Hoje entenda sobre a neutralidade. Arrosi e Silva (2022) entendem que ao se produzir uma intervenção psicanalítica, algo se introduz, reverbera e produz deslocamentos. Há sempre uma escolha, uma subjetividade daquele que intervém, ou não é o psicanalista, também, alguém atravessado pela cultura, pelo discurso e pelos valores de uma sociedade que ele também faz parte?
Qual esforço é necessário para desvencilhar-se da sua realidade social? Buscarei neste artigo, provocar o debate sobre: “a irredutível tensão entre a posição ou a função do analista e tudo o que ele presentifica, isto é, o seu ser” (VITORELLO & KUPERMANN, 2016, p.26).
A Neutralidade, a ética e o confortável lugar da isenção segundo a Psicanálise
Freud define como contratransferência toda a transferência do analista em relação ao paciente, ou a resposta do analista à transferência do paciente. Ou seja, a reação emocional do terapeuta ao paciente. O uso da contratransferência no tratamento psicanalítico é um conceito cada vez mais admitido, pois ela ajuda a criar um ambiente com confiança, a fim de evitar, em muitos casos, um lugar em que a necessidade de se esconder do analista acabe impactando e gerando desconfiança na relação e, iniba o paciente de expor sua intimidade.
Já a neutralidade, a observamos como um mito, impossível de ser alcançado, pelo simples fato do analista ser humano carregado de subjetivações, não somente na fala, mas também em seu modo de vestir, falar, se comportar, entre outros (ARROSI E SILVA, 2022).
Ignorar e inibir as sensações contratatransferenciais gera insensibilidade – contrapartida da neutralidade – como defesa da resistência aos afetos mobilizados na relação analítica. Portanto, a contratransferência não precisa necessariamente ser dominada, muito menos mascarada, uma vez que, ao ser ocultada, acaba por inibir o processo de atenção equiflutuante e facilitar atuações contratransferenciais (ZAMBELLI et al., 2013) . Os elementos que podem interferir no processo são, então, tomados como aqueles que precisam ser olhados e trazidos à tona.
A neutralidade e a Psicanálise
Estar neutro não significa isentar-se, “mas sim poder suportar o que causa aversão, assim como questionar o que causa atração” (SOUZA & COELHO, 2012, p.98). Confunde-se a neutralidade e abstinência enquanto princípio com uma psicanálise que se omite de pensar sobre a sua responsabilidade social. Compactua-se com a deslegitimação das discussões culturais, sociais e políticas, como que o singular do sujeito não estivesse vinculado a todo esse contexto.
A psicanálise, assim como os psicanalistas e os pacientes encontram-se situados dentro de uma história e carregam a história cultural e as peculiaridades particulares que os constituem. Diante disso, é impossível pensar em um lugar neutro de meramente observador.
Dessa forma, o conceito de neutralidade, faz mais eco com o entendimento hegemônico, da norma padrão, do status quo, do conceito político do que da neutralidade que exige a suspensão dos afetos contra transversais que circulam nas relações de nossos objetos de pesquisa. Cito neste momento, dois teóricos que corroboram com a problemática levantada nesse artigo:
- Karen Horney (1939) já denunciava o papel da cultura na formação da teoria psicanalítica que muitas vezes atribui à “natureza humana”, aspectos que não passavam dos traços culturais de um determinado tempo histórico.
- Louis Althusser, filósofo e teórico das ideologias, as quais ele compreendia que sempre existem em um aparelho (públicos e privados), em sua prática (nossos rituais) ou de práticas (na nossa vida cotidiana, na forma como nos vestimos, como nos comportamos).
Ao ler esta compreensão, relembro o conceito de superego e seus três objetivos:
- a inibição,
- a força e
- a condução à “perfeição”,
E conecto esta relação com uma ideologia disciplinadora em seus dispositivos de controle e de adoecimento. Visto hoje nos discursos da produtividade, competitividade, no rompimento dos laços sociais, na individualização do ser humano, no narcisismo e indiferença, no consumo para a satisfação imediata, na obediência inconsciente, na dívida permanente como na sensação de culpa de quando “dorme-se enquanto eles trabalham”, ou mesmo no atendimento aos discursos biologicistas que o mal estar (angústias, cansaços, desamparos, pânicos), nesta época, é resultado de desequilíbrios hormonais ou problemas da ordem do nível de dopamina e/ou ocitocina.
