Resumo de Lukács: trabalho, ideologia e subjetividade

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Este texto trata-se de pequeno esforço no intuito de delinear os principais apontamentos presentes na magna opus de Georg Lukács – a Ontologia do Ser Social, que remetem à produção da subjetividade.

Introdução: vida e obra de Georg Lukács

Na esteira do desenvolvimento de estudos críticos em filosofia e psicanálise, xomo os desenvolvidos por Deleuze e Guattari, e Slavoj Zizek – ainda que partindo de diferentes pressupostos teórico-metodológicos, buscar-se á explicitar como a estruturação da forma social regida pelo Capital estabelece formas específicas de subjetividade para os indivíduos que compõem o gênero humano.

Defende-se que a ontologia Lukaciana perpassa elementos e questões até então tratados de maneira ainda insatisfatória pela Psicanálise – fundando-se, com isso, novos problemas de pesquisa acerca da subjetividade humana. Lado outro, existe ainda uma fundamentação prática para este intento, enquanto debate acerca de um programa para o gênero humano, a partir das implicações éticas tratadas por Lukács em sua obra. Assim, sintetizados pela perspectiva do “Que fazer?” quanto às questões ali problematizadas.

“Problemas de pesquisa acerca da subjetividade humana”

Ao dizermos “problemas de pesquisa acerca da subjetividade humana”, falamos dos diversos desafios que se apresentam neste esforço. Desafios que remetem a questões como transportar uma teoria geneticamente desenvolvida na e para a experiência clínica, a psicanálise, para um aspecto mais global do ser social e suas determinações.

E, também, como ultrapassar o imediatismo da relação entre indivíduo e sociedade, de forma a apreender adequadamente suas legalidades de fundo, bem como sua totalidade processual.  Ou ainda, qual seria a correta apreensão dos elementos objetivos que conformam a subjetividade dos indivíduos, e qual sua relação com a dinâmica pulsional descortinada por Freud.

Não se deixa de se problematizar também a importância da esfera do cotidiano e suas limitações e possibilidades para a tomada de consciência e para a práxis emancipatória do indivíduo.

Ontologia e teoria de Lukács

Buscar-se-á, portanto, por meio da Ontologia Lukaciana, trazer elementos de uma exposição crítica, que por sua robustez, não tome momentos da totalidade do ser social como a totalidade em si. Afastam-se, assim, análises de correntes pós modernas que fetichizam determinados momentos da realidade, como a competitividade, ou a dominação pelo tempo, e os consequentes transtornos mentais por estes implicados.

Encerram com isto, as possibilidades de transformações radicais nesta realidade, de forma a restituírem apenas possibilidades adaptativas mais ou menos saudáveis à objetividade posta. Com a apropriação da perspectiva crítica-ontológica ampliam-se, assim, as análises de causalidade histórica, bem como possibilidades imanentes de superação das formas sociais existentes. Isso, por meio de transformações estruturais, distanciando-se de saídas voluntaristas, de caráter individual ou coletivo (já apresentadas de maneira crítica por Freud, em sua obra “Mal Estar na Civilização”. como a saída religiosa, ou o isolamento)

A consciência estranha

A tomada do todo pela parte, em sua consciência estranhada tem sido o caminho continuamente perpetuado pela psicanálise, por seu próprio objeto de estudo, a subjetividade do indivíduo. Lado outro, os caminhos “sociológicos” desta relação, também pecam por não seguirem caminhos de uma crítica adequada da ontologia do ser social.

Toma-se como exemplo deste último caso o paralelo esboçado por Deleuze e Guattari entre “produção desejante” e “produção social”. Enquanto, estes autores desdobraram importantes apontamentos a partir deste paralelismo, será defendido no presente trabalho que é a especificidade ontológica de cada uma destas esferas de produção. E, ainda, de reprodução – que permite elaborar adequadamente o estatuto da subjetividade humana a partir da concretude histórica do ser social.

Assim, com a correta apreensão ontológica (segundo Lukács) destes processos, será possível compreender como – ao passo que a produção social apresenta seu “registro superficial” a partir de operações ligadas ao trabalho assalariado e a propriedade privada – a produção desejante se dá a partir de fluxos.

Fluxos que não somente perpassam o indivíduo e os liga a outras máquinas desejantes, ou a determinados processos produtivos, mas insere este indivíduo concretamente em determinada divisão do trabalho. Sendo que, em determinada linguagem, a inserção ideológica delimita o campo de resposta social para a atividade sensível.

Em linhas gerais, portanto, a despeito de ambos os processos produtivos passarem por um processo de inversão do tipo “sujeito predicado”, que acaba por gerar um fetichismo encobridor de sua essência em seu registro superficial, tratam-se de processos ontologicamente distintos. E, que somente podem ser corretamente apreendidos em suas especificidades.

A Ontologia de Lukács

Obviamente, tais questões não poderão ser tratadas com a devida profundidade neste modesto texto. Pois, ele tratará de iniciar este tipo de diálogo visivelmente frutífero, tão somente apresentando os apontamentos gerais da Ontologia de Lukács, e suas implicações decisivas para a correta apreensão da produção da subjetividade do ser social.

Para isso, portanto, serão inicialmente apresentadas as determinações mais gerais e os problemas centrais que permeiam o desenvolvimento do ser social na Ontologia de Lukács naquilo que se refere ao momento da subjetividade na reprodução do ser social. A tomar como pontos de análise em especial a gênese e reprodução dos complexos do trabalho, da linguagem, da ideologia e do estranhamento.

A partir disso, será exposto ainda o problema ético delineado por Gyorgy Lukács, ainda que de modo inacabado. Assim, como complemento essencial à adequada compreensão de sua obra.

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    Tendo em vista os objetivos propostos, não serão esgotados os pontos e problemas abordados pelo Autor Húngaro em sua obra maior. Mas, tão somente serão delineados aqueles tidos como decisivos para lançar bases a seu singular entendimento acerca da produção da subjetividade do ser social.

    Da Gênese à Reprodução do Ser Social: Trabalho, linguagem e Ideologia na produção da subjetividade

    Com o fim de iniciar a exposição acerca do tema, tentaremos nos aproximar da forma pela qual, segundo Lukács, o salto ontológico da humanidade (salto qualitativo do devir homem do homem) implica na gênese de formas de subjetividade e consciência. E, como estas se transformam a partir do “afastamento das barreiras naturais”, por meio da progressiva complexificação da sociabilidade. Serão tratados aqui os principais complexos analisados em profundidade por Lukács: o trabalho, a linguagem e a ideologia.

    Para fazê-lo, Lukács assim apresenta o método utilizado neste primeiro momento:

    (…) expor a estrutura originária que se constitui no ponto de partida para as formas posteriores e, simultaneamente, tornar visíveis as diferenças qualitativas que, no curso do desenvolvimento social posterior, se apresentam de maneira espontaneamente inevitável e modificam a estrutura originária do fenômeno de modo necessário, inclusive de maneira decisiva em algumas determinações importantes. (Lukács, 2013, p.100)

    Deste modo, o autor destaca as principais determinações ontológicas destes complexos, a partir de suas “estruturas originárias”, historicamente verificadas. E que, em suas especificidades, no “curso do desenvolvimento social posterior” apresentam “diferenças qualitativas”, “modificam a estrutura originária do fenômeno de modo necessário”.

    Este destaque é relevante, para afastar críticas aos estudos de Lukács que, apressadamente, apontam que o autor transpõe sem mediações o conteúdo destes complexos. Como o trabalho, para qualquer tempo histórico, vez que suas determinações inclusive estruturais são cambiantes.

    O Trabalho, por Lukács

    Lukács toma por central em sua obra o trabalho como complexo por excelência que historicamente inaugura um novo tipo de existência na natureza: o ser social. Assim, o ser social seria o terceiro tipo de ser perceptível na natureza, de maior complexidade que os demais: ser inorgânico, e ser orgânico, mas destes vitalmente dependentes.

    A justificativa para tal forma de aproximação da realidade reside no fato que “(…) todo fenômeno social pressupõe, de modo imediato ou mediato, eventualmente até remotamente mediato, o trabalho com todas as suas consequências ontológicas.” (Lukács, 2013, p.118)

    Nossas últimas exposições mostraram como nos pores do processo de trabalho já estão contidos in nuce, nos seus traços mais gerais. E, também mais decisivos – problemas que em estágios superiores do desenvolvimento humano se apresentam de forma mais generalizada, desmaterializada, sutil e abstrata e que por isso aparecem depois como os temas centrais da filosofia.

    É por isso que julgamos correto ver no trabalho o modelo de toda práxis social, de qualquer conduta social ativa. (Lukács, 2013, p.62)

    O trabalho é então tomado como “protoforma” deste ser social, por ser o complexo que contém já em suas primeiras formas de existência, todas as determinações de caráter irrevogável. E, que, como pressupostos deste tipo de ser, o diferenciam dos seres orgânicos e inorgânicos.

    Lukács; o trabalho e suas determinações

    Assim, em sua forma mais basilar, o trabalho já contém diversas determinações que irão, em níveis de desenvolvimento social de maior complexidade, compor querelas filosóficas das mais diversas. No entanto, se encontram ontologicamente ali resolvidas, em sua própria efetividade.

