Vamos propor uma análise psicanalítica do filme “O Quarto de Jack” (“Room”, 2015). Este texto foi escrito por Paulo Vieira, a partir de ideias apresentadas na live com o professor e psicanalista Carlos Lima, para o curso de formação em Psicanálise do IBPC.
Vamos trazer alguns aspectos freudianos e, principalmente, winnicottianos deste filme.
A relação mãe-bebê
O psicanalista Donald Winnicott propõe o binômio mãe-bebê. Para Winnicott, “o bebê não existe”. Isto é, o bebê não existe sozinho. Onde existe um bebê, existe uma mãe (ou alguém exercendo esta função de mãe). No mesmo sentido, a mãe só existe porque existe um bebê.
No filme O Quarto de Jack, a mãe (personagem Joy) é sequestrada ainda na adolescência. É vítima de estupro. O sequestrador e estuprador é o personagem Velho Nick. Deste meio de violência, nasce o bebê (Jack).
De uma situação bárbara, emerge a relação de afeto mais intensa possível: mãe-bebê. No filme, isso não significa romantizar uma violência (pois não haverá conciliação com o Velho Nick), mas, a nosso ver, significa pensar a capacidade humana de estabelecer sentidos, sobretudo quando o vínculo afetivo é tão visceral como na condição mãe-bebê.
O nascimento de Jack é também um sentido para Joy desejar continuar vivendo: uma companhia, uma “psicose materna”, no conceito de Winnicott.
Há também o que Winnicott chamou de identificação cruzada: o bebê percebe-se que existe pelo olhar da mãe. E, então, começa a oferecer à mãe reciprocidade. Isto é evidenciado na cumplicidade Joy-Jack para a convivência e para a criação do plano de fuga.
O ambiente do filme O Quarto de Jack
No filme, há o ambiente físico do quarto, mas a ideia winnicottiana de ambiente vai além disso. O ambiente engloba as interações interpessoais e também o “antes” que estabelece quais as pessoas e quais as condições para o bebê existir.
No filme, o ambiente é a relação Joy-Jack (mãe-bebê). Não é só o quarto físico, mas toda a forma como a mãe prepara o filho para o mundo externo.
Neste sentido, há uma relação com a filosofia do Mito ou Alegoria da Caverna (Platão, em “A República”). A mãe reporta ao filho que “existe um mundo maior lá fora“. Joy sugere ao filho que o mundo do quarto (da caverna) é, na verdade, mera sombra ou desfiguração do mundo real lá de fora.
Outra aproximação que podemos propor é com o filme “A Vida é Bela” (1998). Como no filme de Roberto Benigni, há também n’O Quarto de Jack um adulto (desta vez, a mãe) que apresenta à criança o mundo a partir de uma leitura “lúdica”. Apesar de que, diferente do pai em A Vida é Bela, no filme Quarto a mãe Joy propõe fendas nesta fantasia. Estas fendas serão as falhas de uma mãe suficientemente boa que nutre a esperança da fuga.
O ambiente primordial de Jack é o quarto, o único mundo que existe para ele. Mas, pela possibilidade constitutiva da linguagem, a mãe pode propor a Jack que existe um outro mundo. O ambiente é também aquilo que a mãe viveu, o mundo da mãe. Este mundo criado pela mãe é maior que o ambiente físico do quarto.
As elaborações e a maturação psíquica de Jack
As elaborações de Jack surgem do processo imaginativo a partir de metáforas derivadas do que ele conhece (o quarto, o camundongo, o giz, o que passa na TV etc.).
Jack dá sentido ao que vê a partir do que sabe. E isto é uma alegoria não só do nosso desenvolvimento psíquico como também do processo de ensino-aprendizagem e do processo de formação dos discursos.
Assim como Winnicott almeja propor uma psicanálise pela ótica do bebê, o filme também se constrói principalmente pelo viés de Jack.
O microcosmo do quarto permite-nos pensar como a mãe (este “outro”) nos constitui. A criação da visão de mundo, da identidade e da autonomia passa pelo outro.
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A linguagem não é só comunicação, mas é também aquilo que constitui o sujeito. Jack é resultado do que ele faz, do que ele aprende-ensina com/para a mãe e do que ele elabora imaginativamente a partir do que vivencia no Quarto.
Joy: uma mãe suficientemente boa?
Podemos entender que, no filme O Quarto de Jack, a mãe Joy foi uma mãe suficientemente boa. Este conceito (também winnicottiano) não é absoluto, mas sim demanda o contexto do ambiente. Então, para o ambiente do quarto, Joy:
- foi uma mãe cuidadosa (com o aprendizado e a higiene do filho, por exemplo) e, ao mesmo tempo,
- permitiu pequenas falhas e “desmontes” à onipotência de Jack, para ele perceber que precisaria enfrentar um mundo maior lá fora.