Neste caso a prescrição são os conhecidos ansiolíticos, tratando na maioria das vezes, o sintoma e não a origem psíquica da doença.
A neutralidade o a psiquê
Adoecemos psiquicamente, também, por aquilo que nossa cultura prescreve como ideal e que, em contrapartida, prescreve como adoecedor. Para compreendermos esse processo, precisamos qualificar o sentido subjetivo do que acontece ao sujeito, lembrando sempre de seu caráter mediado pela cultura. As ciências “psis” criaram uma série de situações “ideais”, bem como outras “traumáticas”, as quais foram divulgadas e se fizeram entranhar na cultura popular (ZANELLO, 2018, p.144).
A reflexão sobre o campo social, a politização do sofrimento e a desconstrução da ideia de neutralidade são necessárias e foi nesta escuta que Freud em 1893-1895 denunciou os modos de extrema repressão à sexualidade feminina, ao analisar a histeria.
Como focar-se apenas no esgotamento de uma paciente em profunda angústia sem considerar o sofrimento gerado por uma precarização em larga escala de seu trabalho? Como atender uma mulher vítima de uma relação abusiva e atentar-se apenas para sua posição passiva diante do outro, sem considerar a sociedade estruturalmente machista e patriarcal que esta paciente está inserida?
Uma sociedade hierarquizada
A postura ética de um psicanalista também é atravessada pelos afetos aos quais ele escuta e pelo que deixa de escutar diante de uma posição confortável de uma neutralidade isenta.
Precisamos retomar historicamente a psicanálise, no seu trabalho na singularidade que é reinventada a cada caso e que observa o coletivo no encontro do singular, e quiçá, dessa forma, favorecer a emancipação dos laços sociais desta sociedade hierarquizada pelo poder do capital, alienada em sua própria “psiquê”, permitindo assim a diminuição do sofrimento e do adoecimento de nossos pacientes em um modelo de presença sensível do analista, em uma forma de escuta sem relações verticais, aberta a mutações culturais e sociais como já apontava Ferenczi (1928-1992) na sua formulação acerca do tato psicológico e da elasticidade da técnica.
Portanto, é possível concluir que reconhecer a “subjetividade do analista” (ARROSI E SILVA, 2022) como uma ferramenta de dupla função para o trabalho da análise: tanto evita o processo de “doutrinação do analista” como também possibilita a produção de algo singular que se dá no encontro entre duas subjetividades. Requerendo do analista, simultaneamente, presença implicada e reservada ao construir o espaço que contém a repetição e a produção do “novo”, de forma conjunta entre paciente e analista, ou entre psicanalista e campo de atuação, ou entre pesquisador e objeto de pesquisa.
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Referências
Vitorello, D. M.; Kupermann, D. (2016). De tabu a Filotetes: Ferenczi e o movimento psicanalítico. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 68(3), 17-31. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672016000300003
Zambelli, C. K.; Tafuri, M. I.; Viana, T. C.; Lazzarini, E. R. (2013). Sobre o conceito de contratransferência em Freud, Ferenczi e Heimann. Psicologia Clínica, 25(1), 179-195. https://doi.org/10.1590/S0103-56652013000100012
Souza, C. R. A.; Coelho, D. M. (2012). O neutro em psicanálise: Da técnica à ética. Fractal: Revista de Psicologia, 24(1), 95-110. https://periodicos.uff.br/fractal/article/view/4882
Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris.
ARROSI, Kellen Evaldt e SILVA, Milena da Rosa. A escuta em psicanálise: Abstinência e neutralidade em questão. Psicol. clin. [online]. 2022, vol.34, n.1 [citado 2023-09-09], pp. 121-143 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652022000100007&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0103-5665. http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0034n01A06.
Este texto sobre neutralidade foi escrito por Karen Fernanda Nicoletti ([email protected]), nascida e residente do Rio Grande do Sul – Brasil, Atriz, artesã, gestora de projetos, fotógrafa, ativista do movimento Amazônia de Pé, voluntária na Casa de Acolhimento Mulheres Mirabal, militante do movimento Luta de Classes do RS, graduada em Tecnologia da Informação e estudante de psicanálise no IBPC (Instituto Brasileiro Psicanálise Clínica).