    A primeira destas questões é que o ser social, por meio do trabalho, age teleologicamente, ou seja, põe finalidade em sua atividade, intervindo em cadeias causais. E, assim, transformando o ambiente natural.

    Já neste ponto, está colocada, por exemplo, a longa discussão filosófica que milhares de anos depois iria colocar como irreconciliáveis, do ponto de vista gnosiológico, teleologia e causalidade. O autor aprofunda esta e diversas outras questões em sua obra.

    Noção de Sujeito

    A noção de sujeito, e, como será visto, de sua ‘autoprodução”, apresenta-se na obra de Lukács já no que diz respeito justamente a este por teleológico, ou por dos fins, no processo de trabalho:

    Mas, além disso – e naturalmente causando mudanças análogas de função –, essa constituição estrutural do trabalho retroage também sobre o sujeito que trabalha. E, para compreender corretamente as mudanças que daí derivam para o sujeito, é preciso partir da situação objetiva já descrita. Isto é, do fato de que ele é o iniciador do pôr do fim, da transformação das cadeias causais espelhadas em cadeias causais postas e da realização de todos esses pores no processo de trabalho.

    Trata-se, pois, de toda uma série de pores diversos, teóricos e práticos, estabelecidos pelo sujeito. A característica comum a todos esses pores, quando vistos como atos de um sujeito, é que, dado o distanciamento necessariamente implicado em todo ato de pôr, aquilo que pode ser colhido imediatamente, por instinto, é sempre substituído ou pelo menos dominado por atos de consciência. (Lukács, 2013, p.61)

    Várias são as derivações passíveis de destaque a partir destes apontamentos. Em primeiro plano, ante os objetivos propostos neste texto, ressaltamos que para realizar o por dos fins no processo de trabalho, sejam estes “teóricos” ou “práticos”, há um necessário “distaciamento”. E assim se configurando em uma relação sujeito e objeto.

    O “domínio por atos de consciência”

    Surge, então, uma irrevogável substituição da atividade instintiva do homem pelo “domínio por atos de consciência”, de forma que a “constituição estrutural do trabalho” retroage efetivamente sobre o “sujeito que trabalha”. Há, portanto, uma inafastável relação entre ato de trabalho, por teleológico e domínio dos instintos por atos de consciência.

    Delineia-se, já neste ponto, portanto, uma especificação de suma importância para o intento deste trabalho, que é a irrevogável dependência recíproca dos momentos da subjetividade e da objetividade. O ser somente ganha existência efetiva, portanto, em seu momento de objetividade, ao passo que, esta perpassa momentos subjetivos de apreensão da realidade, e intervenção em cadeias causais a partir de fins postos com maior ou menor consciência.

    As duas faces da moeda, não podem ser tratadas, portanto, indissociavelmente.

    “Comportamento concreto”, por Lukács

    Nestes aspectos “ontogenéticos” do trabalho, que ainda se apresenta de modo primário, ao tratar do “dever-ser” no processo do trabalho, Lukács aponta para uma predominância do momento objetivo, o “comportamento concreto”. Isso, sobre o subjetivo, “o que acontece no interior do próprio sujeito”, na constituição da objetividade do trabalho:

    A essência ontológica do dever-ser no trabalho dirige-se, certamente, ao sujeito que trabalha e determina não apenas seu comportamento no trabalho, mas também seu comportamento em relação a si mesmo enquanto sujeito do processo de trabalho. Este, no entanto, como já acentuamos expressamente ao fazer tais considerações, é um processo entre o homem e a natureza, é o fundamento ontológico do metabolismo entre homem e natureza. Essa constituição do fim, do objeto, dos meios, determina também a essência do comportamento subjetivo. E, sem dúvida, também do ponto de vista do sujeito um trabalho só pode ter êxito quando realizado com base numa intensa objetividade, e desse modo a subjetividade, nesse processo, tem que desempenhar um papel produtivamente auxiliar. (Lukács, 2013, p.78)

    Em seguida, o Dever-ser:

    O autodomínio do homem, que aparece pela primeira vez no trabalho como efeito necessário do dever-ser, o crescente domínio de sua compreensão sobre as suas inclinações e hábitos etc. espontaneamente biológicos são regulados e orientados pela objetividade desse processo; esta, segundo sua essência, se funda na própria existência natural do objeto, dos meios etc. do trabalho. Se quisermos conceber corretamente o lado do dever-ser que, no trabalho, age sobre o sujeito, modificando-o, é preciso partir dessa objetividade como reguladora. (Lukács, 2013, p.78)

    A objetividade do dever

    Destarte, para o trabalho enquanto protoforma (nível mais simples), a objetividade do dever ser é seu elemento decisivo. Já para o sujeito, este desperta a possibilidade de domínio sobre os afetos, essencial para práxis mais desenvolvidas.

    Nestas formas “iniciais do metabolismo entre homem e natureza”, a ausência de mediações sociais mais complexas, a subjetividade consitui-se como auxiliar de uma “intensa objetividade” – necessária para o êxito no processo de trabalho. E, também, necessária para a sobrevivência direta do indivíduo.

    Há, portanto, uma preponderância dos aspectos comportamentais do sujeito, que retroagem sobre “seu comportamento em relação a si mesmo enquanto sujeito do processo de trabalho”. Isso, desenvolvendo aspectos subjetivos que poderão  atuar em outras esferas da vida do sujeito e em “formas de práxis mais desenvolvidas”.

    Trata-se, portanto, de uma progressiva conquista de um domínio sobre a natureza, que remete a um domínio sobre si mesmo e seus aspectos instintivos.

    “Controle de afetos”, Lukács

    Ainda sobre o trabalho em suas formas primordiais, cumpre destacar para os fins deste texto que visa apreender a produção da subjetividade – que Lukács ressalta que este aparece necessariamente como um “controle de afetos”.

    Citação:

    “Esse distanciamento tem como outra importante consequência o fato de que o trabalhador é obrigado a dominar conscientemente os seus afetos. Num determinado momento ele pode sentir-se cansado, mas, se a interrupção for nociva para o trabalho, ele continuará; na caça,  por exemplo, pode ser tomado pelo medo, no entanto permanecerá no seu posto e aceitará lutar com animais fortes e perigosos etc. (É preciso repetir que estamos falando do trabalho enquanto produtor de valores de uso, que é a sua forma inicial.

    Só nas sociedades mais complexas, de classes, essa conduta originária se entrecruza com outros motivos, surgidos do ser social, por exemplo a sabotagem do trabalho. No entanto, também nesse caso permanece como orientação básica o domínio do consciente sobre o instintivo.) É evidente que, desse modo, entram na vida humana tipos de comportamentos que se tornam por excelência decisivos para o devir homem do homem. É reconhecido universalmente que o domínio do homem sobre os próprios instintos, afetos etc. constitui o problema fundamental de qualquer disposição moral, desde os costumes e tradições até as formas mais elevadas da ética.

    Os problemas dos graus superiores só poderão ser discutidos mais adiante, e em termos realmente adequados apenas na Ética; mas é decisivamente importante, para a ontologia do ser social, que eles já compareçam nos estágios mais iniciais do trabalho e, além disso, na forma absolutamente distintiva do domínio consciente sobre os afetos, etc.” (Lukács, 2013, p.61)

    Este apontamento é fundamental para a compreensão de todo o objetivo deste trabalho, qual seja estabelecer a correlação entre os fundamentos centrais da produção da subjetividade. E, o grande problema de Lukács em sua maturidade é a questão da ética, e do gênero humano.

    “Domínio conscientemente sobre seus afetos” (Lukács)

    Observa-se, portanto, que este problema guarda suas formas primordiais já no próprio trabalho, eis que surge como necessário ao indivíduo o “domínio conscientemente sobre seus afetos”. Ainda, o “domínio do consciente sobre o instintivo”, como “comportamentos que se tornam por excelência decisivos para o devir homem do homem”.

    Ou seja, como fato constitutivo do ser social, mas com implicações diretas ao “problema fundamental de qualquer disposição moral. E, até mesmo, “formas mais elevadas da ética”, remetendo necessariamente ao devir homem do homem enquanto gênero não mais mudo. Estes aspectos serão retomados adiante.

    Por momento, cumpre destacar que este processo está diretamente ligado à própria crescente sociabilidade do ser social + tendo em vista a progressiva complexidade das mediações sociais que irão atuar sobre a relação do ser humano com os aspectos naturais do ambiente. Lukács irá se referir assim à “autocriação do homem enquanto homem”, que implica o “afastamento das barreiras naturais” e ingressa o homem “num novo ser, autofundado”, o ser social.

    O trabalho em seu nível primordial

    Com relação a este tema, por diversas vezes retomado pelo autor em sua obra, que se refere diretamente ao trabalho ainda em seu nível mais priomorial, nota-se ainda que o necessário domínio do homem sobre afetos e instintos, é observável em sentido bastante amplo. E, por isso suas diversas implicações.

