psicóloga Ana Maria Rossi afirma que as sensações agradáveis que a escrita proporciona são reais e fisiologicamente fundamentadas. Explica ela: “Não é meramente uma fantasia, algo banal. Quando a pessoa escreve uma área do cérebro importante, o córtex pré-frontal, é ativada.
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Ela é a responsável por esses benefícios” (Ana Maria Rossi). A poesia é uma escolha de palavras, uma eleição lexical. Nela é necessário escuta da alma, desaceleração interior para eleger, costurar e alicerçar os pensamentos que serão externalizados em palavras. A escrita singular de Clarice Lispector tem estilo intimista, trazendo como tema central o psicológico das personagens, que não raras vezes, experienciam processos de epifania. Em que pese Clarice estruturar seus textos em prosa, o conteúdo é inegavelmente eminentemente poético.
O método catártico, a angústia e o superego punitivo em Clarice Lispector
De acordo com Laplanche em “Vocabulário de Psicanálise” (1967), o método catártico seria o “método de psicoterapia em que o efeito terapêutico visado é uma “purgação” (catharsis), uma descarga adequada dos afetos patogênicos. O tratamento permite ao sujeito evocar e até reviver os acontecimentos traumáticos a que esses afetos estão ligados, e ab-reagi-los.”
Esse método foi criado entre 1880-1895, período histórico em que a terapia psicanalítica era construída em torno de tratamentos efetuados sob hipnose. O termo grego “Catharsis”, que quer dizer purificação ou purgação, foi retomado por Breuer e Freud, na busca de exprimir o efeito esperado de uma ab-reacão adequada do traumatismo. De acordo com os “ Estudos sobre a histeria” (Studien uber Hysterie, 1895), os afetos que não conseguem encontrar o caminho para a descarga ficariam presos, exercendo então efeitos patogênicos. Segundo Freud:
‘‘Supunha-se que o sintoma histérico surgia quando a energia de um processo psíquico não podia chegar a elaboração consciente e era dirigida para a inervação corporal (conversão) […]. A cura era obtida pela liberação do afeto desviado, e a sua descarga por vias normais (ab-reacao).” (FREUD, 1895)
A hipnose e a escrita terapêutica
A princípio, o método catártico e a hipnose estavam intimamente relacionados, contudo, com o passar do tempo, Freud deixou de se valer dessa como um processo de provocação direta da supressão do sintoma através da sugestão de que o sintoma não existe, passando a ser utilizada para induzir a rememoração, reintroduzindo no campo de consciência experiências subjacentes aos sintomas, mas recalcadas pelo sujeito. Tais recordações, revividas, rememoradas com intensidade, oportunizariam ao sujeito a expressão, a descarga dos afetos outrora reprimidos.
Sabe-se que Freud trocou a hipnose pela simples sugestão, aliada a uma pressão com a mão na testa do paciente; chegando por fim ao método da associação livre. Nota-se que no decorrer da evolução dos processos utilizados, a finalidade do tratamento permaneceu a mesma: chegar à cura dos sintomas, restabelecendo o caminho normal de descarga dos afetos. A catarse, então, desponta como uma das dimensões de toda a psicoterapia analítica, figurando em diversos tratamentos como uma intensa revivescência de certas lembranças acompanhada de uma descarga emocional mais ou menos dramática.
Breuer e Freud reconhecem que “é na linguagem que o homem encontra um substituto para o ato, substituto graças ao qual o afeto pode ser ab-reagido quase da mesma maneira. Em outros casos, é a própria palavra que constitui o reflexo adequado, sob a forma de queixa ou como expressão de um segredo pesado (confissão!).” É a simbolização pela linguagem, presente no valor catártico. A dor é real.
Conflitos interiores
A catarse dá ao sujeito a possibilidade de trocar uma reação física agressiva, potencialmente destrutiva, por uma resposta simbólica tão efetiva quanto a primeira. Existem certos tipos de psicoterapia que têm como foco central a catarse, como por exemplo, a narcoanálise e o psicodrama, este definido como uma liberação dos conflitos interiores por meio da representação dramática. Em seu último romance, Clarice, através de seu protagonista, declarou:
“Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar.” (LISPECTOR, 1978)
“as palavras que digo escondem outras – quais? talvez as diga.” (LISPECTOR, 1978)
São receios confessos de não conseguir dar conta do que está abaixo da superfície; temores de ferir e abalar o Ego de forma irrecuperável, ao remexer no temido Inconsciente. A percepção da escritora de que o conteúdo consciente é só uma minúscula porção da vida interior é admirável e dá a tônica de toda a obra. Ela baila em um eterno fugir e lançar-se, evitar e encarar, “correr de” e “correr para”.