São tarefas da mãe suficientemente boa, para Winnicott:
- handling,
- holding e
- apresentação dos objetos.
Estas três tarefas respectivamente correspondem, da perspectiva do desenvolvimento do bebê, aos três processos denominados por Winnicott:
- integração (o bebê sentir-se inteiro),
- personalização (o bebê ver-se como uma pessoa distinta das outras pessoas e do mundo) e
- realização (o bebê atuar em relação à realidade).
A apresentação de objetos: um mundo novo apresentado a Jack
O quarto não é o mundo. A mãe Joy frustra certas “ingenuidades” de Jack, como forma de prepará-lo para o mundo exterior. No filme, isso é muitas vezes feito:
- pelo aspecto lúdico,
- por meio de invocações à imaginação de Jack e
- trazendo a Jack questionamentos que lhe possibilitem a apresentação de objetos ainda impalpáveis.
Uma importante alegoria no filme é o dente podre da mãe. Esse dente vale para Jack como um objeto transicional.
Ou seja, um destino de afeto do bebê que estabelece uma transição entre:
- o momento anterior, quando o bebê só conhecia o sentimento anímico de onipotência (todas as coisas giravam em torno dele, e o seu choro mobilizava a mãe para atender-lhe em suas vontades e necessidades),
- e a realidade objetiva futura, em que o mundo perderá parte de sua aura anímica (as coisas deixarão de ser vistas como detentoras de almas, animadas, e o bebê precisará entender não ser o motor do universo).
Os objetos transicionais são formas elaboradas pela mãe suficientemente boa para a criança desprender-se gradualmente do sentimento de onipotência, em direção ao aprendizado, à maturação psíquica e à maior autonomia.
O dente podre no filme O Quarto de Jack
Depois, no filme O Quarto de Jack, quando o dente é interiorizado por Jack, ele mesmo dirá que a mãe já está dentro dele, ou seja, o dente terá cumprido esta transição. Em outras palavras, depois de assimilado (“engolido”), o objeto transicional poderá ser rejeitado.
No filme, há também o cachorro, amigo imaginário de Jack. A mãe diz a Jack que o cachorro não existe. Depois ela se arrepende, por pensar que “realidade demais” poderia penalizar ainda mais a criança, prejudicando uma transição “tranquila” por desmoronar abruptamente a ideia de onipotência que a criança trazia.
Em outras palavras, a mãe sente que está quebrando a possibilidade de uma transição mais serena nesta passagem da criança para o mundo adulto. Aqui, a mãe talvez marque Jack com a insignia de um sofrimento (desde a concepção de Jack), e pense que talvez deva aliviar esta dureza da vida. Isso também se reflete no caráter lúdico da mãe em relação ao filho.
Talvez este sentimento de muitas vezes proteger com fantasias o bebê por sentir-se culpada por tê-lo trazido a um mundo nem sempre agradável seja parte dos sentimentos ambivalentes de todas as mães. Mas, mesmo no contexto comparativamente mais cruel do nascimento de Jack, a mãe Joy não lhe poupa por completo. Se Joy fosse superprotetora e meramente fantasiosa, isso fragilizaria Jack e reduziria as chances de uma fuga.
A superproteção é atitude contrária à mãe suficientemente boa. É colocar o bebê em uma redoma; e Joy pressente que o quarto representa uma forma nada boa de redoma. Portanto, a redoma do quarto deverá ser combatida, bem como combatida deverá ser (por metonímia) a redoma de um excesso de fantasia que não estimule Jack para a fuga. E a fuga é refutar a redoma-quarto. Joy assumirá esta tarefa nem sempre agradável de ser uma mãe suficientemente boa, como condição para que haja chance de o filho ter uma vida para além (para fora) do quarto.
Édipo e a Castração no filme O Quarto de Jack
No filme, existe também a temática do Complexo de Édipo:
- o amor de Jack pela mãe e
- a rivalidade de Jack com o Velho Nick (representando o “pai”).
Obviamente, a maior castração de Jack é imposta pelo Velho Nick (o sequestrador). Afinal, o Velho Nick encerrou o mundo de Jack a um quarto. Paradoxalmente, isso aproxima ainda mais mãe e filho, o que, no modelo edípico, é um golpe ao poder do “pai”. E será esta mesma junção mãe-filho que poderá romper o domínio de Nick.
No filme, o desejo da criança de rivalizar-se com o “pai” se inicia com a mãe, não há oposição da mãe.