    Citação – Lukács:

    “Esse domínio da consciência do homem sobre o seu próprio corpo, que também se estende a uma parte da esfera da consciência, aos hábitos, aos instintos, aos afetos, é uma exigência elementar do trabalho mais primitivo e deve, pois, marcar profundamente as representações que o homem faz de si mesmo, uma vez que exige, para consigo mesmo, uma relação qualitativamente diferente, inteiramente heterogênea daquela que corresponde à condição animal, e uma vez que tais exigências são postas por todo tipo de trabalho. (Lukács, 2013, p.95)

    Interessante notar, deste modo, que a condição da autoconsciência se dá ainda “sobre o seu próprio corpo”, e que possui reflexos diretos nas “representações que o homem faz de si mesmo”. Tais apontamentos são de suma relevância quando se procura analisar, por exemplo, vertentes da psicanálise que afastam completamente do âmbito de constituição do sujeito sua atividade sensível, de forma a constituir. Como, por exemplo, uma completa autonomia da linguagem na produção deste sujeito, em oposição ao que se depreende a partir da perspectiva Lukaciana.

    Para compreender adequadamente tais questões, no entanto, é necessário avançar na ontologia de Lukács. Ainda, estudar como estas questões se apresentam em formas mais desenvolvidas de trabalho, em formas mais desenvolvidas da práxis social, em que surge efetivamente a divisão social do trabalho. Surgem também as formas de cooperação, e finalmente a divisão desta em classes.

    Práxis social, por Lukács

    Mais importante, porém, é deixar claro o que distingue o trabalho nesse sentido das formas mais desenvolvidas da práxis social. Nesse sentido originário e mais restrito, o trabalho é um processo entre atividade humana e natureza: seus atos estão orientados para a transformação de objetos naturais em valores de uso.

    Nas formas ulteriores e mais desenvolvidas da práxis social, destaca-se em primeiro plano a ação sobre outros homens, cujo objetivo é, em última instância – mas somente em última instância –, uma mediação para a produção de valores de uso. Também nesse caso o fundamento ontológico-estrutural é constituído pelos pores teleológicos e pelas cadeias causais que eles põem em movimento.

    No entanto, o conteúdo essencial do pôr teleológico nesse momento – falando em termos inteiramente gerais e abstratos – é a tentativa de induzir outra pessoa (ou grupo de pessoas) a realizar, por sua parte, pores teleológicos concretos. Esse problema aparece logo que o trabalho se torna social, no sentido de que depende da cooperação de mais pessoas, independente do fato de que já esteja presente o problema do valor de troca ou que a cooperação tenha apenas como objetivo os valores de uso.

    Por isso, esta segunda forma de pôr teleológico, no qual o fim posto é imediatamente um pôr do fim por outros homens, já pode existir em estágios muito iniciais. (Lukács, 2013, p.63)

    Surge, portanto, um diferente tipo de pôr teleológico, marcado por seu “caráter secundário”, eis que marcado pela “ação sobre outros homens”. E, que não imediatamente, teria por objetivo realizar pores sobre as cadeias causais da natureza e a produção de valores de uso, mas o objetiva tão somente “em última instância”.

    “Conteúdo essencial do pôr”

    O “conteúdo essencial do pôr” volta-se, destarte, a “induzir outra pessoa ou grupo a realizar”, “por sua parte”, “pores teleológicos concretos”. Tal formulação é imprescindível para compreensão que se objetiva alcançar por meio do presente trabalho. Isto porque, esta revela a determinação essencial que irá esclarecer as possíveis articulações, no nível de sua concretude histórica, entre os principais complexos tratados por Lukács em sua obra:

    • o trabalho,
    • a linguagem,
    • a ideologia,
    • o estranhamento.

    O que salta aos olhos logo neste primeiro contato com o tema, é que esta indução do outro à realização de pores teleológicos concretos irá pressupor diversas formas de dominação. Coloca-se com isto, a problematização acerca de suas diversas formas verificáveis ao longo da história, como por exemplo a força bruta, o medo, os  desejos (ontologias mitológicas), o Direito, e a própria coerção econômica (em estágios mais avançados).

    Analisar tais aspectos sobre as implicações para a produção da subjetividade certamente é campo amplo de estudo, que aqui apenas lançaremos suas bases mais gerais.

    A resposta prática

    Não se trata de uma simples forma de adaptação, mas de uma resposta prática que sempre objetiva algo potencialmente novo na natureza, produto este que resulta em algo que remete para além do próprio indivíduo que trabalha. Assim, fixando um momento genérico em constante desenvolvimento.

    É o caso, por exemplo, das próprias ferramentas de trabalho, que são perpassadas e aprimoradas com o passar das diversas gerações, diferenciando claramente o ser social dos seres orgânicos.

    O que se verifica, já a partir destes dois pontos, quais sejam o momento genérico e a objetivação, portanto, é que o trabalho – ao remeter a objetivação do indivíduo para a generidade – remete-se para além de si mesmo, viabilizando a reprodução social.

    As implicações neste ponto, dizem respeito tanto ao indivíduo, quanto à coletividade, ou nas palavras de Lukács, à “consciência de um grupo humano” (p. 63). Observa-se como a riqueza do desenvolvimento do autor se dá justamente em sua capacidade de articular, com as devidas mediações, indivíduo em sua atividade sensível, coletividade, e gênero humano, sempre em seu sentido histórico concreto.

    “Formas desenvolvidas da práxis social”

    Isto porque Lukács compreende que o desenvolvimento das “formas mais desenvolvidas da práxis social” não suprime jamais as determinações essenciais da protoforma do trabalho:

    (…) um primeiro olhar a esse nível social mais elevado do trabalho já nos mostra que este, no sentido por nós referido, constitui a sua insuprimível base real, é o fim último da cadeia intermediária, eventualmente bastante articulada, de pores teleológicos. (Lukács, 2013, p.63)

    Este entendimento é de suma relevância, tendo em vista que Lukács explora em seu texto a necessária inter relação entre as diferentes esferas e momentos do ser social para adequada apreensão da efetividade do ser social. Ou seja, em formas mais desenvolvidas da práxis, com as cadeias causais colocadas em curso a partir de pores teleológicos cada vez mais articulados. Esta relação primordial, ganha em complexidade, e só pode ser corretamente compreendida em seu desenvolvimento histórico por meio da leitura de todos os momentos atuando em conjunto: o metabolismo do homem com a natureza, a linguagem, a ideologia, o direito, a política, etc.

    Tomar qualquer um destes momentos como produtor por si só da realidade, leva, inevitavelmente, a um falseamento da compreensão da realidade efetiva, um obscurecimento dos mecanismos da reprodução social.

    O processo de sociabilização, segundo Lukács

    O que se observa, portanto, é uma crescente “sociabilização” das formas sociais, cada vez mais afastada das condições naturais, jamais, entretanto suprimidas:

    As diferenças decisivas surgem porque o objeto e o meio de realização do pôr teleológico se tornam sempre mais sociais. Isso não significa, como sabemos, que a base natural desapareça; apenas que aquela orientação exclusiva para a natureza, característica do trabalho na forma por nós tratada, é substituída por intenções sempre mais sociais e, ao mesmo tempo, voltadas para mais objetos.  (Lukács, 2013, p.110)

    Estas mediações sociais que ganham em complexidade, de forma que o os pores teleológicos antes voltados tão somente para as mediações direta com os processos da natureza, passam também a se colocar ante outros indivíduos. Busca-se com estes pores “secundários” de fato a “autotransformação do sujeito” adquirindo um caráter de “dever-ser”.

    Este, no entanto, neste ponto específico se distingue qualitativamente das formas de dever-ser que se apresentaram no processo de trabalho imediato. Lukács aponta em linhas gerais as implicações éticas de tal determinação, que apresenta a “tarefa do futuro, teleologicamente posta o princípio determinante da práxis a tais atos”(LUKÁCS, 2013, p.78).

    “Papel qualitativamente”

    Estes pores teleológicos tidos como “secundários” instauram, portanto, um “papel qualitativamente” diferente frente àqueles apresentados nos níveis mais simples do trabalho. Isto porque esta mediação social apresenta como objeto a própria “autotransformação“ dos sujeitos, a partir de um “dever-ser” de natureza qualitativamente distinta.

    Tal entendimento é essencial para se compreender os complexos da linguagem e da ideologia, a serem apresentados a seguir. Nota-se, deste modo, que a transformação do próprio sujeito se torna objeto de pores teleológicos. A transformação/conformação da subjetividade humana passa então a estar orientada para fins oriundos de interesses sociais, mediados por configurações de classe.

    O essencial a se compreender neste ponto é que a sociedade, em especial nestas formas de práxis social mais elevada, se conforma como “médium ineliminável da mediação entre homem e natureza”. Ainda, mediando sua própria constituição psicológica, eis que “o próprio homem também se modifica ao modificar sua relação com a natureza que o cerca”. 

    Com efeito, nesse caso, tudo se dá de modo não imediato, mas socialmente regulado; surgem novas formas de trabalho e, destas, novas formas da divisão do trabalho, que, por sua vez, têm como consequência novas formas nas relações práticas entre os homens, que então, como vimos na análise do trabalho, retroagem sobre a constituição dos próprios homens. Porém, é preciso ver claramente que as modificações que assim se efetuam nos próprios homens possuem um caráter precipuamente social; na medida em que essas modificações têm um efeito biológico (e, em correspondência, psicológico), ela comportam adaptações da existência física do homem à sua condição social recém-alcançada. (Lukács, 2013, p. 150)

    A complexidade da práxis, por Lukács

    Neste estágio, em que a complexidade da práxis social se torna progressivamente crescente, novos complexos sociais vão se estruturando,como as “novas formas da divisão do trabalho”. Ainda, as “novas formas nas relações práticas entre os homens”, sendo inevitável que se transforma a “constituição dos próprios homens”, marcadas não mais por um caráter estritamente adaptativo, mas social, sem, no entanto, suprimir os aspectos instintivos e biológicos do ser humano.