Uma tempestade desconhecida
Em alguns trechos, levanta-se corajosa, disposta a lançar-se na tempestade desconhecida do seu íntimo:
“vou definitivamente ao encontro de um mundo que está dentro de mim, eu que escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.” (LISPECTOR, 1978)
Em outras passagens, prefere manter-se nas margens, com cuidado:
“Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.” (LISPECTOR, 1978)
Clarice e Freud
Quando Clarice mergulha em si e libera todo o seu potencial poético, nos deparamos com sua faceta mais bela e rica. Seu processo catártico é denso, colorido e palpável. Em seu texto “O Poeta e o Fantasiar”, Freud ressalta que “o romance psicológico, sem dúvida, deve sua singularidade à inclinação do poeta moderno de dividir seu ego, pela auto-observação, em muitos egos parciais, e em consequência personificar as correntes conflitantes de sua própria vida psíquica por vários heróis”. (FREUD, 1908) Nada mais verdadeiro a se declarar acerca da escrita lispectoriana.
Clarice, mestra em auto-observar-se, fragmenta-se o tempo todo em suas personagens, como se tantas “Clarices” lhe habitassem, tão ruidosas e conflitantes, que se faz necessário personificá-las em vários e distintos heróis. Dividir o ego, dar vazão a cada um deles, animá-los com fôlego próprio, dar-lhes vozes, únicas e intransferíveis. Em seus desabafos catárticos, a autora nos revela angústias existenciais e constrói fantasias, compondo materiais de valor inestimável para análise terapêutica.
Clarice faz da sua escrita seu setting terapêutico. Desabafa, sofre, inventa, tira conclusões, perde-se, encontra-se, desenhando para o leitor verdadeiras e belíssimas associações livres. São pensamentos viscerais, ora angustiantes, ora epifânicos. Sempre, indiscutivelmente brilhantes.
“De certo tudo deve estar sendo o que é.” (LISPECTOR,1978.)
“O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo.” (LISPECTOR,1978.)
“Na verdade o pré-pensar é o que nos guia, pois está intimamente ligado à minha muda inconsciência.” (LISPECTOR, 1978)
Somos feitos de palavras
Conforme já mencionado, somos essencialmente feitos de palavras e disso, Clarice bem entendia. Enquanto seres de linguagem, somos todos cronicamente insatisfeitos. Como bem afirmou Lacan, “O gozo é interditado àquele que fala”. Somos seres insatisfeitos por natureza, incapazes de atingir a plenitude da realização. Para que o sujeito se constitua como tal, como sujeito da linguagem, é imperativo que haja a interdição e a falta. Assim, impõe-se uma renúncia pulsional, uma perda de gozo.
E tentamos, tentamos, incessante e insistentemente, expressar através das palavras nossas demandas, nossos desejos, nossas ausências, sem nunca as alcançar por completo. Através da palavra tentamos, mas apenas tentamos. A palavra carrega em si a potência e ao mesmo tempo a limitação, fazendo “aquilo” que almejamos sempre nos escapar. Clarice deu forma a essa não alcançabilidade da satisfação humana com maestria em seus textos.
“A palavra é meu domínio sobre o mundo.” (LISPECTOR,1999)
“Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.” (LISPECTOR, 1980.)
“Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.” (LISPECTOR, 1977.)
A clínica psicanalítica
Esse não atingir tudo o que se deseja está atrelado inexoravelmente à existência humana. Nos movemos porque desejamos e sempre seguimos desejando novas vivências, novos objetivos, novas sensações. Vivemos porque existe a demanda. Com o fim da demanda, passa-se a demandar o fim da própria existência, perdendo essa o sentido.
