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Gaslighting: como identificar em psicanálise

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‘Gaslighting’ é uma forma de abuso psicológico em que uma pessoa ou grupo manipula uma ou mais pessoas para questionar sua sanidade e percepção da realidade. Pessoas que usam ‘gaslighting’ podem usar intencionalmente ou não essa forma de abuso para exercer poder ou controle sobre outra(s) pessoa(s) com o objetivo de manipulá-la(s). Já quem vivencia o ‘gaslighting’ pode muitas vezes se sentir confuso sobre sua versão da realidade, sentir ansiedade ou ser incapaz de confiar em si mesmo.

Entendendo sobre o gaslighting

O termo ‘gaslighting’ originou-se da peça de 1938 e do filme subsequente de 1944 intitulado ‘Gaslight’ (‘À Meia-Luz’ no Brasil), no qual um marido tenta convencer sua esposa de que ela não pode confiar em sua própria mente. O objetivo principal do marido é encontrar as joias pertencentes a uma tia da esposa e que estariam escondidas no sótão da mansão onde vivem.

A palavra inglesa ‘gaslight’ tornou-se sinônimo de um tipo especial de manipulação, onde é criada uma sensação de dúvida inata e intrínseca na vítima. A pessoa que “acende o gás”, o ‘gaslighter’, é consistente e proposital no ato de fazer intencionalmente outra pessoa se sentir culpada, arrependida e cheia de ansiedade, a fim de promover algum objetivo ou obter algo.

O ‘gaslightning’ deve ser visto pela Psicanálise como uma das ferramentas utilizadas pelo psicopata e pelo narcisista, nomes antigos para paciente com Transtorno de Personalidade Anti-Social (TEA), no sentido de que ambos podem ser egocêntricos, manipuladores e coercitivos. Embora os narcisistas se concentrem em técnicas egocêntricas e para usar nos outros, os ‘gaslighters’ se fixam no poder ou no controle para dominar os outros, uma característica intrínseca aos psicopatas. De acordo com o escritor e psicólogo Sam Vaknim, ‘os psicopatas são deliberadamente e alegremente maus, enquanto os narcisistas são distraídos e incidentalmente maus.’ (“Malignant Self Love – Narcissism Revisited”).

O gaslighting e relacionamentos

O ‘gaslighting’ é realizado, na maioria das vezes, de uma pessoa para outra, geralmente em relacionamentos românticos. No entanto, o gaslighting também pode ocorrer em outros relacionamentos, como amizades, entre familiares, no local de trabalho, na política, na religião e até mesmo no setting analítico.

A confusão emocional parece ser a base da agenda de um ‘gaslighter’, por isso este tipo de abuso pode funcionar bem para alguém que já não confia no seu próprio julgamento. Assim, as pessoas que confiam mais em si mesmas podem ser mais imunes ao ‘gaslighting’. Apesar disso, o ‘gaslighter’ pode persistir na sua coerção para eventualmente desgastar as suas vítimas ao longo do tempo. As táticas do ‘gaslighter’ podem ser usadas para abalar a confiança da vítima, diminuir sua autoestima e tornar sua vítima dependente.

Existem muitas táticas que os ‘gaslighters’ pode usar para manipular suas vítimas, fazendo-as questionar suas próprias percepções da realidade, seus pensamentos e sentimentos:

Negação

O ‘gaslighter’ pode fingir que esqueceu os acontecimentos ou como eles aconteceram, por exemplo, dizendo: ‘Isso nunca aconteceu’. Ele também pode acusar a vítima de inventar coisas para que a vítima pareça estar mentindo.

Mesmo quando a vítima fornece provas das mentiras, o ‘gaslighter’ não recuará e poderá ser muito convincente ao negá-las, mesmo que a vítima saiba que está mentindo. Isso pode fazer com que a vítima se sinta confusa, invisível e se questionando.

Transferência

Geralmente pode ocorrer durante conversas ou confrontos com o ‘gaslighter’. Ele pode distorcer o confronto da vítima para fazer com que a vítima pareça a pessoa má em vez de si mesmo; assim, a culpa é desviada para a vítima.

Depreciação

Isto pode envolver alguém menosprezando ou banalizando os sentimentos da vítima. Muitas vezes o ‘gaslighter’ pode dizer: ‘Você está exagerando’ ou ‘Você é muito sensível’. Ao agir de forma a magoar a vítima, pode dizer: ‘Eu só estava brincando’, para reforçar que a outra pessoa está reagindo de forma exagerada. A vítima pode questionar se as suas preocupações e sentimentos são reais ou pode sentir-se tola por reagir de forma “exagerada”.

