luto

Luto: é preciso falar

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Hoje falaremos sobre o luto. A vida do ser humano é permeada de perdas, elas são das mais variadas categorias: projetos que não deram certo, juventude, objetos, pessoas e assim por diante. O aniquilamento ocorrido através da morte é a última e significativa perda.

Uma vez que não é possível resgatar aquele que foi perdido, ou seja, que morreu. A morte está inscrita na condição humana, ela faz irromper um leque de emoções. Dado que ela, com a morte de um ente querido, mostra a força do vínculo que o indivíduo tinha com o falecido.

Entendendo sobre o luto

A ausência do outro, além de ser uma experiência dolorosa, também envolve um grande medo do ser humano, isto é, a finitude da vida. Testemunhar o fim do outro abrange um sentimento de impotência diante daquilo que não pode ser alterado.

A perda é um fenômeno universal, mas o que aproxima os tipos de perdas é o conflito de suportar a falta do que foi perdido. Existe uma aceitação por entre as pessoas de que a morte constitui a mais difícil das perdas. Quando um ente querido é perdido por morte, ela remete o ser humano para o duro sentimento da ausência.

A morte coloca o homem diante da sua própria fragilidade, mortalidade, demandando o indivíduo a vivenciar um sofrimento. Vamos juntos, leitor, caminhar numa temática que está sob a tutela das falsas premissas de um mundo que promete uma vida duradoura e subjuga o impermanente. É preciso falar, escrever, sobre a morte, sobre o luto.

As culturas humanas com o luto e a morte

O ser humano é o único ser vivo que pensa sobre a brevidade da vida. A partir do momento em que o homem se destacou como um ser cultural, ele trouxe preocupações acerca da questão da morte. Todos os corpos sociais, desde os mais arcaicos até os contemporâneos, constituíram sistemas fúnebres para compreenderem a morte em seus aspectos sociais e individuais.

As diferentes manifestações da morte aparecem pelas diferenças culturais de um sistema social para outro. Pela propriedade que cada sociedade possui: costume, moral, religiosidade, etc. A conscientização da morte oportunizou ao ser humano modos de se relacionar com ela. Para Guandalini (210, p. 6) muitos autores apontam para quatro condições que contribuíram especificamente para o aparecimento do pensar sobre a morte: ver-se em presença da morte; controle mínimo sobre as forças naturais; expectativa de vida e o status da pessoa.

Conforme Guandalini (2010, p. 6), o funeral é um dos ritos fúnebres mais presente nas culturas humanas. É, digamos assim, a separação entre os vivos e os mortos. Na assertiva de Guandalini (2010, p. 6), o funeral não foi o suficiente para o ser humano, em outras palavras, ele terminou explorando outras maneiras de encarar a morte: incorporação ao mundo dos mortos; rituais que visam preparar o falecido; homenagem à morte, a valorização da morte para a vida e o mais.

O luto no Antigo Egito

Como destaca Guandalini (2010, p. 6), no Antigo Egito, época do Império Novo, início em 1550 a. C e término em 1070 a. C., o morto recebia auxílio através do Livro dos Mortos. O mesmo é um composto de ladainhas e preceitos que versam sobre os que morreram. Tendo como objetivo de auxiliar o falecido em sua travessia para o outro mundo. Geralmente, os escritos eram feitos em rolos de papiro e colocados junto à múmia.

Guandalini (2010, p. 6), o Livro dos Mortos tem como proposta de apresentar o ideal de justiça e verdade egípcia. Pois diante da deusa egípcia Maat, a posição social ou riquezas de nada valeriam, mas apenas a conduta moral do falecido em vida. Na verdade, leitor, o Livro dos Mortos, Guandalini (2010, p. 6), seria um conjunto de determinações sobre as práticas fúnebres.

Uma organização com o objetivo de integrar o indivíduo sobre o assunto morte, em outros termos, a religiosidade do sujeito era a crença da sociedade. O sistema de conhecimento fúnebre era parte do comportamento do indivíduo, isto é, ele tinha ações específicas para com o morto, desde o desfalecimento até o cuidado com o corpo. Como expressa Guandalini (2010, p. 6) a pessoa honrava algo que estava conectado ao que todo um corpo social partilhava.

A morte e a cultura

A morte de alguém era sentida por todos os demais da comunidade. Portanto, o falecimento de um indivíduo não era apenas o término da vida e da constituição física, mas o ser social também acabava. O sistema social imputava grande dignidade e projeção sobre o indivíduo. A cultura egípcia tinha como objetivo ensinar cada indivíduo a pensar, sentir e agir em relação à morte.

