A chamada “transição capilar” vem sendo disseminada nas redes sociais como um ato de coragem e retorno à essência de muitas mulheres cacheadas e crespas. Tal decisão vem influenciando a muitas usuárias de alisamentos químicos que começaram a saga da escova progressiva quando ainda eram muito jovens e, desde então, não abandonaram mais o procedimento capilar.
Entendendo a transição capilar
Por meio de uma espécie de autoterapia, a pessoa em processo vai buscando, internamente, meios de se entender melhor e aceitar características físicas inatas e peculiares.
Os motivos que levam a cada uma dessas pessoas a deixarem seus cabelos naturais aparecerem e abandonarem o alisamento químico variam. Ao observar perfis em redes sociais que tratam do assunto, pode-se perceber que entre tais incentivos estão: gestação, modinhas, cortes químicos ou até mesmo tratamentos de saúde nos quais se faz necessário cortar ou raspar a cabeleira por completo.
O intrigante é que, ao ouvir os depoimentos de quem venceu a transição e passou a usar seus cabelos naturais, nota-se que as causas do início do alisamento estão relacionadas a traumas da infância.
A transição capilar e o bullying
Muitos cabeleireiros ao realizarem o chamado BC (Big Chop/grande corte) e eliminarem toda a parte alisada do cabelo, filmam o procedimento e realizam alguns questionamentos às suas clientes como: com que idade começaram a alisar os cabelos; o motivo que as levaram a fazer tal procedimento e por que decidiram retornar às origens.
As respostas geralmente estão relacionadas ao bullying na escola, rejeição e críticas da própria família, bem como adaptação aos padrões sociais. No caso das gestantes, a química capilar, geralmente, é suspensa por orientação médica por um longo período e, nesse cenário, a mãe se vê na missão de reinventar seus penteados e encontrar outras formas de se sentirem belas e com autoestima em dia pelo bem da saúde de seu filho.
Outras afirmam que com o passar do tempo não se reconhecerem mais com o cabelo alisado. Uma vez tomada a decisão de parar com os alisamentos, as emoções começam a se misturar, pois os cachos não voltam da noite para o dia e, para aquelas apegadas ao comprimento, é ainda mais difícil aguardar de um a três anos de crescimento até fazer o tão sonhado BC.
A autoestima
No decorrer do processo, a autoestima oscila e muitas se sentem tentadas a retornarem ao alisamento. Lidar com duas texturas distintas do cabelo é de fato uma fase que requer aceitação, paciência e criatividade.
É importante salientar também que, para que o processo seja finalizado sem ser interrompido é necessário apoio de quem convive, uma vez que muitas pessoas se sentem dependentes da aceitação de familiares e amigos para seguirem com suas decisões mais radicais.
A transição capilar como terapia
Quem consegue vencer todo o processo e retornar ao cabelo natural se depara com novos aprendizados como as variadas formas de cuidar da nova textura.
Voltando aos depoimentos que é possível observar em perfis de redes sociais, é de importante relevância citar o que a maioria dessas “vencedoras” afirmam ao finalizar o processo.
Muitas dessas mulheres afirmam que passaram a se conhecer melhor durante o período da transição; que as mudanças ocorrem no interior e não somente na aparência, já que ao decidirem voltar ao natural que foi visto pela última vez na infância, remete a tantos sentimentos que podem ser transformados ou ressignificados a partir da transição.
O inconsciente e a transição capilar
E onde a psicanálise entra nessa história toda de cabelo? A psicanálise tem como um dos pilares de análise dos indivíduos o “inconsciente”. Esse “espaço interior” por vezes está “trancado” há bastante tempo e passa a ser acessado quando se faz alguns questionamentos de épocas remotas como a da infância.
Ao ouvir o analisando, o psicanalista o auxilia a refletir sobre questões que, por si só, talvez aquele indivíduo não conseguiria ou levaria bastante tempo. Tais indagações possuem respostas das quais, por vezes, o indivíduo apenas não parou para refletir ainda. E, uma vez respondidas, a forma de enxergar os problemas ou inquietações é gradativamente modificada, transformada.
Uma criança que, desde muito nova, enxerga seu cabelo como feio, fora da moda ou difícil de cuidar, certamente terá muita dificuldade na fase adulta de aceitá-lo novamente após anos de modificação na estrutura dos fios. Essa onda de transição tem sido uma grande aliada no resgate da autoaceitação e melhora da autoestima de muitas mulheres que mal tiveram a oportunidade de observar seus cabelos naturais na fase adulta e decidirem se gostam ou não do que veem.
O uso da química e a transição capilar
Muitas delas inclusive, chegam a afirmar que não conhecem seus cabelos; não sabem realmente qual a real textura de seus fios, pois, com o uso da química, a cada dois ou três meses de crescimento capilar, o alisamento era reposto, impossibilitando assim qualquer chance de esta pessoa se observar de forma 100% natural.
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O BC, portanto, pode ser uma grande surpresa para muitas delas; há também aquelas que após o período da transição, voltam a alisar seus cabelos, mas dessa vez, de forma mais consciente, ou seja, ao observar suas duas versões, escolhe a versão alisada e tudo certo até então.
É importante salientar também que em casos mais específicos, o que pode ter ocorrido foi justamente os traumas não terem sido superados e um possível complexo de inferioridade ao enxergar seu cabelo real, ter retornado sem ser devidamente curado. A Psicanálise seria de grande relevância em tais situações.
O autoconhecimento
Sendo assim, pode-se afirmar que a transição capilar tem servido como terapia ou um divã na vida de muitas pessoas. Os resultados que muitas delas só teriam ao serem analisadas em um consultório psicanalítico tem sido conquistado com o autoconhecimento a partir da simples prática de parar com o alisamento dos cabelos e permitir que os fios naturais retornem.
O resultado de toda essa mudança tem gerado para muitas pessoas, sensação de liberdade e autoaceitação, embora algumas delas ainda necessitem de auxílio psicanalítico no decorrer desse processo.
Este artigo sobre transição capilar e relação com terapia foi escrito por Roberta Clea Cardoso de Oliveira ([email protected]), Estudante de Psicanálise Clínica, Graduada em Letras Vernáculas (UESB), especialista em Gestão Escolar, Ensino de Português e Literatura, e em Coordenação Pedagógica. Baiana, apaixonada por Jesus Cristo, professora de ensino fundamental anos finais, fascinada por observar o comportamento humano.
One thought on “Transição Capilar: autoterapia com traços de psicanálise”
Perfeito: claro, realista e dinâmico