    Assim, sintetiza-se este tópico, de relevância essencial para o presente texto, por se tratar do complexo que Lukács apresenta como protoforma do ser social. Parte-se, nos níveis mais primitivos do ser social de um “dever ser” oriundo do metabolismo com a natureza de modo mais imediato.

    Seu caráter biológico adaptativo delimita uma produção da subjetividade marcada pelo:

    1. controle de afetos
    2. domínio de atos de consciência sobre o ato instintivo
    3.  preponderância do aspecto comportamental voltado para a objetividade
    4. autoprodução do sujeito
    5. fixação do momento da generidade

    Teleológicos secundários

    Com a progressiva complexificação das formas de práxis social, surgem pores teleológicos secundários, que instauram um “dever-ser” qualitativamente diferente, voltado à autotransformação dos sujeitos. O metabolismo entre homem e natureza, inicialmente marcadamente instintivo biológico passa a concorrer com elementos sociais, sendo a sociedade por meio de suas diferentes esferas e complexos, um “médium ineliminável” deste processo.

    Entenderemos agora, o papel da Linguagem e da Ideologia neste processo destacado, e seus aspectos essenciais para a produção da subjetividade.

     

    LINGUAGEM EM LUKÁKS

    Pari passo com o trabalho, tem-se ainda a linguagem como complexo que inaugura a existência histórica do ser social. Este caráter de salto ontológico é assim destacado pelo Autor Húngaro:

    Como ocorre com o trabalho, também com a linguagem se consumou um salto do ser natural para o social; também aqui esse salto é um processo lento, cujos primeiros começos permanecerão desconhecidos para sempre, ao passo que, com a ajuda do desenvolvimento das ferramentas, podemos estudar e, dentro de certos limites, abarcar em seu conjunto a orientação de desenvolvimento, com um conhecimento post festum. (Lukács, 2013, p.95)

    Entretanto, para mergulhar-se no modo pelo qual Lukács trata deste complexo do ser social, é imprescindível compreender que este veio estabelecer o que denominou como “prioridade ontológica” do trabalho. Isso, frente à linguagem, sendo aquele atuante de modo precedente a esta, ainda que não de forma temporalmente identificável.

    “Primeiros começos…”

    Ao afirmar que os “primeiros começos permanecerão desconhecidos para sempre”, Lukács destaca que o seu trato não se refere à sucessão histórica dos complexos a partir de uma perspectiva historiográfica. Mas, que, esta prioridade do “trabalho” se deve justamente a este ser, como já afirmado neste texto, uma “protoforma” do ser social. Ou seja, possuir em si todos aqueles elementos decisivos para inauguração de uma nova forma de ser na natureza, qual seja o Ser Social.

    Assim que, demonstrar-se-á que a atividade em si mesma, ou o trabalho produtor de valores de uso, precede o momento de fixação genérica e comunicação que é a própria linguagem. É justamente neste ponto que o Autor Húngaro se distancia dos filósofos da linguagem, e de importantes escolas da psicanálise – que conferem prioridade a este complexo social na conformação da realidade.

    Nota-se que não se trata de negar uma efetividade da linguagem na produção da realidade. Mas, que, não pode ser pensada de modo hipostasiado, sem as devidas mediações referentes à especificidade da atividade humana em dado momento histórico, o metabolismo do homem com a natureza, e suas implicações, como a cooperação e a divisão social do trabalho.

    A linguagem, portanto, não produz a realidade efetiva, mas o faz “a atividade dos homens mediada pela linguagem”. Pensar diferente seria tomar a clássica inversão “sujeito-predicado” amplamente criticada por Marx em sua obra.

    Distanciamento sujeito X objeto

    O já destacado distanciamento entre sujeito e objeto, que surge com o complexo do Trabalho, e o surgimento ontológico da linguagem. E que se separa da comunicação existente em outras formas de ser (animais superiores), ganha características próprias neste ponto:

    (…) só o distanciamento intelectual dos objetos por meio da linguagem é capaz de fazer com que o distanciamento real que surgiu no trabalho seja comunicável e fixado como patrimônio comum de uma sociedade. (Lukács, 2013, p.94)

    Este distanciamento “real” entre sujeito e objeto que se torna possível no processo do trabalho passa, por meio da linguagem, a ser comunicável. A fixação “como patrimônio comum de uma sociedade” constitui, deste modo o momento da generidade. Transita-se, deste modo, do ato concreto, e particular, para a fixação para o gênero humano.

    Falaremos sobre ela [a linguagem] em contextos posteriores; deve-se ressaltar agora que constitui um instrumento para a fixação daquilo que já se conhece e para expressão da essência dos objetos existentes numa multiplicidade cada vez mais evidente, um instrumento para a comunicação de comportamentos humanos múltiplos e cambiantes em relação a esses objetos, em contraposição aos sinais desenvolvidos com certa exatidão que os animais emitem uns para os outros, pois os animais transmitem relações fixas constantemente reiteradas numa determinada constelação vital. (Lukács, 2013, p.119)

    Objetos existentes, segundo Lukács

    Neste sentido, a linguagem fixa algo que a precede, eis que trata-se daquilo “que já se conhece”, e expressa “objetos existentes”. Ao mesmo tempo, o faz com referência a comportamentos do ser social, e por isso tidos como “múltiplos e cambiantes” se comparados a univocidade do comportamento animal.

    (…) a linguagem se desenvolverá de modo ininterrupto simultaneamente com o desenvolvimento de trabalho, divisão do trabalho e cooperação, tornando-se cada vez mais rica, maleável, diferenciada etc., para que os novos objetos e as novas relações que forem surgindo possam ser comunicados. O domínio crescente do homem sobre a natureza se expressa diretamente, portanto, também pela quantidade de objetos e relações que ele é capaz de nomear. (Lukács, 2013, p.120)

    O autor destaca a ineliminável relação entre as formas efetivas de práxis social e a linguagem, acompanhando sua progressiva complexidade, já ressaltada no último tópico do presente texto.

    Citação – Lukács

    “Ficou claro agora que só com a linguagem surge, no sentido subjetivo, um órgão, no sentido objetivo, um medium, um complexo, com o auxílio do qual uma reprodução pode efetuar-se em circunstâncias tão radicalmente modificadas: como preservação da continuidade do gênero em meio à mudança ininterrupta de todos os momentos, tanto subjetivos como objetivos, da reprodução. Vimos que, para isso, é indispensável uma transposição dessas mudanças para a consciência, mais precisamente, no duplo sentido de preservar e aperfeiçoar, sendo que esses dois momentos necessariamente confluem no processo de reprodução, complementando-se mutuamente.

    Ainda que muitas vezes de modo contraditório: a preservação pode até gerar tendências de fixação definitiva do que foi conquistado em dado momento e de fato o faz muitas vezes no curso da história, mas a orientação principal de sua função consiste mesmo em converter o que foi adquirido no passado em base para um desenvolvimento subsequente, para uma solução de novas questões postas pela sociedade. Essa duplicidade da função de preservar não é, contudo, algo precipuamente atinente à consciência; é o próprio desenvolvimento objetivo, socioeconômico da sociedade que confronta os seus membros com novas decisões alternativas ou encerra seu horizonte no que já foi alcançado.” (Lukács, 2013, p.157)

    A função social dupla para Lukács

    A síntese dessas determinações ontológicas da linguagem pode ser identificada em seu estatuto enquanto “médium” que apresenta função social dupla, qual seja a “preservação da continuidade do gênero em meio à mudança ininterrupta de todos os momentos”. Tal “transposição dessas mudanças para a consciência” se dá ao mesmo tempo preservando momentos genéricos da práxis social e registrando a “base para um desenvolvimento subsequente”, ou seja, da transformação dessa própria práxis que preserva.

    O que de mais importante cumpre reforçar neste ponto é que a práxis social em si não é determinada pela consciência, apesar do registro, ou espelhamento que nesta se dá. “É o próprio desenvolvimento objetivo, socioeconômico da sociedade que confronta os seus membros com novas decisões alternativas”. Ou seja, a práxis é o próprio critério deste processo, que se verifica a partir da efetividade da atividade sensível e da objetividade com o que os indivíduos enfrentam as questões que lhes são postas. Este é o “duplo movimento direções contrapostas” destacado pelo autor.

    Existe, deste modo uma dinâmica de fixação e superação da linguagem, que surge como complexo vivo, e independente da vontade particular dos indivíduos. Lukács neste trecho destaca a predominância do momento da “universalidade da linguagem”, que tem seus fundamentos na própria práxis social dos indivíduos, que culmina, como visto, na constituição do homem como ser genérico.