O ser humano sempre teve um profundo desejo de controlar o finito, sejam por ritos, integração psicológica, lendas, o homem não permitiu a morte ser como um fim em si, entretanto, um término ornado com o máximo de suas características culturais. Na explicação de Guandalini (2010, p. 8) a Grécia Antiga, sua cultura, era heterogênea, por isso, sendo de grande valia para todas as épocas, inclusive na atualidade.

O pensar filosófico era o caminho utilizado para refletir sobre a morte. No discorrer de Guandalini (2010, p. 8), Platão compreendia o campo da filosofia como uma reflexão para a morte. Cícero entendia a filosofia como uma preparação para a morte. O pensamento filosófico auxiliou o indivíduo grego a pensar sobre a morte, assim como a morte estimulou a filosofia a meditar acerca do relacionamento do ser humano com o fim.

O luto para Homero

Guandalini (2010, p. 8), alguns pensadores trouxeram o assunto morte não como o término de tudo, mas como uma travessia para o não conhecido. Outros filósofos foram mais realistas, compreenderam como algo inevitável e o encerramento da vida. Outro aspecto a ser ressaltado sobre Guandalini (2010, p. 9), os gregos anteriores ao século 5 a. C. compreendiam o nada como algo impensável.

Nada poderia ser ocasionado do nada, sendo assim, para Homero , ele viveu no séc. 8 a. C., a morte não seria um fim rumo ao nada, em outras palavras, não acabaria em um nada, no entanto, algo permaneceria após a morte. Seria o chamado reino dos mortos, o submundo regido pelo deus grego chamado Hades . No pensamento de Guandalini (2010, p. 11) os astecas apresentam uma variedade de paraísos que visam receber o falecido, isto é, dependendo da maneira como a morte ocorreu, o morto é encaminhado para o paraíso correspondente.

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    Trazendo um exemplo: a pessoa que morria em combate era acolhida por Huitzilopochtli . Guandalini (2010, p. 11), outra civilização da América Latina, importante lembrar, são os maias. Os mortos, de acordo com a religião dos maias, seriam enviados para localidades subterrâneas de difícil acesso. Chile, Peru, Colômbia e Bolívia utilizaram o método da mumificação.

    A familiaridade com a morte

    Como bem expressa Guandalini (2010, p. 11), o que aproxima os rituais das civilizações citadas é a questão de haver uma continuidade após a morte. A morte ressignificada pela esperança, pelo sentido de uma existência do ente querido no além. Ainda seguindo o pensamento de Guandalini (2010, p. 12), agora observando o tempo da Idade Média, século 14, uma época marcada pelas catástrofes, doenças, higiene precária, fome, etc.

    Vale lembrar que a Europa foi atingida significativamente pela Peste Negra. Dizimando entre 25 e 75 milhões de vidas humanas. Um tempo em que os procedimentos médicos eram precários, de mínimo saneamento. O homem medievo tinha uma familiaridade com a morte, isto é, era uma maneira de aceitação da ordem da natureza. Não existia um desejo de exaltá-la e nem de evitá-la, o que ocorria era apenas um processo de aceitação.

    O relacionamento com o morto era experienciado por todos os familiares, até as crianças. O assunto morte não era algo escondido dos infantes, visto que quando o sujeito compreendia que sua morte estava próxima, ele chamava sua família para noticiar a situação. Por conseguinte, amigos, conhecidos, desconhecidos e familiares eram testemunhas de arrependimentos e perdões.

    O perdão a Deus e o luto

    Do leito, o moribundo tinha um espaço de remissão e pedido de perdão a Deus. Os padres eram responsáveis pelo cerimonial fúnebre e pelo luto. O luto era exprimido através das roupas dos sacerdotes, assim dizendo, roupas de cores pretas eram utilizadas para sinalizar o sofrimento da perda. Quanto mais abastado era o falecido, mais padres e monges acompanhavam o corpo. Já o século 18 abrigou uma nova forma acerca do sentimento de luto.

    A família enlutada, narremos assim, expressava o sentimento de luto com uma finalidade socializadora. Através dos trajes dos enlutados, parentes, amigos e conhecidos percebiam o sofrimento e traziam seus pêsames e comiserações. O século 19 trouxe um luto com exageros e desesperos, ou seja, havia uma grande dificuldade em aceitar o fim a vida. Com o crescimento do capitalismo e o aumento dos centros urbanos, o sentimento de solidão aumentou consideravelmente.

    Portanto, a morte era tida como solitária e apavorante. A proximidade da morte era o momento do moribundo expressar uma profunda reflexão sobre sua vida: atitudes, vivências, convicções e sua relação com Deus. O século 19 também enfrentou os altos índices de mortalidade devido à precariedade das condições higiênicas. O mesmo século também foi marcado pela arte. As correntes do romantismo e realismo retrataram o tema da morte.