Interessante notar neste ponto um diálogo com a própria função da clínica psicanalítica, aqui traduzida na escrita catártica. A clínica psicanalítica não se arvora o poder místico de garantir que o sujeito irá conquistar o que quer, mas sim garantir que o sujeito se permita e seja capaz de confessar para ele mesmo aquilo que quer, confissão essa tantas vezes constrangedora e assaz dolorosa. O setting terapêutico vai implicar o ser desejante a ter uma relação de maior consciência com esse desejo.
“Que minha solidão me sirva de companhia. que eu tenha a coragem de me enfrentar. que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.” (LISPECTOR, 1978)
Mais no fundo do ser
Em suas palavras, Clarice demonstra – através dos personagens que lhe dão voz – a profundidade da sua compreensão de que reprimir um desejo não vai livrar o sujeito dele. O movimento do recalque de tirar da consciência e mandar o desejo para uma esfera mais abaixo, mais no fundo do ser, não resolverá a questão, ela ficará constantemente retornando.
Escrever, nesse contexto, é expurgar, é admitir, acolher, acolher-se e soltar a corda, deixar ir. Entre as catarses poéticas de Clarice Lispector, vislumbramos a tentativa constante de ser menos severa consigo mesma. A autora angustia-se pelo peso constante de suas culpas e esforça-se em demonstrar compaixão e mais empatia por suas falhas.
“Tenho que começar por aceitar-me e não sentir o horror punitivo de cada vez que eu caio” (LISPECTOR, 1978)
“Eu vivo em carne viva, por isso procuro tanto dar pele grossa a meus personagens. Só que não aguento e faço-os chorar à toa.” (LISPECTOR, 1978.)
A severidade
É certo que a severidade que impomos ao outro, impomos também a nós mesmos. Pode o sujeito padecer de uma rigorosidade dos ideais que sufocam a própria ordem desejante, levando os dois a caminharem em constante descompasso. Se exijo demais de mim, também exijo demais dos que me cercam. Se espero nada menos que perfeição no meu atuar, é isso que esperarei dos sujeitos com quem interajo. Contudo, a sustentação de tal ideal é cara demais; essa exigência constante cobra seu preço nos relacionamentos.
“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” (LISPECTOR, 1948.)
“Passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar.” (LISPECTOR, 1981)
Além da angústia, a liberdade do fantasiar também é característica constante nos escritos clariceanos. “Porque eu sozinho não consigo: a solidão, a mesma que existe em cada um, me faz inventar. E haverá outro modo de salvar-se? senão o de criar as próprias realidades?” (LISPECTOR, 1978.)
Conclusão sobre a escrita terapêutica
Klein afirma que a fantasia não é apenas uma fuga da realidade, mas também uma constante e inevitável interação entre experiências reais e mundo interno individual, uma forma de conceber as demandas pulsionais inconscientes. Em o Poeta e o Fantasiar, Freud trata das fantasias e devaneios, salientando a tendência humana de cuidadosamente ocultar suas fantasias dos demais, porque sente ter razões para se envergonhar delas. E afirma:
“A verdadeira ars poetica está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos demais. Podemos perceber dois dos métodos empregados por essa técnica. O poeta suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias.
Denominamos de prêmio de estímulo ou de prazer preliminar ao prazer desse gênero, que nos é oferecido para possibilitar a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas. Em minha opinião, todo prazer estético que o poeta nos proporciona é da mesma natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nosso psiquismo. Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o poeta nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha.” (FREUD, 1908)
Clarice nos liberta para experienciarmos nossas próprias fantasias
Clarice peca por nós, nos conta, e então nos sentimos expiados de toda a culpa, pois sabemos que também pecamos. Sua escrita catártica muito tem a ensinar a todo aquele que intente mergulhar no estudo do inconsciente, da alma humana e da cura terapêutica.
Aprofundar-se na literatura de Clarice Lispector é entrar em contato com o inconsciente humano, é permitir-se aflorar em sensibilidade e autoconhecimento. A obra da autora é uma verdadeira aula de psicanálise, podendo ser destrinchada sob diversos aspectos, possibilitando infindáveis diálogos com as obras e conceitos de Freud e Lacan.
Este artigo sobre a escrita terapêutica ou escrita catártica em Clarice Lispector foi escrito por Raissa Lopes Domingos Sampaio (siga a autora nas redes sociais: @raissadomipsi , @raissa.poesia). Raissa é baiana, formada em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Além de psicanalista e advogada, é também escritora, tendo publicado três livros de poesias.