Podemos dizer que o filme A Tabacaria (uma co-produção austro-germânica) é uma espécie de “licença poética” que nos mostra como teriam sido os últimos anos de Sigmund Freud (1856-1939) em Viena, na Áustria.
Baseado no romance Der Trafikant, escrito pelo austríaco Robert Seethaler (2012), o filme A Tabacaria (2018/2019), dirigido pelo também austríaco Nikolaus Leytner, nos leva à Viena de 1938, com notável capricho visual.
Entendendo sobre o filme A Tabacaria
Toda a fotografia do filme merece destaque, desde as imagens de grande beleza plástica – que ilustram os sonhos do jovem Franz – até o cuidado apurado com a produção, que nos remete à capital da Áustria justamente na época da dominação pelos nazistas.
O filme – um enredo fictício – inicia com a história de Franz Huchel (Simon Morzé), um rapaz de 17 anos, que vive com a mãe, Margarete Huchel (Regina Fritsch), e o padrasto, numa cidadezinha no interior da Áustria, às margens do lago Attersee. Logo no início do filme, com a morte do padrasto, a mãe passa a enfrentar dificuldades financeiras, de forma que se vê obrigada a mandar Franz para Viena, a fim de trabalhar na tabacaria de um homem com quem teve um relacionamento no passado.
Nesta parte do filme, vemos o jovem se escondendo dentro de um barril com água – numa forma inútil de evitar o rompimento com aquela vida e a ida para a capital. Mas, por força das necessidades financeiras, a viagem é inevitável e ele vai. Já em Viena,Franz conhece a pessoa que irá mudar completamente sua vida: Otto Trsnjek (Johannes Krisch) – o dono da tabacaria -, um mutilado de guerra, que perdeu uma das pernas ao lutar na I Guerra Mundial.
O encontro com Freud e o filme A Tabacaria
E ali, Franz encontra não só trabalho e moradia na tabacaria, como também uma figura paterna em Otto. Com ele, o jovem aprende sobre charutos e periódicos (produtos vendidos na tabacaria) e recebe muitas lições de vida, incluindo a noção da realidade política na qual ele estava penetrando, uma vez que Otto era um ferrenho opositor ao regime nazista..
Logo Franz conhece o cliente mais ilustre da tabacaria: Sigmund Freud (Bruno Ganz). Como Freud na vida real costumava fumar mais de 20 charutos por dia, entendemos a inspiração para o filme.
Na cena, Freud sai da tabacaria logo após ser atendido por Otto, que explica para o jovem: “ – Aquele era o professor Sigmund Freud…ele trata gente maluca … é famoso no mundo todo… conserta a mente das pessoas… por dentro”.
A jovem dançarina
Franz vai se adaptando à vida na capital e conhece a jovem dançarina Anezka (Emma Drogunova), que mexe com seu coração. Ao perceber a revolução do amadurecimento tomando conta de sua vida, ele se aproxima de Freud em busca de conselhos.
O jovem Franz, que até então era um garoto que levava uma vida idílica e protegida, começa a sentir a metamorfose do amadurecimento, que chega com mesclas de prazer e angústias.
À noite, os sonhos lhe invadem com fúria trazendo mais dúvidas do que alívio. Seus sonhos, que no início eram agradáveis e infantis, vão ficando cada vez mais sombrios e complexos.
Questões amorosas no filme A Tabacaria
Conforme vai levando suas questões amorosas e sonhos angustiantes para as conversas, Franz recebe alguns conselhos de Freud, como na cena que aborda a questão dos sonhos:
“ – Vou recomendar três medicamentos. O primeiro é para sua dor de cabeça: pare de pensar no amor. O segundo é para sua dor de estômago e sonhos perturbadores: deixe uma caneta e papel ao lado da cama e anote seus sonhos, assim que acordar. O terceiro medicamento é para a dor no coração: vá atrás da garota ou esqueça-a”.
Nos momentos em que os sonhos de Franz são colocados na tela, o filme nos entrega cenas oníricas de muita beleza numa competente fotografia. Aqui, vale ressaltar a presença constante do elemento água no filme, seja nas cenas reais – como os mergulhos no lago e no barril, no início da trama –, seja nos sonhos, onde repetidas vezes ele aparece emergindo ou submerso.