    Uma forte carga emotiva

    Na visão romântica, o fim é retratado como, pensemos assim, algo mais idealizado, com uma forte carga emotiva. Já o realismo tocou sobre o assunto morte com duras críticas, isto é, ele frisou sobre as péssimas condições sociais vividas pelas pessoas. Vale ressaltar sobre a história do Reino Unido, a era vitoriana, ocorrida em meados do século 19, que durou de junho de 1837 a janeiro de 1901, 63 anos. Uma sociedade que foi conduzida por exigentes códigos de conduta, incluindo o luto.

    A chamada cultura do luto extremado vitoriano foi criada pela própria rainha Vitória, tida como ideal de mulher no século 19. A rainha, com a morte do rei Albert, passou a usar roupas pretas todos os dias, por 4 décadas. Com o luto vitoriano normatizado, ele se tornou complexo. Visto que as cartas de comiserações, o conversar com uma viúva, tudo era revestido de regras comportamentais.

    Era muito comum nos lares, na hora da morte de um familiar, as cortinas serem abaixadas, espelhos serem cobertos, relógios serem parados, as refeições não aconteciam com a presença do cadáver, etc. Os valores dos funerais eram extremamente altos, os túmulos eram minuciosamente decorados artisticamente, sendo assim, ocorreu o surgimento de uma industrialização encaminhada para o luto. Os mais pobres guardavam dinheiro para o enterro, sacrificando o bem- estar da família.

    O luto na época vitoriana

    A época vitoriana também foi frisada pelo chamado “post mortem”, fotos de pessoas mortas. Era simplesmente realizar registros fotográficos com os moribundos em poses de pessoas vivas. Havia vários recursos: criação de cenário, iluminação, roupas, maquiagem e outras coisas mais. Boa parte eram fotos de crianças, já que era alto o índice de mortalidade das mesmas.

    O século 20 trouxe a Primeira Guerra Mundial, as práticas de relacionamento com a morte foram abandonadas, pois ocorreu um maior desenvolvimento dos países com o advento industrial. Com sociedades muito mais urbanas, racionais e industrializadas, meios foram construídos para extinguir qualquer tipo de culto ou referência à morte. A marcha do sucesso, lucro e da produção não poderia ser prejudicada. O que existia era uma felicidade de contornos industriais e acima da morte.

    O assunto morte passa a ser ocultado, isto é, o morrer do século 20 acontece de maneira isolada. O processo do morrer passa a ser escondido dos familiares do morto, para eles não sofrerem. O mesmo ocorria com o enfermo, para deter futuras angústias, o seu real estado era abafado. A morte ficou confinada do outro lado do muro da existência: hospitais, UTIs, sob o cuidado de médicos, enfermeiros e auxiliares. Os avanços industriais tornaram a morte privada. Já o homem do século 21 mascara sua realidade diante da morte.

    Um elemento repulsivo

    Ela é tida como um elemento repulsivo, e necessita ser silenciada. Tanto que a contemporaneidade vive sob uma realidade do espetáculo, as mídias são as organizadoras: propagandas com corpos jovens e saudáveis, paisagens paradisíacas, belos carros, belas casas, etc.

    É passado para o indivíduo um sentimento de felicidade eterna, uma realidade idílica. Uma narrativa permanente sussurra em cada espetáculo oferecido para o público: é mais fácil ignorar e esconder o que se teme do que expor o que é inevitável. A sociedade atual omite ao ser humano a consciência da morte, um repertório fantasioso é todo bem elaborado para não se entender o limite da existência. É o tabu da morte.

    Freud e a relação com o luto

    Conforme o pai da psicanálise, Sigmund Freud, o atrito em lidar com a morte é algo peculiar da natureza humana. Com uma cultura evitacionista acerca da morte, o ser humano vive como se não existisse o desenlace final. O homem civilizado prescinde à morte, procurando distorcer a maior de todas as certezas. O inconsciente humano não crê na morte, ele reage diariamente como se fosse uma instância eterna, o homem é imortal.

    Tal imortalidade também alcança os entes queridos, aqueles que são amados por nós não deixam de ser uma conservação da nossa própria existência. Freud sempre afirmou que o inconsciente não guarda representações negativas, não sendo provável encontrar uma representação objetiva e direta da morte. Seria improvável ter uma imagem propriamente dela.

    Diferentemente da consciência, gerenciada pela temporalidade, o inconsciente é regido pela atemporalidade. Por conseguinte, o inconsciente é movido pelo que é primitivo, infantil, seu funcionamento desoculta um ente que jamais envelhece, que não acredita em sua morte. Quando o indivíduo pensa em sua própria morte, tal pensamento emerge como algo inimaginável, impossível de acontecer.