Se a vítima estiver lidando com alguém que não reconhece os seus pensamentos, sentimentos ou crenças, poderá nunca se sentir validada ou compreendida, o que pode ser difícil de enfrentar psiquicamente.

Resistência e gaslighting

O ‘gaslighter’ pode se recusar a iniciar uma conversa ou fingir que não entende o que a outra pessoa está dizendo para não responder. Ele pode dizer frases como “Não sei do que você está falando” ou “Você está tentando me confundir”. Isto também pode incluir fingir não compreender a perspectiva da outra pessoa, o que pode frustrar a vítima e fazer com que se sinta incompreendida e confusa.

Contra-ataque

Ao contra-atacar, o ‘gaslighter’ confronta as memórias dos acontecimentos da vítima com uma acusação ou negação. Eles podem questionar a memória de outra pessoa, dizendo, por exemplo: ‘Você tem uma memória ruim’ ou ‘Você nunca se lembra das coisas com exatidão’.

Essas acusações podem fazer com que a vítima acredite que pode ter se lembrado de coisas incorretamente ou ter problemas de memória.

Desmentido (mecanismo correlato a um deslocamento de valor)

O objetivo de desacreditar alguém pode fazer com que a vítima pareça emocionalmente instável e, portanto, mais dependente do ‘gaslighter’. Isso pode ser usado para mudar o foco das conversas e para questionar a credibilidade da outra pessoa, como dizer: ‘Este é apenas mais um pensamento louco da sua parte.’

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    O ‘gaslighter’ também pode espalhar rumores ou mentiras sobre sua vítima, dizendo sutilmente aos outros que ela é emocionalmente instável, de modo que as pessoas podem até ficar do lado do agressor sem saber a história completa. O ‘gaslighter’ pode então usar isso contra a vítima para respaldar suas afirmações, como dizer: ‘Todo mundo pensa que você é instável emocionalmente’. Para o ‘gaslighter’, isso é mais uma evidência para usar contra sua vítima.

    Deflexão

    Quando em discussão ou confronto com um ‘gaslighter’ sobre seu comportamento, este pode mudar de assunto ou distrair sua vítima com uma pergunta em vez de responder ao assunto em questão. Isso não só pode confundir a vítima, mas também pode levá-la a questionar a necessidade de pressionar um assunto.

    Uso de estereótipos e gaslighting

    As pessoas podem usar intencionalmente estereótipos negativos para manipular os outros. Isto pode incluir estereótipos em torno de gênero, raça, etnia, sexualidade, nacionalidade ou idade de uma pessoa. Um exemplo comum disso em relacionamentos românticos heterossexuais é quando um homem diz à mulher que as pessoas vão pensar que ela está sendo histérica ou irracional – sendo estes estereótipos prejudiciais de gênero muito comuns.

    Isso também pode ser usado no que é chamado de ‘gaslightning’ médico, quando um profissional de saúde mental descarta ou questiona as preocupações de um paciente e o faz acreditar que seus sintomas são imaginados ou exagerados.

    Reescrevendo histórias

    Outro método de ‘gaslighting’ que alguém pode usar é recontar “histórias” que funcionem a seu favor. Elas podem mudar a história para fazer com que a vítima pareça ser a pessoa abusiva. Por exemplo, se um parceiro ‘gaslighter’ gritou com o cônjuge a noite toda, a ponto de o cônjuge gritar de volta, o ‘gaslighter’ pode “reescrever a história” dizendo: ‘Você estava gritando comigo sem motivo’.

    A vítima pode começar a duvidar de suas memórias sobre o que realmente aconteceu, sendo a confusão ou a dúvida a intenção exata do ‘gaslighter’.

    Tipos de ‘Gaslighting’:

    Relacionamentos íntimos com parceiros

    Normalmente, o tipo de ‘gaslighting’ mais ocorrente é o que acontece nos relacionamentos românticos. No filme ‘Gaslight’ supracitado, fica evidente que o marido abusivo manipulou sua esposa fazendo-a acreditar que ela imaginava coisas para torná-la mais fácil de controlar.

    Devido à natureza íntima desses relacionamentos, pode ser mais fácil para os ‘gaslighters’ usarem seus abusos com frequência e intensidade, podendo também usar esse tipo de abuso para isolar seus parceiros de amigos e familiares, impedi-los de viver suas vidas normais e até mesmo evoluir para abuso físico a longo prazo (embora nem sempre seja o caso).