Claro que, por ética, é arriscado denominar o estuprador e sequestrador Nick como “pai”. Mas, se pensarmos na estrutura edipiana, a violência de Nick faz dele um pai forçado e extremo.
Então, no filme, a parte do que se associa a uma função mais benéfica de pai à criança é realizada pela própria mãe. Assim ocorre em outras castrações de Jack. São os “nãos” ou interdições oferecidos pela mãe a Jack, como:
- o menino ter de ficar no guarda-roupas quando o Velho Nick a estupra (para Jack não ter contato com o estuprador neste momento);
- regras de horários, higiene etc.;
- nos questionamentos que a mãe faz a Jack, convidando a descobrir um outro mundo: “De onde você acha que vem a comida?”.
Interessante pensarmos que:
- por um lado, a castração que o Velho Nick impõe a Jack é pela clausura (iniciada desde o rapto da jovem Joy);
- na direção oposta, as castrações trazidas pela mãe são condições para (na visão da mãe) a liberdade de Jack.
Conclusão: “o mundo não é o quarto, Jack!”
O senso de disciplina, os questionamentos e as transições propostas pela mãe fazem com que ela e Jack tenham forças para conceber e executar o plano de fuga (realização). Permitem também que Jack não se desorganize mentalmente por completo ao confrontar-se com a imensidão do mundo exterior. Um mundo exterior de três dimensões (altura, largura e profundidade), não somente as duas dimensões (altura, largura) que Jack acreditava ser o mundo, vendo-o pela TV.
A agressividade da mãe Joy pode ser lida como pulsão de vida, na definição de Winnicott. A pulsão de vida é a pulsão por realizar e por resistir, isto é, não ceder ao desejo de vazio que representa a pulsão de morte. E, naquelas condições de sequestro, a fuga representa a possibilidade de vida.
Por isso, não é demais associarmos (como propôs Winnicott) que a agressividade é uma manifestação da pulsão de vida.
Joy direciona o ressentimento que nutre pelo Velho Nick na forma de uma agressividade para um “sentido” de sua vida e a de seu filho. Então, este desejo de Joy não a permite desencantar-se do mundo, que ela precisa apresentar ao filho.
O filme O Quarto de Jack nos ensina que a maturação psíquica da criança passa pela função de mãe, por determinados limites (disciplina) e pelo “desencantamento” gradual (transicional) que a mãe suficientemente boa propicia ao bebê.
Uma lição do filme é que não há impedimentos para uma mãe dedicada ao filho. Isto é, mesmo com todo o contexto do quarto, ainda restou “espaço” (psíquico) para a mãe contribuir para o desenvolvimento psíquico do bebê.
Este artigo sobre o filme O Quarto de Jack foi escrito por Paulo Vieira (gestor de conteúdos do Curso Psicanálise Clínica), a partir de anotações livres da live sobre o filme ministrada pelo professor e psicanalista Carlos Lima. A gravação da live sobre o filme está disponível para alunos na área de membros.
8 thoughts on “Filme O Quarto de Jack (2015): análise psicanalítica”
Show de bola, excelente artigo.
Maravilhosa, intrigante e poderosa é a mente humana diante da capacidade e esforço de expressar aceitação e amor pelo filho nessa relação mâe-bebê entre Joy e Jack a partir de uma situação nada “esperada” (humanamente) para se conceber um filho .
A leitura deste artigo impele, primeiramente, à assistir mais uma vez o filme, porém, desta vez considerando a perspectiva psicanalítica. Desperta em mim a vontade de iniciar as leitura de Klein e Winnicott para começar a compreender esse domínio da criança. Obrigado gestor Paulo.
Parabéns pelo artigo! O amor de mãe supera barreiras!
Obrigada, Paulo.
Neste filme, impressiona de verdade a capacidade de Joy manter-se no controle ainda que não tendo o controle da própria situação. O que explicaria isso? Um ego fortalecido ? Essa resposta psíquica de resistencia, manutenção do discernimento e, de certa forma, manter um distanciamento da própria realidade para preservar a capacidade de sobrevivência, projetando e articulando um plano de futuro, configura o que, na visão de Freud?
Também achei intrigante essa percepção sobre a Joy !
Excelente artigo !! Claro, objetivo e com correlações perfeitas com a teoria winnicottiana. Só ouso discordar do paralelo com o filme “A vida é bela” pois, a meu ver, a terceira função da mãe em apresentar a realidade, apesar de lúdico, não foi real mas fantasiosa no caso do filme a vida é bela. Parabéns Paulo, admiro sua escrita !!
Asenath, muito obrigado pela gentileza de suas mensagens e pela sua observação em comparação com A Vida É Bela.