    A arte e o luto

    Pessoas envolvidas com a arte expressam mais diretamente sobre o conteúdo: literatos, atores, poetas e outros. A arte é uma área convidativa para um contato com a morte através da fantasia. Ela procura expressar a partir da emoção, isto é, o imaginário é a falsa segurança de que a morte está sob controle. É o desejo de potência diante

    daquilo que o torna o homem impotente. Quando o ser humano é espertado a encarar o inominável, a morte, ele é profundamente atingido por uma fissura em seu narcisismo. Ele é abalado em suas convicções e referências. A dor psíquica proporcionada cria um cenário brutal no sistema mental do indivíduo. Uma experiência emocional desagradável. É torturante porque a dor é sentida pelo EU, ele sofre a agrura da intensidade abominosa do afeto.

    O luto é uma dor com finalidade reativa diante da aflição. É o EU que constitui defesas perante a contrariedade que toma conta do espaço psíquico. A dor é a tradução do sentimento de consternação e o EU, diante de tal cenário, procura elaborar a imagem do objeto ou do ser amado. Consequentemente, a imagem elaborada pelo EU e a viva configuração do ser amado no psíquico produz a dor. A dor acontece porque o afastamento daquele que se ama é percebido.

    A dor do luto

    É interessante fazermos um adendo sobre o assunto dor, amigo leitor: quando a dor se manifesta no corpo da pessoa, ocorre uma intensidade de cuidados médicos na área machucada. No momento em que a dor é de teor psíquico, ela incide na representação da pessoa que se ama, isto é, na falecida. Opsíquico humano carrega inúmeras representações, todavia, o sofrimento intenta o EU a focalizar somente na imagem do amado, deixando as demais imagens sem investimento.

    Diante das investidas sobre a imagem da pessoa que se ama, o EU fica dilacerado. Ele fica, de um lado, investindo no amor e, do outro lado, ele está ciente do amor que foi perdido. Leitor: não existe nada mais dolorido do que amar e saber que tal ato de amar está perdido para sempre. A tendência do ser humano é desmentir a morte, recusar o que é inexorável é uma forma protetiva do psíquico.

    A morte descortina o que o cotidiano sempre visou esconder. Diante do cenário da transitoriedade, o psíquico reage por meio de duas maneiras: um sofrido desalento ou uma estrondosa rebelião diante do fugaz. O abatimento produz uma atitude melancólica diante da existência e sua instabilidade. Diante do assunto luto e melancolia, Sigmund Freud tratou de estabelecer princípios que visaram constituir as características específicas de ambos, dado que, à primeira vista, seriam similares.

    O luto é desânimo

    O luto é o desânimo, o desinteresse do indivíduo pelo que ocorre à sua volta, claro, caso seja algo relacionado ao falecido, pode surgir um interesse. O enlutado passa por um dolorido sentimento de perda real, todavia, o enlutado não se sente culpado pela morte que aconteceu, o que pode aparecer é um sentimento de culpa por não ter ajudado mais ou de perda de oportunidade para desfrutar um pouco mais a companhia do ente que faleceu.

    A melancolia também pode acontecer por meio de uma perda, mas não necessariamente uma morte real, física, mas abstrata. É uma tristeza intensa e, se não for cuidada, pode evoluir para uma depressão. A pessoa melancólica perde o interesse por coisas que ela antes gostava e não existe um prazo para a melancolia terminar. Como afirmou o pai da psicanálise: “Luto sem perda”.

    Voltemos, leitor, para o assunto deste capítulo: a revolta é o produto do profundo desejo de uma exceção diante do fim, a vontade de que a perda não tivesse acontecido. O luto mostra que o outro, o falecido, era fonte de segurança. O outro era o sustentáculo para os desejos daquele que o amava. O que era amado animava os sentimentos vívidos e pulsantes no outro.

    A alegra da existência

    A morte é como uma restrição para a alegria da existência, mas, por outro lado, perceber a efemeridade da vida é ter consciência de seu valor. Como a vida do homem depende de um número “xis” de tempo, o valor do viver precisa ser aumentado. Quanto mais a vida é valorizada, mais ela pode ser sentida pelo sujeito. Uma vida cuidada, equilibrada, apreciada são elementos que tencionam para a dignificação do viver.

    O tempo aponta para a preciosidade da vida. O não aceitar a vida e sua descontinuidade torna o momento do luto como algo difícil de lidar. O indivíduo sofre porque investe em suas idealizações, desejando realizar o irrealizável. Portanto, a memória é um eficaz instrumento para a conscientização daquele que faleceu. A vida ligada à memória traz um grande reforço para a elaboração da perda, isto é, o simbólico tem sua importância diante do trauma. Portanto, os rituais fúnebres possuem um alto grau de importância diante da dor.