    Relacionamentos pais/filhos

    Outra forma comum de ‘gaslighting’ pode ocorrer quando um pai/mãe manipula seu filho. A criança pode confrontar os pais quando adulto, explicando que os pais podem ter feito coisas que os prejudicaram enquanto cresciam. Um pai/mãe ‘gaslighter’ pode negar ou ignorar a experiência subjetiva da criança, recusar-se a assumir o seu papel num problema ou agir como se eles próprios fossem os prejudicados e em vez de apoiarem emocionalmente, os pais abusivos podem fazer com que os filhos se sintam pior consigo mesmos se a culpa for transferida, tornando o pai/mãe a “vítima”.

    Pais controladores e o gaslighting

    Outra maneira pela qual os pais podem ser considerados ‘gaslighters’ é se eles forem excessivamente controladores, significando que controlam o que seu filho deve gostar, não gostar, valorizar e acreditar. Pais abusivos usando ‘gaslighting’ podem dizer que seu filho gosta de determinadas coisas ou dizer-lhe o que está sentindo, como, ‘Você está cansado’, quando a criança pode não estar se sentindo assim, gerando dúvida e/ou confusão mental, dependendo da situação.

    Institucional

    Este tipo de ‘gaslighting’ pode ocorrer em qualquer empresa ou organização. A organização pode negar ou ocultar informações para parecer bem e mentir aos funcionários sobre seus direitos. Isto pode ocorrer quando alguém se apresenta para expor a instituição por qualquer irregularidade, sendo o denunciante retratado pela instituição como alguém que reage irracionalmente de forma exagerada às interações normais, levando-o a duvidar das suas próprias percepções e estado mental.

    Outro exemplo de ‘gaslighting institucional’ pode ser quando um funcionário confidencia a seu colega de trabalho que seu chefe o maltrata e o colega de trabalho responde com: ‘Não acho que ele faria isso’ ou ‘Acho que este é um ótimo lugar para trabalhar.’ Este tipo de ‘gaslighting’ ocorre quando outras pessoas ao redor do agressor duvidam das experiências da vítima porque elas próprias não sofreram esse abuso.

    Político

    Embora seja comum pensar que o ‘gaslighting’ só pode ocorrer com uma pessoa, ele pode ser usado em grandes grupos ou populações de pessoas. O ‘gaslighting’ político pode ocorrer quando uma figura ou grupo político usam mentiras, negações ou manipulam informações para controlar as pessoas.

    Os exemplos incluem quando um político minimiza ou mantém ocultas coisas que pode ter feito de errado ou desacredita os adversários questionando a sua instabilidade mental ou trazendo à tona ações passadas. Também podem ser utilizadas táticas de distração através de controvérsia para desviar a atenção do público de eventos importantes que possam considerar ameaçadores ou desconfortáveis. Como esses indivíduos ocupam posições de poder e influência, isso pode aumentar a probabilidade de grandes grupos de pessoas serem prejudicados por eles.

    Estas mesmas táticas de abuso via ‘gaslighting’ podem também ser utilizadas em grupos religiosos, sendo extremamente comuns em seitas, aonde as vítimas chegam até mesmo a duvidar ou renegar seu próprio passado antes de fazerem parte da ‘comunidade’ (como muitas seitas preferem ser denominadas). A ilusão de pertencer a uma comunidade por si só pode ser uma possível técnica de ‘gaslighting’, destinada a ratificar o poder de quem detém o comando da estrutura, seja ela política ou religiosa.

    Racial

    Uma pessoa ou grupos de pessoas podem usar de ‘gaslighting’ em relação às experiências de discriminação de grupos étnicos negros e minoritários, negando, por exemplo, que estes indivíduos sofram racismo, apesar das evidências em contrário.

    O ‘gaslighting’ pode ocorrer quando as pessoas que defendem a injustiça racial são levadas a acreditar que estão sendo irracionais, demasiado sensíveis ou demasiado emotivas, sendo isso feito com a intenção de minar sua mensagem.

    Misógino

    O ‘gaslighting’ pode ser usado para banalizar ou descartar problemas que afetam especificamente as mulheres com base em estereótipos misóginos. Um estudo descobriu que os profissionais médicos tinham duas vezes mais probabilidade de atribuir sintomas de doença cardíaca coronária em mulheres de meia-idade à condições de saúde mental em comparação com homens de meia-idade. (Mahseredjian et al, 2009).

    Desta forma, o ‘gaslighting’ é usado para minimizar os sintomas físicos das mulheres em relação aos sintomas de saúde mental, dizendo frases como “está tudo na sua cabeça” para reforçar o estereótipo arcaico de que as mulheres são irracionais e histéricas. Descobriu-se também que o ‘gaslighting’ misógino prevalece quando as mulheres prestam testemunhos sobre os abusos infligidos a elas por homens. (Stark, 2019).