O ventre materno
O uso do elemento água proporciona ao filme não apenas cenas com uma atmosfera onírica, fluída e azulada, como também nos leva a pensar que pode representar um desejo inconsciente do jovem Franz, de retornar para uma situação segura e protegida, como o “ventre materno”.
Assim, após a conversa com Freud, o jovem se entrega com disciplina à tarefa de anotar seus sonhos. Embora bastante breve no filme, o diálogo entre Franz e Freud ilustra a importância e relevância dos sonhos para o psicanalista.
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Segundo Freud, “Devemos voltar nossa atenção primeiramente para a posição que ocupa a teoria dos sonhos (…)foi com ela que a psicanálise progrediu de método psicoterapêutico para psicologia profunda”.
O avanço do nazismo
Com o passar do tempo, vão surgindo novos conflitos na vida de Franz em relação ao amor e à sua sexualidade e, com isso, a amizade com Freud vai se estreitando. Em paralelo, vamos assistindo ao avanço do nazismo em Viena, trazendo consigo todo o horror e perseguições reais que a história registrou.
É nesse contexto, que o filme mostra como vivia Freud, já com cerca de 82 anos, morando na Rua Berggasse, no. 19, onde também tinha seu consultório. Vemos um Freud já com a saúde abalada pelo câncer de mandíbula e sofrendo as aflições com as quais os judeus conviviam na época.
Em A Tabacaria, o diretor, com habilidade, coloca em cena a maneira como ocorre a anexação da Áustria pelos alemães (“Anschluss”), sem a menor resistência, em 12 de março de 1938.
O amadurecimento de Franz no filme A Tabacaria
O jovem Franz começa a amadurecer entre seus conflitos amorosos juvenis e a dura realidade que um regime totalitário traz. A violência vai se aproximando daqueles a quem foi se afeiçoando e ele passa a lidar com angústias que, até então, desconhecia.
Algumas cenas mostram que ele vai se dando conta do valor da liberdade, ao vê-la sendo roubada com violência. Franz tenta resistir, exercitando sua liberdade numa Viena vigiada pela Gestapo, como quando passa a colar os pedaços de papel com as anotações dos seus sonhos, na parte de fora da vitrine da tabacaria. Uma cena bem simbólica.
A ficção vai colocando na tela alguns fatos reais. Freud, que tinha origem judia, já havia confessado não desejar se tornar um exilado, mas acaba concordando em sair de Viena para se refugiar em Londres, na Inglaterra.
O exílio de Freud
Na verdade, alguns fatos contribuíram para que Freud cedesse à ideia de sair de Viena, entre eles, a ameaça sofrida por sua filha, Anna Freud, ao ser levada para ser interrogada pela Gestapo, que fazia frequentes visitas à sua casa.
Os problemas de saúde também começaram a se agravar. Esses problemas se iniciaram em 1923, quando Freud passou pela primeira cirurgia após o diagnóstico de câncer na mandíbula. O fato é que naquele momento em que a pressão nazista se intensificava, Freud estava com mais de 80 anos e convivendo com as dores e complicações de sua doença que se agravava.
Assim, com a ajuda de amigos, Freud consegue se refugiar em Londres, com parte de sua família, onde viveu até a data de sua morte, em 23 de setembro de 1939.
Conclusão
Por fim, temos na obra A Tabacaria um belo trabalho, mesclando uma notável produção cenográfica – na recriação de uma Viena sendo dominada pelo horror do nazismo – com ótimas interpretações dos atores principais, com destaque para Bruno Ganz, que colocou na tela um Freud bastante convincente.
A Tabacaria é um filme que merece ser assistido mais de uma vez. Trata-se de um filme complexo, que aborda vários temas sensíveis, tendo como cenário um momento histórico muito importante que transformou o mundo e deixou marcas profundas.
Este artigo sobre o filme A Tabacaria foi escrito por Rose Aielo Blanco([email protected]), jornalista, escritora e psicanalista em formação.
Referência bibliográfica principal: filme A Tabacaria (2019), disponível em Netflix na data da última atualização.