    O ritual visa organizar os sentimentos ambivalentes, auxiliar nos processos interpretativos, ou seja, ponderar a vida que teve o morto e reelaborar a vida do que ficou. Revendo sentimentos e ressentimentos; revivendo lembranças, perdoando culpas e muitas outras coisas.

    Os rituais fúnebres

    Os rituais fúnebres pretendem elaborar a despedida, o desapego, em síntese, eles ajudam a buscar novas pessoas, novos caminhos. O enlutado, no devido tempo, passa a ser parte da nova realidade que o circunda, nova realidade feita a partir da ausência do outro. O ritual visa deixar uma melhor imagem possível do cadáver, uma imagem que tenha a capacidade de acalmar e esperançar os vivos.

    Pretendendo diminuir o investimento sentimental e o os processos identificatórios com a perda. Sendo assim, a imagem vem permeada de passagem, uma espécie de rumo para uma nova vida, uma direção que faça sentido para os que ficam. O ritual auxilia a reintegrar o enlutado no cotidiano, ele é como um efeito cicatrizador diante das feridas produzidas pela perda de alguém especial.

    A morte produz um sentimento de interrupção, o luto é o sintoma desse corte. É o veredicto da realidade sobre a existência de alguém, entretanto, os laços de amor nunca serão cortados, sobreviverão por meio da saudade, das boas imagens deixadas pelo ente querido. A saudade nada mais é do que o competente sentimento do reavivamento do amor pela pessoa que partiu.

    O processo de luto e suas etapas na elaboração

    Luto é uma palavra derivada do latim, “lucto”, e significa um profundo sentimento de aflição. É um pesar pela morte de alguém, um tempo de consternação pela perda de uma pessoa querida. Na verdade, amigo leitor, o luto é um período necessário para a reequilibração da vida. É um tempo necessário para o enlutado reorganizar seus sentimentos. É uma ferida que, no devido tempo, cicatrizará.

    Como assinala Krüger (2016, p. 9), o luto não é uma espécie de enfermidade, mas uma etapa importante para o processo de desinvestimento da afeição no indivíduo que faleceu. É apenas um estímulo normal para uma dada perda. Krüger (2016, p. 10), a perda traz para o enlutado uma reflexão acerca da função que o falecido exercia sobre sua vida. Com isso, não é apenas pensar na pessoa que foi perdida, entretanto, o que foi perdido neste indivíduo.

    De acordo com Krüger (2016, p. 10), o relacionamento do sujeito com o que foi perdido traz questões sobre as expectativas de retorno que foram suspensas com a morte do outro. E as mesmas, ainda pulsantes na pessoa, pedem por respostas. Como especifica Krüger (2016, p. 10), uma elaboração saudável de um luto deriva do relacionamento do ser humano com suas perdas, isto é, como a pessoa, a datar da infância, trabalhou suas experiências com a morte.

    Os familiares e a vivência do luto

    Outra questão é como os familiares e demais vínculos trataram sobre o conteúdo. São dois aspectos que podem auxiliar ou interferir na vivência do luto. O luto, leitor, é uma certeza na vida do sujeito, por isso, é de suma importância vivenciar saudavelmente seu processo. Porque a pessoa passa por muitos sentimentos: culpa, fadiga, fraqueza, solidão, alteração do apetite, isolamento, raiva, etc.

    Como eu mencionei em linhas anteriores, o luto passa por fases. Existem divergências entre os estudiosos da área, alguns propõem cinco etapas, outros preferem apontar para quatro etapas e assim por diante. Vale frisar uma questão: não existe um modelo, tempo e ordem permanentes no processo de luto. O enlutado, conforme o seu caminhar, pode viver várias fases ao mesmo tempo, pular ou travar.

    O luto, digamos assim, normal, é quando o indivíduo atravessa as etapas, embora com sofrimento, rumo à reorganização da vida. Seria a evolução do processo, visando o amadurecimento e término da dor. Pois bem, vamos para as etapas, de acordo com o modelo da autora Elisabeth Kübler-Ross.

    Fase de negação

    É a defesa psíquica diante da dor. É uma das primeiras fases do luto, ela é permeada por uma forte carga negativa. É simplesmente negar, a pessoa desvia do assunto e procura evitar contatos com os mais próximos. Na etapa inicial do luto, existe um movimento que visa constituir possibilidades para reverter o ocorrido.

    O indivíduo procura permanecer na mesma rotina, provando para si mesmo que a morte do ente querido não aconteceu. É uma etapa onde é criado um mecanismo de defesa, bem provável que o ego influencia na construção da proteção. A dor é contida por pouco tempo, porque uma aceitação parcial emerge no ciclo da negação.

