normalidade e individualidade

Normalidade e individualidade: é possível conciliar?

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Vamos abordar o tema normalidade e individualidade. É possível conciliar esses elementos? O normal e o desenvolvimento individual: é possível o “e”?

Gostaríamos de adiantar um pouco da intenção proposta no título. Trata-se de uma espécie de “abuso” com questão da filosofia, mas totalmente pertinente à psicanálise. A questão do desenvolvimento individual é proposta nesse ponto mais como processo de individuação (SIMONDON, 2015; COMBES, 2017).

Entendendo sobre a normalidade e individualidade

Em outros termos todos aqueles fatores e elementos que levam o indivíduo a se manifestar como ele é/tornou-se ao longo de sua vida. Também seria parte dessa proposta pensar a questão da psicanálise existencial de cunho tanto heideggeriano como sartreano. Mas a psicanálise existencial deixa brechas: Sartre não compreendeu o inconsciente (DOSSE, 2007) e, por isso, sua dura crítica feita pelos estruturalistas (PERDIGÃO, 1995).

Por este motivo o explicitado aqui como desenvolvimento individual é muito mais um processo de individuação no qual estariam incluídas as fases do desenvolvimento psicossexual, seus processos afetivos e até mesmo uma indagação central para a psicanálise: existiria um indivíduo? Afinal a psicanálise rompe em seu arcabouço teórico e suas colocações transversais importantíssimas à filosofia o indivíduo cartesiano moderno (BIRMAN, 2003; PLASTINO, 2001). Nunca será possível dizer – e com o atual desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação (TICs) menos ainda – que existem indivíduos. Talvez menos ainda que existem indivíduos sãos.

Seria a pressuposição de não sermos atravessados por injunções de todas as ordens e menos ainda por injunções afetivas a nos acompanhar em cada segundo de nossas vidas. A vida é um movimento heterológico (conceito advindo de George Bataille e extremamente utilizado por Lacan – ROUDINESCO, 1994) e por isso muito difícil acreditar na possibilidade de uma “ontologia individual”, um ser que se coloca com uma essência e basta encontrar esta.

Transferência, normalidade e individualidade

Vemos esse tipo de proposta não teórica, mas extremamente vulgarizada no que chamo de “estrutura imagética dos raciocínios” muitos deles lugares comuns e muito longe de ser raciocínio: repetição apenas do senso comum. Adendo importante: a psicanálise deve lidar com o senso comum, com ele dialogar, com ele tergiversar, às vezes concordar, muitas vezes criticar e refletir-junto, ou seja, analisando e analista em seus processos de encontros e desencontros por meio da transferência.

Porém a “estrutura imagética” referida impregna-se do senso comum acreditando existir um “interior”, o “conhecer-se interiormente” e tantas outras crenças parecidas e perdidas de uma psicanálise que se descolaria da realidade social, da invenção freudiana também como crítica social, da psicanálise como o entendimento de que há “infamiliares” (Unheimlich) em nós: enfim, seria a demolição das crenças de um núcleo individual. O máximo que temos são delineamentos e potencialidades de repetições que marcam nosso inconsciente, mas este é assunto para outro momento.

Para prosseguir nossa argumentação, faremos uma citação de Darian Leader (2013) no sentido de demonstrar as cadeias frágeis que separam o normal da loucura, o normal e o patológico (CANGUILHEM, 2002). Pode-se entender a citação não apenas como uma separação, mas como as linhas fluidas. Aliás, essa questão da fluidez e dos limites e a intercessão com a psicanálise foi extremamente importante em pensadores como Deleuze, Guattari, Foucault entre tantos outros.

A fala do paciente

No primeiro capítulo de seu livro encontramos das mais duras e bem feitas argumentações sobre a não medicalização e os perigos (ver essa questão em Lacan que era psiquiatra em SAFATLE, 2017) postos pelo DSM (Manual Diagnóstico Estatístico de Perturbações Mentais ou, em inglês, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) e sua compartimentação definida de “sintomas” nunca de “estruturas da subjetividade”, da fala do paciente.