    A compreensão da linguagem

    A linguagem proporciona, deste modo, que estes estágios do desenvolvimento humano sejam “preservados subjetivamente”, na consciência dos homens, garantindo a continuidade do processo, um “ininterrupto progredir para além”

    A compreensão da linguagem em sua dimensão ontológica perpassa, deste modo, a necessária predominância do momento da generidade. Trata-se do modo pelo qual se preserva subjetivamente os momentos da práxis na consciência dos homens, mas sempre na dinâmica dupla já destacada, em um verdadeiro “movimento rumo ao ser-para-si da generidade”.

    Este “ininterrupto progredir para além”, exige que a linguagem se apresente como meio, que garante este fluxo historicamente permanente entre os estágios de desenvolvimento social:

    Contudo, para poder cumprir essa sua função social, a linguagem deve formar um complexo – relativamente – fechado em si mesmo. A linguagem está em condições de satisfazer essa necessidade social porque não apenas é capaz de transformar a consciência dinâmica e progressiva de todo o processo social de reprodução em portadora da relação viva entre homens, mas também porque acolhe em si todas as manifestações de vida dos homens e lhes confere uma figura passível de comunicação, ou seja, só porque ela constitui um complexo tão total, abrangente, sólido e sempre dinâmico quanto a própria realidade social que ela espelha e torna comunicável. Em última análise, portanto, por formar um complexo tão total e dinâmico quanto o da própria realidade por ela retratada. (Lukács, 2013, p.163)

    A linguagem como “complexo total, por Lukács

    A linguagem, deve, deste modo, ser um “complexo total”, dotado de grande autonomia pois somente assim é capaz de acolher em si “todas as manifestações de vida dos homens” e lhes conferir uma “figura passível de comunicação”. Tal abrangência e autonomia, no entanto, faz com que este vínculo entre linguagem e “manifestações de vida dos homens” apareça, por vezes, em uma relação invertida do tipo “sujeito-predicado”. Isso, como se fosse a linguagem que constituísse, por si só, autonomamente, as “manifestações de vida dos homens”, e não registrasse seu movimento real, tornando-o comunicável.

    Não se trata de negar a autonomia da linguagem, e sua influenciação na atividade sensível dos indivíduos, mas tão somente demarcar um posicionamento crítico quanto à sua total autonomia frente aos demais momentos da reprodução social. A linguagem não pode, deste modo, ser pensada de modo apartado dos demais complexos, mas em sua necessária e histórica inter relação concreta.

    Os cuidados com esta apreensão ontologicamente falsa da linguagem é destacada pelo Autor Húngaro:

    “Mas o conjunto do processo permanece espontâneo, porque a direção do seu movimento, seus respectivos estágios etc. são determinados, em última análise, pelo desenvolvimento social, do qual a própria linguagem é imagem, fixação no plano da consciência”.

    Essa noção reforça novamente a generidade da linguagem: das criações linguísticas singulares, das rejeições de criações linguísticas etc., só ingressa no complexo dinâmico da linguagem aquilo que é compatível com o estado atual da generidade, deslocando-o de sua mudez na simples sensação pré-linguística para a claridade da generidade.” (Lukács, 2013, p.164)

    “Imagem, fixação no plano da consciência”

    É a predominância da atividade sensível, das manifestações de vida, que configura a linguagem como Lukács “imagem, fixação no plano da consciência”, de modo que esta não pode se sustentar se estiver além do próprio estágio de desenvolvimento social. E eis que “só ingressa no complexo dinâmico da linguagem aquilo que é compatível com o estado atual da generidade.”

    A seguinte passagem sintetiza as três principais determinações ontológicas da linguagem, que ressaltam sua especificidade. Ainda, expõem sua funcionalidade universalidade no âmbito da práxis humana, até mesmo superior, em certa dimensão, ao trabalho.

    Citação:

    “A linguagem como complexo dentro do complexo “ser social” possui, como mostrou a totalidade dos nossos raciocínios, em primeiro lugar, um caráter universal, que se expressa no fato de que, para cada área, para cada complexo do ser social, ela deve ser órgão e medium da continuidade do desenvolvimento, da preservação e da superação. Mais adiante, veremos que esse é um traço característico específico da linguagem enquanto complexo social, mas de modo algum o de todas as formações dessa espécie.

    Em segundo lugar – e também isto está bem estreitamente ligado com essa universalidade –, a linguagem medeia tanto o metabolismo da sociedade com a natureza como o intercâmbio puramente intrassocial dos homens, ao passo que numerosos outros complexos têm sua base operativa em apenas uma dessas áreas; até mesmo uma forma de atividade tão universal quanto a do trabalho refere-se, em sentido próprio, ao metabolismo com a natureza.

    Nem mesmo o extremo desenvolvimento da técnica anula esse caráter ontológico do trabalho, pois, visto dessa maneira, dá no mesmo se o trabalho é manual ou maquinal (inclusive automatizado), se sua intenção está direcionada diretamente para fenômenos naturais concretos ou para o aproveitamento de legalidades naturais. Em terceiro lugar, o processo de reprodução da linguagem, como já foi mostrado, é de natureza predominantemente espontânea, isto é, ele se realiza sem que a divisão social do trabalho isole a partir de si certo grupo humano cuja existência social se baseie no funcionamento e na reprodução dessa área, cuja posição na divisão social do trabalho experimenta certa institucionalização.” (Lukács, 2013,p.167)

    A linguagem como meio (Lukács)

    O que se destaca, no tocando às finalidades do presente texto anterior, deste modo, é a presença da linguagem como “medium da continuidade do desenvolvimento, da preservação e da superação”. Também, no seu caráter universal, abrange alguns aspectos até mesmo que o próprio trabalho.

    Isto porque atua em diferentes esferas, tendo em vista que enquanto este se encontra restrito ao metabolismo da sociedade com a natureza, aquela atua ainda de modo mais imediato no “intercâmbio puramente intrassocial dos homens”. Neste sentido, a linguagem vai atuar inclusive como médium que permite que as determinações do trabalho, destacadas no tópico anterior, se façam presentes nas demais esferas do ser social, e na própria cotidianidade.

    Lukács, destaca ainda, por fim, a “natureza predominantemente espontânea” da linguagem. Essa, que “não tem um grupo humano como portador” – diferenciando-a de outros complexos do ser social, como  o próprio Direito, em que haveria um grupo humano “destacado” do restante da sociedade. E esse grupo seria o portador direto de sua manipulação.

    A linguagem, neste sentido “se renova espontaneamente na vida cotidiana”, escapando a processos, ainda que arbitrários de sua estrita institucionalização.

     

    IDEOLOGIA EM LUKÁKS

    Na reprodução social, estes dados ganham em complexidade, e novos complexos sociais vão se conformando a partir destes primeiros apontamentos irrevogáveis. Assim, tem-se o surgimento da divisão do trabalho, e a consequente divisão da própria sociedade em classes.

    Os pores teleológicos dos indivíduos, que inicialmente interviam sobre cadeias causais da natureza no âmbito estrito do trabalho, são neste momento colocado sobre outros indivíduos, de uma classe sobre a outra, mudando, por via de consequência seu caráter (são os pores teleológicos secundários). Surgem, inevitavelmente conflitos sociais, e a forma pela qual os indivíduos tomam consciência destes conflitos é conceituada por Lukács como ideologia.

    Um exemplo destas formas ideais é o próprio Direito, que surge a partir da extração de um grupo de indivíduos, que, atuariam por fora das classes sociais em disputa, mediando os conflitos existentes a partir de formas ideais que cristalizavam determinado “dever- ser”.

    Processos sócio-históricos

    Tendo em vista os objetivos do presente texto, no que se refere ao complexo da ideologia, cumpre destaque à forma pela qual o indivíduo toma consciência dos processos sócio-históricos. E, no que isso se reflete na produção de sua subjetividade.

    Quanto a esta questão, não nos resta outra alternativa a não ser trazer integralmente a genial passagem de Gyorgy Lukács, ressaltando alguns de seus apontamentos:

    Citação – Lukács, 2013:

    “Ainda mais importante é que a inter-relação dos complexos por nós descrita é mediada pela consciência dos homens que atuam na sociedade, que – repito: não importa se e o quanto essa consciência, no caso dado, é correta ou falsa –, em toda mediação real, a consciência dos homens singulares converte-se em seu medium imediato inevitável. Portanto, na prática, dificilmente haverá um homem – quanto mais evoluída for uma sociedade, tanto mais difícil – que, no curso de sua vida, não entraria em contato de múltiplas formas com uma pluralidade de complexos. Ora, já sabemos que cada complexo exige uma reação especializada, específica em termos de ação, por parte dos homens que efetuam seus pores teleológicos em seu âmbito.

    É óbvio que nem todo aquele que entra ativa e passivamente em contato com a esfera do direito pode nem deve se tornar um jurista, mas é igualmente óbvio que um homem que entra em contato prático mais ou menos duradouro, mais ou menos intenso, com um complexo social em ocasiões importantes de sua vida não pode fazer isso sem que a sua consciência passe por certas modificações.