    Fase da raiva

    É uma etapa de rebelião e tristeza, ela ocorre desde o início da perda, nas primeiras semanas, expandindo até seis meses de luto. O enlutado não se conforma com a situação enfrentada, é uma fase de alteração de apetite, choro e dificuldade para dormir.

    A pessoa está simplesmente sofrendo, ela sente medo de perder mais pessoas. O enlutado pode sentir uma grande revolta contra si mesmo, contra a fé ou Deus. A raiva nada mais é do que a confrontação do mundo idealizado pelo sujeito versus a realidade da maneira como ela é: cruel, injusta e finita. Ela também é tida como um mecanismo de defesa, ela garante a não morte da pessoa, isto é, a raiva faz o sujeito lutar incessantemente contra a perda.

    Fase da barganha ou compensação

    É a fase dos acordos, isto é, negociações internas com Deus. É o desejo da pessoa de encarar o ocorrido de uma maneira mais, digamos assim, positiva. Dado que o ser humano não está preparado para o fim da existência, por exemplo: se eu melhorar, prometo ajudar uma quantidade de pessoas; se o familiar ficar bem, prometo visitar um lar geriátrico de dois em dois meses e outras coisas mais.

    O indivíduo procura comerciar com a morte projetos novos ou inacabados: estar mais presente na vida dos filhos; terminar os estudos, conquistar um novo emprego, enfim, é o homem querendo mais tempo de vida.

    Fase da deressão

    Conhecido como o estágio mais longo, é a rendição à realidade, é o chamado: “a ficha caiu”. O enlutado enfrenta um grande vazio, é o tempo da rendição perante o entendimento da verdade. É o reconhecimento de que o inevitável da vida, a morte, está presente na perda do enlutado.

    É um tempo de tristeza muito profunda, isolamento, desânimo, etc. É a falta da pessoa que se foi, tal fase é permeada de muitos momentos de choros e contínuos questionamentos sobre o fim do ente querido.

    Fase da aceitação

    Por fim, vem o ciclo da aceitação, ou seja, quando o luto é elaborado devidamente e o mesmo busca o desinvestimento com o que foi perdido. A vida precisa seguir em frente, claro, não significa que a pessoa está completamente livre do sentimento de perda, mas o mesmo vai sendo elaborado e reelaborado com o decorrer da vida. A tristeza pode aparecer, a dor, a saudade, no entanto, o luto passou.

    A pessoa supera, mas não esquece. As fases do luto são de extrema importância para a psique do ser humano. Passar por elas é necessário e inevitável, com isso, o indivíduo tem a constatação da perda, quer dizer, a pessoa tem consciência do rompimento da relação através da morte, o amor perdido e sua potência permanece vivo, mas é por meio desse mesmo amor, sua intensidade, que a pessoa consegue se reconstruir. Desinveste no que foi perdido para investir em si própria, a dor é transformada em amor.

    Luto e pandemia

    Leitor: é de suma importância abordar o assunto luto sob o viés da pandemia. Pois o ano de 2019 colocou o mundo em xeque com o início da infecção, isto é, um novo ciclo sobreveio à humanidade. Ciclo feito de dias incertos, um primeiro e grande medo dos últimos anos. De início, escreverei um breve histórico acerca do advento da pandemia, logo, redirecionarei o texto para o assunto abordado neste artigo.

    A pandemia COVID- 19, iniciada entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020, um grupo de pessoas internadas com pneumonia de causa desconhecida na cidade de Wuhan, província de Hubei, China. Com os devidos exames feitos, um novo betacoronavírus foi descoberto por meio do sequenciamento genético através das amostras de células epiteliais das vias aéreas dos infectados.

    O novo Coronavírus foi isolado e chamado de SARS- CoV- 2, causador da doença COVID- 19. No dia 11 de março, a OMS, Organização Mundial de Saúde, definiu o surto como pandemia, após o número de novos casos diários fora da China terem aumentado 13 vezes. Seis dias depois, dia 17 de março, a primeira morte de COVID- 19 foi registrada no Brasil. Foi um homem de 62 anos, internado em um hospital particular de São Paulo.

    O estresse mundial

    Com histórico de hipertensão e diabetes, a evolução da doença foi rápida. O diagnóstico foi dado sete dias antes, com registro da morte no dia anterior à divulgação. Com o surto de COVID- 19, um pânico generalizado irrompeu o mundo, constituindo um estresse mundial na saúde mental das pessoas. Fora as chamadas cepas, variantes do vírus: HCov229E; HCov-OC43; HCov-NL63; HVCov HKU1, além do SARS-Cov.

    Houve um aumento considerável de internações e mortes, por conseqüência, a corrida pela vacina também havia começado. E começaram a aplicar o Regulamento Sanitário Internacional, RSI, visando o cuidado protetivo das pessoas. O COVID- 19 passou a ser um evento fatal e um risco para todos os países. E havia os precedentes: H1N1, Poli vírus, Ebola, Hantavírus e o Zica, este com as microcefalias e más- formações congênitas.