Assim nos diz o autor que a “concentração nos sintomas externos significou, efetivamente, que a experiência pessoal do indivíduo foi desvalorizada: o importante eram os sintomas que ele exibia, e não seu modo de processar esses sintomas, ou de compreendê-los, ou sua maneira de conferir ou não sentido a sua experiência” (LEADER, 2013, p. 42). Com isso acaba também a “causalidade psíquica complexa, ou até de vida interior” (id., p. 43).

Toda a argumentação posta aqui serve como referencial para pensarmos também a problemática das fases psicossexuais. Em outros termos, o risco que se corre ao fazer das mesmas enquadramentos necessários e estanques, desprezando conflitos e complexidades. Assim a argumentação desenvolvida como redação tem como finalidade realmente o cuidado dos “fechamentos diagnósticos”, os “fechamentos” dos ouvidos a uma realidade que sempre nos excede, a realidade do indivíduo e sua total singularidade na clínica. E nem é o caso de desenvolver aqui a problemática da clínica como crítica social importante, para isso ver o livro de Safatle “O Circuito dos Afetos” (2015, pp 285-293).

Normalidade e individualidade: é possível conciliar?

A questão posta é entender a singularidade absoluta daquele indivíduo, não seu oco e vazio (o que seria o diagnóstico do DSM ou um “enquadramento” nas fases psicossexuais de modo totalmente alienado do mais importante, a experiência singularíssima do ser diante de nós). Porém também não esquecer o entendimento que o indivíduo é feixe de múltiplas determinações, sobredeterminações, feixe enorme de potências no sentido de Espinosa, como referimos anteriormente ao falar de individuação.

Essa problemática surgiu ao longo do entendimento das fases psicossexuais e suas aberturas, mas seus cuidados também. Surgiu, por outro lado, da argumentação do livro de Philippe Van Haute e Tomas Geyskens (2016) ao colocarem a questão da sexualidade e do Édipo diante de potencialidades da leitura e significação da psicanálise e dos indivíduos dentro dessa narrativa que é a clínica em seus aspectos também antropológicos e filosóficos.

A ideia central e nuclear estaria na possibilidade ou potencialidade de lidar com a polimorfia da sexualidade humana. Neste sentido eles seguiriam uma tradição citada acima de filósofos como Foucault, Deleuze e Guattari em uma elaboração psicanalítica crítica ao familiarismo. E os autores deixam isso bem claro logo na elaboração e nas teses iniciais de seu livro (pp. 22-25) ao mostrarem a leitura “patoanalítica” de Freud na qual há a “desvalorização freudiana da distinção entre a normalidade e patologia” (id., p. 22).

Os mecanismos da fala, normalidade e individualidade

Sustenta-se, então, neste pequeno texto (redação) as possibilidades e os cuidados necessários da escuta, dos mecanismos da fala, da transferência para aproximar-se deste singular absoluto dentro da narrativa clínica que é o indivíduo. Os autores apontam essa problemática entre as páginas citadas como a patoanálise versus psicologia desenvolvimentista.

Essa potencialidade de pensar e relativizar o normal e o patológico nos coloca diante de formas diferentes do ouvir, do escutar e das simbolizações as mais diversas possíveis. A questão do desenvolvimentismo, então, estaria profundamente associado ao Édipo, suas relações e como as resoluções colocariam os sujeitos em formatos (isso mesmo, como se fossem fôrmas) de neuróticos ou não, como a resolução do Édipo poderia associar as pessoas à determinadas resoluções de desenvolvimento psicossexual, mas também integração social.

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    Isso faria entrar pela porta de trás algo que teria ficado esquecido pela patoanálise possível de leitura na desvalorização que Freud faria entre normalidade e patologia. Passaríamos da relatividade entre normal e patológico, para alguns liames determinadores dessa espessura que se queria muito mais fluida e não “eterna”, “perpétua”, inscrita como “pedra” na estrutura e organização da psique humana.