    Como toda relação humano-social, porém, também esse tipo de relação possui um caráter alternativo: por um lado, é possível que a consciência do homem em questão obtenha uma forma totalmente diferente em diferentes complexos, que, portanto, a sua personalidade sofra certo “parcelamento”. (O funcionário submisso como chefe de família tirânico.) Nesse processo, podem ocorrer com muita frequência deformações da personalidade humana, que têm muita afinidade com o fenômeno do estranhamento e que muitas vezes até constituem uma amostra deste em sua forma mais pura. Como a civilização atual produz maciçamente tais deformações, é fácil compreender porque movimentos oposicionistas abstratos, como o existencialismo, pensam encontrar seu ideal na personalidade que se livrou de todas as ligações deformantes desse tipo e que depende inteiramente de si mesma”

    “Trataremos dessa questão detalhadamente no capítulo final deste livro; neste ponto, só poderemos fazer algumas considerações sobre um aspecto desse fenômeno, a saber, que se trata igualmente de uma ilusão existencialista decorrente da fetichização apresentar uma personalidade pura, que se completa em si mesma, como possível, que dirá como modelo universal. Todas as reais determinações da personalidade surgem, muito antes, de suas relações práticas (e generalizadas tanto em termos emocionais como em termos teóricos) com o meio social, com os semelhantes, com o metabolismo entre homem e natureza, com os complexos em que se diferencia concretamente a sociedade como um todo.

    Uma riqueza de conteúdos da consciência é impossível para o homem, a não ser a partir dessas relações. Também nesse tocante, como em toda parte da vida humana, a sua práxis naturalmente é constituída por alternativas; assim, nesse caso, pelo que surge dentro dele a partir dessas interações, que podem arredondar e consolidar a sua personalidade numa riqueza interior ou fragmentar sua unidade em “parcelas”.

    Em todo caso, o estranhamento tem aqui uma de suas fontes sociais; contudo, no mal possível estão contidos simultaneamente a possibilidade e inclusive o veículo para sua superação. Sem essa dialética de objetividade do ser social e inevitabilidade das decisões alternativas em todos os atos singulares é impossível sequer acercar-se do fenômeno do estranhamento”. (Lukács, 2013, p. 183)

    Implicações da ideologia

    Diversas são as implicações de tão rica passagem sobre o tema da ideologia, consciência e subjetividade. No entanto, ante a limitação do escopo do presente texto, delineamos aquelas que entendemos serem centrais por sintetizarem as bases do debate sob a ótica do Autor Húngaro.

    Primeiramente, este trata a consciência dos homens singulares como “médium imediato inevitável” de toda a práxis humana, e que, partindo-se do momento do indivíduo, este necessariamente se defronta de modo particular nas diversas esferas que constituem o ser social:

    • o  trabalho,
    • a família,
    • o lazer,
    • a rede social.

    Tratam-se das diversas formas de relação “humano-social”.

    Cada uma dessas esferas possue especificidades, e demandam respostas específicas do indivíduo, o que necessariamente possui efeitos que retroagem sobre sua própria consciência.

    Estes efeitos retroativos não se dão sobre a simples forma de “estímulo” imediato, mas tratam-se de proporcionar um campo efetivo de possibilidades. Além, de alternativas, que, ao mesmo tempo que delimitam a atuação do indivíduo a este campo concreto, permitem que sua personalidade se expresse com uma certa maleabilidade.

    A “relação homano-social”

    Como cada uma dessas esferas de “relação humano-social” não se constituem de forma neutra, mas possuem estatuto próprio, constitui-se a possibilidade de uma diversidade de respostas do indivíduo, expressão de sua personalidade e formas de consciência. Tanto aquelas respostas condicionadas ideologicamente, quanto àquelas que se contrapõem a estas se encontram no mesmo campo de possibilidades.

    Esta desigualdade e diversidade existente entre estas distintas esferas podem, como destacado pelo autor, gerar inclusive formas extremamente contraditórias de resposta por parte do indivíduo, resultando no que se entendeu por “parcelamento” de sua personalidade. Entendo ser este o caso de um indivíduo que atua, por exemplo, em seu trabalho de forma extremamente progressista, caridosa, ao passo que no ambiente familiar comete sucessivos atos de violência doméstica.

    O ideal de personalidade destacado por vários “movimentos oposicionistas abstratos”, desconsidera, deste modo, as especificidades concretas das esferas às quais os indivíduos se inserem. Nisto, como se sua personalidade fosse mero fruto de uma subjetividade calcada em si mesma, uma “personalidade pura”.

    Lukács, como visto, se opõe a estas correntes do pensamento pós-moderno, e destaca as determinações reais que se assentam sobre “relações práticas (e generalizadas tanto em termos emocionais como em termos teóricos) com o meio social, com os semelhantes, com o metabolismo entre homem e natureza, com os complexos em que se diferencia concretamente a sociedade como um todo”.

    Veiculo de superação (Lukács)

    Por fim, e talvez o aspecto mais importante da questão reside no entendimento de Lukács segundo o qual no “(…) mal possível estão contidos simultaneamente a possibilidade e inclusive o veículo para sua superação”. Isto porque o mesmo processo que pode “deformar” estas personalidades, contém, lado outro, as potencialidades para construção de relações que promovam uma “riqueza de conteúdos de consciência”.

    A potencialidade de se “arredondar e consolidar” a sua personalidade numa “riqueza interior”, como será vista adiante, deve se fazer presente, deste modo, na própria estrutura concretamente constitutiva destas esferas da sociabilidade. Assim, apesar de serem fruto da práxis humana, não o são de modo simplesmente imediato, mas se dão a partir de um desenvolvimento histórico das práxis sociais, pois, como diria Marx “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX, 2011).

    Afasta-se com isso qualquer tipo de postura “voluntarista” do autor frente às necessidades de transformação social.

    Em tempo, cumpre ainda, a partir da perspectiva Lukaciana, afastar abordagens que partem destes entendimentos para instituir certo sociologismo das “instituições” sobre a subjetividade do indivíduo. Isto porque, conforme leitura atenda da obra completa do Autor Húngaro, o ideal e ideologia afetam os momentos de formação da consciência humana para além dos ambientes institucionalizados (igreja, empresa, família), se apresentando concretamente em todas as manifestações da práxis humana “livres”, como as trocas econômicas, as comunicações lingüísticas, e a politicidade.

    A “dialética de objetividade do ser social”

    De todo modo, o que de mais importante se extrai da passagem, de implicações diretas à compreensão do fenômeno do estranhamento, a ser tratado no próximo tópico, é, portanto, a “dialética de objetividade do ser social e inevitabilidade das decisões alternativas em todos os atos singulares” dos indivíduos.

    Indivíduo, gênero humano e Estranhamento- A especificidade do Capitalismo

    Na obra de Lukács, destaca-se a autoatividade do ser social, e a progressiva socialização do ser biológico. A reprodução social em seu movimento histórico, como pôde ser visto nos tópicos anteriores, gera sistemas de mediação social cada vez mais complexos, configurando o que Lukács trata como “transformação ininterrupta no social cada vez mais puro”.

    Do ponto de vista do indivíduo essas formas de sociabilidade criadas pelo próprio homem, retroagem sobre o indivíduo, que se torna progressivamente mais “socializado em seu ser biológico”. Nas palavras do Autor Húngaro:

    A reprodução física do homem enquanto ser vivo biológico é e permanece o fundamento ontológico de todo e qualquer ser social. Todavia, trata-se de um fundamento cujo modo de existência é sua transformação ininterrupta no social cada vez mais puro, ou seja, é, por um lado, criação de sistemas (complexos) de mediação, visando realizar essas mudanças e ancorá-las na realidade funcionando dinamicamente, e, por outro, retroação desse meio ambiente autocriado – criado pelo gênero humano – sobre o seu próprio criador, dessa vez, contudo – de modo diretamente ontológico –, como retroação que pode ser aplicada a cada homem singular que, a partir de sua própria atividade, é modificado pelos seus objetos, socializado em seu ser biológico. (Lukács, 2013, p.185)

    Deste modo, a subjetividade do indivíduo se afasta dos limites naturais biológicos, tornando-se progressivamente social. Destaca-se, deste modo a crescente “figura socialmente operante da generidade”, uma “(…) realidade dinâmica e dinamicamente coesa de objetos, relações, movimentos etc., que deve ser experimentada por ele [indivíduo] subjetivamente como uma realidade objetiva independente da sua consciência” (LUKÁCS, 2013, p. 185).

    A “segunda natureza”, por Lukács

    Este momento predominante da sociabilidade opera sobre o indivíduo, nas palavras do autor como uma “segunda natureza”. Que, existe de forma independente ao seu pensar, querer – podendo escapar inclusive à sua consciência.

    Interessante destacar neste ponto, de passagem, que, se o inconsciente aparece como uma determinação “natural” para alguns psicanalistas. Assim, torna-se claro, ainda sob este contexto, a existência de um “segundo inconsciente”, fundado nesta segunda natureza.

    Este tema, não foi, por certo, tratado pelo autor de modo imediato. O que toma destaque por parte do Marxista Húngaro, de implicações diretas para o presente trabalho, é justamente a forma pela qual a dinâmica interativa existente entre os complexos já destacados é :

    (…) mediada pela consciência dos homens que atuam na sociedade”, eis que “em toda mediação real, a consciência dos homens singulares converte-se em seu medium imediato inevitável. (LUKÁCS, 2013, p. 183)”

    Para além dos apontamentos acerca dos diversos complexos que compõem o ser social, e suas especificidades, Lukács delineia aquilo que seria um desenvolvimento real e efetivo do ser social. E, de caráter não telelógico – caracterizado como desigual, de uma forma de generidade em si, para uma generidade para si, generidade esta não mais muda.