    Com a mudança de postura da OMS, o anúncio da pandemia, 19 países já estavam tomados pelo vírus. A Itália tinha sido a primeira com uma significativa incidência inicial. No dia 03 de agosto de 2021, 192 países do globo já estavam infectados pela pandemia. Computando num total de mais 4.234,77 óbitos atribuídos ao COVID- 19.

    Uma pneumonia viral

    A humanidade estava apavorada, uma vez que a infecção gera uma pneumonia viral grave e com insuficiência respiratória potencialmente fatal. Invadindo os pulmões e trazendo sintomas graves: febre, tosse, perda do olfato e paladar, garganta inflamada, corrimento nasal, espirros, diarréia e falência dos órgãos. O impacto psicológico foi imenso e profundo, gerando ansiedade, depressão, suicídios, medo do contágio, isolamentos, preconceitos, etc.

    Havendo uma piora no quadro de saúde psicomental das pessoas. A esperança do ser humano passou a ser a vacina e o fim da contaminação. Sendo assim, uma grande onda de angústia sucedeu sobre as pessoas, assim, havendo um agravamento no que tange ao aspecto relacional: violência doméstica, casos de pânico, fobias e o conflito com os órgãos fiscalizadores. As agressões proliferaram, sendo públicas ou privadas, acentuando os sofrimentos mentais: um grande medo da morte, a dor pela perda de uma pessoa estimada, o sentimento de culpa e outros.

    Com os cenários adversos avolumados, o ser humano precisou lidar com o sentimento de vazio e a incerteza do futuro. A pandemia proporcionou para o ser humano uma nova e inusitada maneira em lidar com a dor da perda, em um contexto nunca antes vivido. Conforme as prescrições dos órgãos sanitários, na parte mais crítica da pandemia, o velório de um falecido pela COVID- 19 deveria ter um curto tempo de duração.

    Sem aglomeração

    Com o objetivo de evitar a aglomeração e a contaminação. Além da restrição do tempo, o caixão deveria estar fechado, uma vez que o cadáver estaria enrolado em um lençol e ensacado, sem contato com outros indivíduos. Como imaginar o processo do luto? Também vale lembrar da situação ocorrida em Manaus, onde houve um acelerado crescimento de mortes e as vítimas foram enterradas em valas coletivas, no Cemitério de Tarumã. Para evitar aglomerações, a Prefeitura estabeleceu a restrição de acesso de 5 pessoas por família.

    O tempo da pandemia proporcionou para o ser humano um sentimento de impotência, dado que muitas pessoas não conseguiram enterrar seus entes queridos vitimados pela COVID- 19. Isso foi algo torturante, porque a morte é uma grande geradora de angústia para o enlutado, portanto, realizar um ritual fúnebre é de muita importância para, entendamos assim, dar um sentido para o momento de dor. Através do rito fúnebre, o indivíduo vai absorvendo a ideia de que o falecido não estará mais presente.

    Ainda mais: em decorrência da ausência de rituais fúnebres, muitos enlutados ficaram com dúvidas acerca do corpo, afinal, o caixão estava lacrado: será que era o corpo? E se for de outra pessoa? O processo do luto virou um processo atroz. A pandemia ocasionou uma perda em escala mundial, não só apenas de vidas humanas, mas de rotinas, de vivências sociofetivas, estabilidade financeira, ocasionando problemas de cunho emocional para os que sobreviveram.

    Uma aflição psíquica

    Outro aspecto a ser destacado é que, com a supressão dos ritos fúnebres e a não adaptação às perdas, diferentes pessoas de um mesmo núcleo familiar passaram a ter uma ocorrência maior de adoecimento. Com a predominância da não elaboração dos traumas, perdas, a vivência geradora de sofrimento não encontra uma simbolização, uma significação, assim sendo, tencionando para a aflição psíquica. É a ausência da despedida, o vazio por não tido os ritos tradicionais.

    O tempo da pandemia foi uma época onde o acesso à sensibilização foi suprido. Quando escrevo sobre sensibilidade, falo sobre o enlutado que não pode estar mais próximo do corpo do familiar amado: olhar, chorar, dizer algumas palavras, tocar, orar, etc. Com tal defasagem, é gerado o chamado luto complicado. É quando o indivíduo experimenta uma desorganização prolongada e que o impede de retomar suas atividades com certa qualidade.