    Considerações finais sobre normalidade e individualidade

    Sociedades diferentes podem simbolizar de forma também diferente seus sofrimentos, suas angústias, suas aflições, paixões, medos, relações com o outro, relações com o que pode matar e assim vai.

    Penso assim, ser importante para o futuro analista, cuidados no que acima se chamou de “fechamento” e incluir entre seus estudos a antropologia, as religiões, artes, filosofia entre outros.

    Não significa dominar todos esses campos – tarefa de toda uma vida para cada pensador ou um único conceito de um pensador, porém nada estranho ao espírito freudiano na querela sobre a análise leiga ou a formação médica.

    Referências Bibliográficas

    BIRMAN, Joel. Freud & a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003. CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. COMBES, Muriel. Simondon: uma filosofía de lo transindividual. Buenos Aires: Cactus, 2017. DOSSE, François. História do estruturalismo: o campo do signo (vol. I). Bauru: Edusc, 2007. HAUTE, Philippe Van; GEYSKENS, Tomas. Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia da histeria em Freud e Lacan. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. LEADER, Darian. O que é loucura? Delírio e sanidade na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2013. PERDIGÃO, Paulo. Existência e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM, 1995. PLASTINO, Carlos Alberto. O primado da afetividade: a crítica freudiana ao paradigma moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. ROUDINESCO, Elisabeth. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, o desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. _______________ Introdução a Jacques Lacan. 4 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. SIMONDON, Gilbert. La individuación a la luz de las nociones de forma y de información. Buenos Aires: Cactus, 2015.

    O presente artigo foi escrito por Marcelo Micke Doti. Professor e pesquisador em regime integral (RJI) do CPS (CEETEPS) do Estado de São Paulo na Faculdade de Tecnologia (Fatec/Campus Mococa), psicanalista (IBPC, em formação) e onívoro intelectual. Formado em Ciências Econômicas (Unesp/FCLAr) estudando a problemática do trabalho em Marx. Mestrado em Filosofia Política (Unicamp/IFCH) e em Sociologia (Unesp/FCLAr) abordando a “Ontologia”, o conceito de irracionalismo e os problemas advindos desses conceitos e G. Lukács . Doutorado em Planejamento de Sistemas Energéticos (Unicamp/FEM) defendendo tese sobre filosofia da natureza, espaços antropogênicos e os problemas da civilização atual seguindo no pós-doutorado em Pesquisas Energéticas (UFABC/CECS) com mesmo tema. Contato: [email protected]

    2 thoughts on “Normalidade e individualidade: é possível conciliar?

    1. Nesse quesito, do Normal e Individualidade, numa Sociedade Heteronormativa em muitos aspectos, há ainda como consenso de fazer consultas no âmbito dos órgãos sexuais, com especialista que seja do mesmo genero, mas no contexto atual, de atração fluida e bissexualidade mais em evidência, como “ficamos”? Quando fui ao Andrologista, pedi e-mail dele à Secretária e, informei que mesmo cisgênero, era homossexual, apenas para dar um esclarecimento, que em nada iria interferir na minha decisão de escolha, por ser atendido por ele! Ele agradeceu e fez pessoalmente o preparo da maca! Quando me examinava, ainda achei interessante a Reflexão, do que às vezes pode ser definido como normal ou individual! Normal é a atração (todos a sentem, de menor ou maior grau) e o fisiológico dar o respectivo feedback. Já o individual, seria acrescentar afeto/carinho! E o mais interessante, segundo ele, é a questão do “homem em si”: muitos com suposta disfunção erétil e ejaculação precoce, no exame são perfeitamente normais no orgasmo e ejaculação, pelos estimulos recebidos, mas sem a psique, interferindo e seja qual razão for! Ai ponderei: a gente conversa mais, muitos geralmente em barzinho; e que eu havia revelado a minha sexualidade a ele e, até o tema sexualidade foi um dos assuntos durante o exame!

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