    A universalidade do gênero

    Explico os principais delineamentos desta formulação. Como visto, ao remeter para além da particularidade para a universalidade do gênero, o ser social, pelo simples ato do trabalho, já supera a mudez dos seres orgânicos. Isso e, em que, a particularidade surge como mera decorrência direta do gênero, que se reproduz sempre de mesma forma.

    Ao passo que, para os seres orgânicos, a reprodução da espécie possui um caráter de permanência marcante, sem tomada alguma de consciência. Ainda e,  sem a presença de escolhas de caráter alternativo para o desenvolvimento da particularidade, no ser social, ocorre exatamente o oposto desde os primórdios de seu metabolismo com a natureza.

    Assim, por ser este “ser que responde”, o indivíduo confronta-se com as alternativas, com os pores teleológicos e objetiva formas de existência que serão confrontadas por outros indivíduos e gerações futuras. A reprodução, deste modo, necessariamente aponta para um além de si, que se configura como forma de alienação, e constantemente acarreta o afastamento das barreiras naturais, historicamente verificado.

    Este momento da generidade que historicamente vai se tornando mais mediado e complexo, retorna aos indivíduos como uma espécie de “segunda natureza”, que este, no entanto, já não mais reconhece como seu produto direto, e configura-se como estranhamento.

    Citação:

    O próprio fenômeno, claramente delineado por Marx nos enunciados citados por nós, pode ser assim formulado: o desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente ao mesmo tempo o desenvolvimento das capacidades humanas. Contudo – e nesse ponto o problema do estranhamento vem concretamente à luz do dia –, o desenvolvimento das capacidades humanas não acarreta necessariamente um desenvolvimento da personalidade humana. Pelo contrário: justamente por meio do incremento das capacidades singulares ele pode deformar, rebaixar etc. a personalidade humana. (Basta pensar em muitos dos integrantes de equipes especializadas da atualidade, nos quais as habilidades específicas cultivadas de modo sofisticado têm um efeito altamente destrutivo sobre a sua personalidade.) (Lukács, 2013, p. 421)

    O desenvolvimento das forças produtivas e o capitalismo

    Há, deste modo um tríplice encadeamento entre “desenvolvimento das forças produtivas”, “desenvolvimento das capacidades humanas”, e “desenvolvimento da personalidade humana”. Isso, não necessariamente acontece em uma relação direta e de progressividade, com o desenvolvimento de um implicando no desenvolvimento do outro.

    O que acontece, de fato, é uma série de mediações sociais historicamente verificáveis que poderão colocar estes três elementos em situação de oposição, ou operando em sentidos inversos. No capitalismo, segundo Lukács, acontece justamente o último destes casos: o desenvolvimento das capacidades humanas. Esse desenvolvimento, oriundo do elevado nível das forças produtivas, é acompanhado por um aviltamento da personalidade do indivíduo.

    Isto se deve a oposição existente entre forças produtivas e relações de produção. Tal oposição, de grande complexidade, extensamente tratada na sobras de Karl Marx, não poderá ser detalhada neste texto, cabendo tão somente destacar que se fundamenta na “anatomia da sociedade civil” no Capitalismo, estruturada em torno de determinadas regras de produção, circulação e distribuição econômicas, fundadas no trabalho assalariado e na propriedade privada

    Perspectiva de Lukács e de Marx

    Neste ponto, cumpre destacar as implicações éticas deste entendimento, a partir da perspectiva Lukaciana. Assim, o autor retoma a clássica passagem Marxiana da relação entre “reino da liberdade” e “reino da necessidade”:

    “Assim como o selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer suas necessidades, para manter e reproduzir sua vida,assim também o civilizado tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis. Com seu desenvolvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, pois se ampliam as necessidades; mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças reprodutivas que as satisfazem.

    Nesse terreno, a liberdade só pode consistir em que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, trazendo-o para seu controle comunitário, em vez de serem dominados por ele como se fora por uma força cega; que o façam com o mínimo emprego de forças e sob as condições mais dignas e adequadas à sua natureza humana.

    Além dele é que começa o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiroreino da liberdade, mas que só pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua base. A redução da jornada detrabalho é a condição fundamental. K. Marx, Das Kapital, cit., v. III, p. 355; MEW, v. 25, p. 828 [ed. bras. O capital, Livro III, t. 2, trad. Régis Barbosa eFlávio R. Kothe, São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 273].

    O capitalismo

    Ao tratar da inevitabilidade da condição de humana de ter que “lutar com a natureza para satisfazer suas necessidade”, Marx aponta diretamente para os aspectos ontológicos do trabalho como condição historicamente inafastável do ser social, como já visto ao longo deste texto. O Capitalismo, neste sentido, surge como ampliação das forças reprodutivas, e confere sentido específico à noção de “liberdade” no contexto apresentado.

    Do ponto de vista ético, o ato de liberdade consiste, nestes termos, em que justamente, por meio do “mínimo emprego de forças e sob as condições mais dignas’. Isso, na regulação racional deste metabolismo inafastável com a natureza, controle este somente possível pelo “homem social, os produtores associados”, uma superação social do estranhamento, gerada para e pelos indivíduos, em sua práxis cotidiana.

    Ressalta-se ainda o “desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo” – já que, enquanto programa ético, este reino da liberdade pressupõe o “valor social da plena explicitação da personalidade humana”. O grande salto que Lukács traz neste ponto. E, talvez seja o ponto central do presente estudo, é justamente entender como a plena explicitação da personalidade humana, por meio de mediações sociais, se relaciona umbilicalmente com o patamar das forças produtivas, ao passo que desta não se deriva diretamente.

    “Reino da liberdade”, por Lukács

    Neste sentido, que o “reino da liberdade” encontra-se diretamente fora do âmbito da economia, enquanto fator social, ao passo que se reafirma “(…) o caráter ontologicamente derivado dos valores humanos supremos a partir da práxis econômica ontologicamente primária, a partir da reprodução real do homem real”. (Lukács, 2013, p. 145).

    Com isso, para além dos discursos, consolida-se o entendimento acerca da efetiva gênese, essência ontológica e real posição da liberdade no “sistema da práxis humana.

    Lukács destaca ainda o progressivo surgimento da humanidade como “gênero não mais mudo”, processo este que tem como base real a gênese e consolidação do mercado mundial. A humanidade enquanto gênero se constitui desde seus primórdios, a partir de sua constituição biológica.

    Ocorre que este gênero é conceituado como “mudo”, por não ser uma constituição ontológica voltada para si, mas tão somente uma reprodução dos seres orgânicos, em termos de adaptabilidade ao ambiente natural em que se insere. Progressivamente, a partir do já destacado processo de “sociabilização da sociedade”, o ser social se constitui em tribos, que ainda guardam relações muito próprias, em que não há uma efetiva integração do gênero humano.

    Ligação factual

    Esta “ligação factual entre todos os homens” surge apenas como resultado do mercado mundial, evidenciando seu caráter social:

    “O mercado mundial é a base incontornável para a realização da unidade existente para si do gênero humano; ele, porém, só consegue produzir o em-si do gênero humano – isso certamente por necessidade –, cuja transformação e elevação a ser-para-si só pode efetivar-se como ato consciente do próprio homem. A realização do verdadeiro valor por meio de pores de valor corretos é um momento indispensável desse processo.

    Durante esse momento, a importância da referida atividade humana, a autenticidade de seu caráter ativo, não é nem um pouco minorada ou atenuada. Porque ela só consegue se tornar atual em homens que foram formados pelas determinações reais e objetivas do próprio processo geral para tal atividade e tornados aptos para ela; é a eles que esse processo confronta com aquelas alternativas impreteríveis que eles respondem valorando, desenvolvendo valores ou inibindo valores.” (Lukács, 2013, p. 147)

    Ante os fins propostos para este trabalho, o que cumpre destacar quanto ao tema é justamente a reiteração de um programa ético, delineado a partir da dinâmica apresentada por Lukács entre indivíduo, práxis, consciência e história. Neste sentido que o autor destaca o “ato consciente do próprio homem”, mas homem este formado “(…) pelas determinações reais e objetivas do próprio processo geral para tal atividade e tornados aptos para ela”.

    Ato de consciência, por Lukács

    Este ato consciência de resposta, que deve partir da vida cotidiana, mas que se colocam em um patamar histórico, necessariamente. Além de se constituir numa autoprodução dos sujeitos, desenvolve valores.

    Assim, o Autor Húngaro ressalta o caráter processual e objetivo deste processo, “(…) do qual a consciência é o produto e sua expressão simultaneamente plenificada”. Este aspecto duplo da consciência que ao mesmo tempo em que se constitui como “órgão da continuidade” processual. E, somente pode tornar-se concreta em correspondência com referido estágio de desenvolvimento social (LUKÁCS, 2013, p. 152).