    O luto complicado é a intensificação do luto até o ponto em que o enlutado se sente sobrecarregado e não avança para uma melhora. E o luto complicado apresenta sintomas: dificuldades para aceitar perdas e um foco excessivo nas lembranças da pessoa falecida; intenso desejo de encontrar a pessoa; dificuldade em lidar com as coisas do cotidiano; repulsa para aceitar a morte; estado de humor alterado; comportamento antissocial; ideação suicida; a falta de perspectiva para a vida, etc.

    A importância da saúde emocional

    O enlutado passa por um dolorido processo de autodesvalorização, porque ele se identifica com o amor que foi perdido, enfim, é preciso cuidar. O tempo pós- pandêmico acolhe inúmeras pessoas com problemas de ordem psicológica. Isso evidencia a importância de que sejam promovidas estratégias voltadas para os serviços sociais e apoio psicológico para as pessoas enlutadas.

    A ausência do cuidado da saúde emocional pode prolongar o tempo do luto. É de grande importância dar atenção, digo, realizar intervenções junto a esses enlutados que sofrem. Evitando que tal situação se torne patológica: síndrome de pânico, ansiedade, vazio, depressão, dentre outros. A psicologia e a psicanálise são ferramentas essenciais para o processo de discernimento a respeito da morte.

    O profissional que cuida da saúde mental precisa construir alternativas estratégicas para o enlutado superar o luto. É caminhar lado a lado no sofrimento do paciente, com uma atitude de solidariedade, amparo e empatia, de modo que o sujeito se sinta acolhido. O terapeuta precisa estar aberto à escuta, permitindo o paciente desabafar. Sendo assim, diante de tal caminho, é possível construir o luto.

    A condução de si próprio

    O indivíduo poderá ressignificar suas vivências, despertando sua autonomia e capacidade para conduzir a si próprio, enxergando as possibilidades que a vida oferece. Cada ser humano é uma singularidade, com isso, o profissional precisa estar atento com a evolução do paciente. Caso seja preciso, é bom encontrar novas estratégias diante da pessoa. Para ela, finalmente, se reencontrar e elaborar a dor da perda do ente querido.

    Conclusão sobre o luto

    Estamos no último tópico deste artigo, amigo leitor, repito: é preciso continuar falando sobre o luto. O ser humano, de uma forma incansável, sempre buscou pelas suas origens, como maneira de, pensemos assim, dar fundamento para sua existência no mundo. Logo, o ser humano construiu tradições culturais, estudos científicos, visando à construção de representações acerca da morte. Já que a morte é um acontecimento inevitável.

    O luto é o Eu que se ergue, apelando para todas as suas forças, mesmo correndo o risco de se esgotar-se e as concentra em um único ponto, o da representação psíquica do perdido. É neste momento que ocorrem lembranças, saudade, idealização, a necessidade de falar sobre o que ou quem foi perdido. Sofrer é parte da existência humana, ainda mais: o sofrimento é responsável por posicionar o sujeito no sentido da vida.

    A maneira como a pessoa lida com as situações da vida, influencia diretamente na forma que ela vai lidar com uma perda. Vale lembrar que vivemos numa sociedade completamente imediatista, com isso, é muito comum ouvir as pessoas dizerem que não tem tempo para o sofrimento.

    A intensidade da dor

    Quando algo de ruim ocorre, o psíquico fica em choque, até que ele consiga encontrar um significado adequado para o acontecimento. Lidar com a perda nunca será fácil, pelo contrário, até que a pessoa se depare com ela não se conhece a intensidade da dor que ela pode ocasionar. Repito: não é algo fácil, mas não é impossível, ou seja, quando a mente tem dificuldade para lidar sozinha com o sofrimento, o cuidado emocional é um bom caminho.

    Referências

    BLANK, Renold J. Nossa vida tem futuro. 2° ed. São Paulo: Paulus, 1991.

    CORREA GUANDALINI, Felipe. As transformações da relação do homem com a morte. Disponível em: https://www.psicanaliseclinica.com/mona-lisa/. Acesso em 27 de setembro de 2022.

    KRÜGER, Tiago André. Aconselhamento pastoral nos processos de intervenção do luto – uma perspectiva interdisciplinar entre psicologia e teologia. 2016. 46 f. Trabalho de conclusão de curso (monografia)- Curso de Teologia, Universidade Luterana do Brasil, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, 2017.

    KUBLER- Ross, E. Sobre a morte e o morrer. 8ª ed. São Paulo: Verus Editora, 1988.

    FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileiras das Obras Completas, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1917 [1915]/1974.

    Este artigo sobre luto e a importância de falar sobre o luto foi escrito por Artur Charczuk ([email protected]), pastor e psicanalista no Rio Grande do Sul e-mail.

    One thought on “Luto: é preciso falar

    1. Mizael Carvalho disse:

      Texto muito bom, profundo e explicativo. Parabéns ao leitor

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