    No seu artigo, Stark sugere que as pessoas que pretendem minar os testemunhos de abuso das mulheres podem desafiar a sua credibilidade, esquivando-se às provas que apoiam o relato da mulher e usando táticas de “deslocamento”, atribuindo aos defeitos cognitivos ou características e particularidades da mulher que denuncia o(s) abuso(s).

    Tribal

    Termo que ganhou extrema relevância com a massiva utilização das redes sociais e o fenômeno social dos ‘influencers’ (ou “influenciadores” ), onde na maioria das vezes o “influenciador” não tem qualquer substrato de relevância moral ou peso em qualquer campo das artes, da ciência, da tecnologia etc, mas por algum motivo passa a ter milhares ou milhões de seguidores nas suas redes sociais, “influenciando” a vida de seus ávidos seguidores.

    O ‘gaslighting’ neste caso é percebido quando o grupo de seguidores passa a capacitar o ‘gaslighter’ nas suas postagens e colocar ainda mais dúvidas sobre a realidade de outrem. O ‘gaslighting’ tribal pode ocorrer em todos os outros tipos de ‘gaslighting’ mencionados acima.

    Por exemplo, se alguém está em um relacionamento íntimo com alguém que acredita ser um ‘gaslighter’ e compartilha suas preocupações sobre o parceiro com os amigos e seguidores em uma rede social, estas pessoas responder dizendo coisas como: ‘Não notei nenhum comportamento dessa maneira’ ou ‘Talvez você esteja entendendo mal as ações dele’.

    O gaslighting e o abuso

    O ‘gaslighting’ pode ser tão forte ou virulento a ponto de induzir uma pessoa a tirar sua própria vida, como temos observado em situações recentes divulgadas por mídias jornalísticas. Isso geralmente acontece porque outras pessoas podem ver apenas um lado do abusador e, portanto, achar difícil acreditar que este ou esta seria abusivo.

    Se várias pessoas, incluindo o ‘gaslighter’, colocam dúvidas sobre a vítima, isso pode fazer com que a vítima questione se está realmente sendo abusada, não querendo compartilhar suas lutas internas com ninguém por medo de não acreditarem, sofrendo em silêncio ao mesmo tempo em que é atacada virtualmente.

    O impacto do ‘gaslighting’: Este tipo de abuso pode prejudicar a saúde mental da vítima e causar sentimentos de ansiedade, depressão ou outros problemas de saúde não só mental como física. Algumas pessoas podem recorrer ao uso de substâncias e comportamentos suicidas (assunto já abordado acima) como resultado do ‘gaslighting’ que, se persistente, pode desgastar o senso de identidade, a autoestima e a autoconfiança de alguém.

    Conclusão

    Algumas pessoas podem ser mais vulneráveis aos efeitos negativos do ‘gaslighting’ se tiverem histórico de abuso ou trauma, baixa autoestima ou depressão, por exemplo. Depois de um tempo, as pessoas podem acreditar que merecem o abuso que enfrentam.

    O impacto do ‘gaslighting’ persistente pode durar muito tempo depois do ‘gaslighter’ ter saído da vida da vítima e muitas vezes leva a uma vida inteira de dúvidas, tornando este um problema verdadeiramente catastrófico em termos psíquicos.

    Este artigo foi escrito por Julieta Pedrosa (https://x.com/julieta_pedrosa e https://instagram.com/analisandose_ ). Analista em formação. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFRJ. Pós-graduada em Análise e Avaliação de Projetos pela FGV. Formada em Gemologia e CAD/CAM pelo Gemological Institute of America, com diversos cursos nacionais e internacionais na área da joalheria. Ex-CEO na empresa Julie Joias Brasileiras. Professora de História da Joalheria e de Gemologia.

    3 thoughts on “Gaslighting: como identificar em psicanálise

    1. Romulo Caixa Ferreira disse:

      Ótimo conteúdo! Muitas informações importantes!!!

    2. O Controle Mental exercido por “terceiros” sempre foi atual, como o título do filme: “tempos modernos” que surgiu noutro século! Hoje, na Missa, depois de ter mexido com dinheiro (por ocasião do momento da coleta) uma mulher até “coroa” passou álcool nas mãos, braços e antebraços, com narinas a mostra e ambiente no ar condicionado e pessoas próximas e de gerações “diversificadas”! Ou seja: depois querem saber a importância da Matemática; é dessa área do conhecimento que desenvolveremos o raciocínio lógico!

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