    Trata-se de compreender o papel real da consciência na continuidade do processo social. Esta se distingue da consciência do homem na práxis cotidiana, apesar de desta se derivar, nunca de modo imediato. A riqueza destas determinações é “(…) procurar compreender a consciência ontologicamente, como momento real do desenvolvimento social, e não uma interpretação gnosiológica ou até psicológica como apreensão primária de sua essência” (Lukács, 2013, p. 152).

    Nota-se deste modo, como é rico o trato conferido a Lukács ao desenvolvimento efetivo elementos que configuram o ser social. Iniciou-se este texto destacando o papel da consciência nas formas de reprodução primordiais da humanidade, no confronto direto do indivíduo com o ambiente natural, no processo de trabalho, e suas implicações para a conformação da subjetividade do indivíduo.

    Complexificação das mediações sociais

    Lado outro, com a progressiva complexificação das mediações sociais neste processo inafastável entre homem e natureza novas determinações surgem. E, a consciência humana se estrutura não somente como apreensão do indivíduo dos processos sociais, mas como resultante e órgão da continuidade de um processo social total que nasce na práxis cotidiana, e tem a consciência imediata do indivíduo tão somente como um momento deste processo.

    Neste sentido, historicamente verificou-se que o capitalismo tem por pressupostos estruturantes três aspectos:

    1. primeira integração ampla do gênero humano, por meio do mercado mundial;
    2. possibilidade de se confrontar o indivíduo como força social “nua” frente ao gênero humano;
    3. presença do estranhamento em suas diversas formas, seja esta a religião, a política, e, em especial, a economia.

    Perpassados estes diversos pontos, nota-se que as possibilidades de emancipação humana emanam da própria apreensão correta da estrutura da “anatomia da sociedade civil” e suas implicações para uma consciência e agir revolucionários.

    A superação do estranhamento

    A superação do estranhamento, a partir da tomada do controle social dos processos de reprodução da sociabilidade, configuraria pressuposto de fato de um “reino da liberdade”. A partir sempre da correta apreensão da anatomia do que seria compreendido como “reino da necessidade” das condições materiais de existência.

    A mesma realidade que impõe o reino da necessidade, reserva as possibilidades reais de controle social consciente sobre o processo de reprodução social, e de novas formas de subjetividade humana.

    Conclusão: aspectos centrais da obra de Georg Lukács

    Buscar aproximar e construir diálogos entre teorias que partem de pressupostos metodológicos tão distantes certamente é um desafio tão grande quanto os frutos que pode gerar.

    Por um lado a Psicanálise se construiu a partir da práxis clínica em direção ao campo teórico, buscando explicar de forma cada vez mais abrangente os diversos fenômenos da vida social, Como os próprios textos sociológicos de Freud como “Tótem e Tabu” e “Mal estar na civilização”. O caminho perseguido nesta construção. Entretanto, levou inevitavelmente a alguns falseamentos do caráter específico do ser social, por partir justamente de uma noção acabada de sujeito.

    Este sujeito tomado como “natural”, constituído a partir do paradigma da individualidade moderna, confronta-se com uma realidade social dada, em uma relação “naturalmente” de oposição.

    Lukács X Marx

    Em Lukács, por outro lado, compreende-se de modo mais aprofundado a noção de Marx, segundo a qual somente é possível ao indivíduo se isolar em sociedade. Assim, a própria noção de sujeito e a produção da subjetividade aparecem como um momento da totalidade do ser social. Isso, que tanto a pressupõe quanto a modifica dentro de seus limites e possibilidades historicamente verificáveis.

    Esta relação dinâmica perpassa diversos complexos, como a linguagem e a ideologia, já apresentadas introdutoriamente neste texto, e perfazem diversas esferas da vida social, como a política, o trabalho, e a vida cotidiana. Cada uma destas esferas irá apresentar suas especificidades, ainda que mutuamente interligadas e dependentes.

    A riqueza destas relações pode tão somente ser apresentada em níveis gerais. Mas, a somente corretamente apreendida pelo próprio movimento efetivo da realidade histórica.

    E, não se tratando, deste modo, de uma apreensão lógico formal. Não se trata portanto, de uma teoria social capaz de explicar todos os fenômenos da vida social, mas de buscar apreender a própria realidade imanente em suas dinâmicas estruturantes.

    Lukács toma como partida

    Para apresentar este entendimento, Lukács toma como partida o trabalho em suas formas primordiais, enquanto protoforma deste “ser social”. Demonstra como progressivamente o processo de “sociabilização” do ser social. Do salto ontológico primordial, a formas de gênero humano cada vez não mais mudas. Ou seja, um “ser-em-si”, é marcado por implicações para os próprios indivíduos. Isso, pode ser visto em  livros de Lukács e nas ideias de Lukács).

    A subjetividade, inicialmente demarcada por processos de adaptação ao ambiente natural, em um conjunto de respostas limitadas ao ambiente, é cada vez mais mediada por processos sociais. Em que, deixa de ter uma subordinação direta ao momento objetivo, passando a atuar de forma mais autônoma.

    O metabolismo com a natureza passa a ser cada vez mais mediado por determinada divisão social do trabalho, cooperação e os pores teleológicos secundários surgem com maior ênfase na determinação do dever-ser dos indivíduos. A linguagem e a ideologia ganham em autonomia, mas sem, no entanto, jamais se desgarrarem dos limites impostos pelas “barreiras naturais”. Essas que guardam seu fundamento, em última instância no momento objetivo do trabalho socialmente realizado.

    Capitalismo

    No capitalismo esta configuração se apresenta de forma bastante específica: crescem-se as capacidades produtivas do gênero humano, ao passo que há o aviltamento da personalidade. Eis que o indivíduo encontra-se subsumido estritamente a ao seu papel na divisão social do trabalho.

    Neste mesmo contexto em que o mercado mundial surge como integração efetiva do gênero humano, destacou-se que o indivíduo pode se isolar. Isso,  apenas a partir desta sociabilização desenvolvida e altamente complexa. Isso, resulta, lado outro, em uma oposição entre forças produtivas e relações de produção. Esta última especificidade do capitalismo é demarcada a partir de regramento específico da produção social, estruturada em torno de determinadas regras de produção, circulação e distribuição econômicas, permitidas pelo trabalho assalariado e a propriedade privada.

    Portanto, a “produção desejante”, tomando por empréstimo um termo deleuziano, referindo-se à produção da própria subjetividade individual na apreensão e resposta aos diversos momentos da produção social como aparecem no cotidiano. E, é demarcada, no capitalismo, por uma oposição aparentemente intrasponível frente à “produção social”, que lhe aparece como “segunda natureza”, estranhada.

    Lukács e o reino da necessidade

    Destacou-se ainda, que Lukács delineia, ainda que de modo inacabado, as bases de um programa ético, pautado pela superação do “reino da necessidade”. Esse, somente possível por esta própria estrutura social permitir que os indivíduos associados apreendam o estatuto específico da produção social. Isso, por meio das potencialidades da “produção desejante”, suas mediações linguísticas e ideológicas.

    Não se pode deixar de destacar que tal potencialidade de transformação somente pode se realizar por meio de uma práxis efetiva e concreta.

    Inúmeras são as implicações destes traços gerais da produção da subjetividade como tratadas por Lukács ao estudo da Psicanálise. O que nos parece de maior interesse imediato, refere-se justamente à proposta ética da prática analítica.

    Neste sentido, torna-se de sumo valor ampliar as discussões acerca de qual o sentido ético da prática clínica frente às constatações apresentadas no presente texto. Intui-se que este deverá tomar como partida tanto a tomada de consciência das determinações sociais que lhe implicam determinada subjetividade. Como, também, demonstrar qual o campo de ação real que se apresenta a este sujeito no sentido de enriquecer sua personalidade, inevitavelmente cindida, inevitavelmente estranhada.

    Trata-se de buscar, em análise, a apreensão do ato de liberdade possível. Inserir-se em um campo de relações interpessoais e produtivas que remetam o indivíduo efetivamente para confrontar-se. Se confrontar, no caso, com as questões que tocam o gênero humano em determinado período histórico.

    Referências:

    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix; O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2010, 560 p.

    _________. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 1. ed. São Paulo: Editora 34,
    1997a, Vol 5.

    LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma Ontologia do Ser Social. Tradução Lya Luft, Rodnei Antônio do Nascimento; 1. ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2010;

    _________. Para uma Ontologia do Ser Social I. Tradução Carlos Nelson Coutinho, Lya Luft, Mario Duayer, Nélio Schneider , Rodnei Antônio do Nascimento; Revisão: Ronaldo Vielmi Fortes; 1. ed. revista. São Paulo: Boitempo: 2012;

    _________. Para uma Ontologia do Ser Social II. Tradução Ivo Tonet, Nélio Schneider, Ronaldo Vielmi Fortes; Revisão; 1. ed. revista. São Paulo: Boitempo: 2013;

    MARX, Karl. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857- 1858. Esboços da crítica da economia política. Tradução; Revisão; 1. ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2011;

    _________. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tradução: Jesus Ranieri 1. ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2004.

    ________. Saiba quem foi Lukács. Folha de São Paulo. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0906200207.htm

    Este material sobre Resumo de Lukács: trabalho, ideologia e subjetividade  é de Priscila Tubi, concluinte do nosso Curso de Formação em Psicanálise Clínica

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