Hoje falaremos sobre as patologias contemporâneas. A psicanálise, desde suas origens, investiga o modo como as condições sociais e econômicas impactam a vida psíquica. No contexto atual, marcado pelo neoliberalismo e pela valorização do individualismo, novas formas de sofrimento psíquico surgem ou são exacerbadas.
Entre essas, a melancolia e a depressão ocupam papel central, refletindo tanto uma negação da realidade quanto um investimento excessivo no eu e na aparência.
Neste artigo, discutiremos a relação entre melancolia, depressão e cultura a partir da psicanálise, propondo um modelo narcísico-melancólico para entender as patologias contemporâneas.
As patologias contemporâneas: melancolia e depressão
Na psicanálise freudiana, a melancolia é descrita como uma reação à perda de um objeto amado, onde o sujeito não consegue elaborar o luto, transformando essa perda em autorrecriminação. Ao contrário do luto, em que a perda é eventualmente superada, a melancolia se instala quando o sujeito retém inconscientemente o objeto perdido, internalizando-o.
O ego, incapaz de lidar com essa perda, se volta contra si mesmo, resultando em sentimentos de inferioridade, culpa e autodesvalorização. Em sua obra “Luto e Melancolia“, Freud observa que o melancólico experimenta uma “autoacusação constante”, que na verdade é uma forma de acusação dirigida ao objeto perdido, internalizado no ego.
A depressão, embora compartilhe características com a melancolia, como o sentimento de vazio e desespero, está frequentemente ligada a um esgotamento generalizado. Neste sentido, a psicanálise contemporânea enxerga a depressão não apenas como uma perda, mas como uma incapacidade de lidar com as expectativas de desempenho e sucesso impostas pela sociedade neoliberal.
O deprimido
O sujeito deprimido de hoje vive o paradoxo de uma sociedade que promete autonomia e liberdade individual, mas que, na prática, impõe padrões de desempenho inatingíveis. Como resultado, a depressão emerge como uma reação à exaustão e à frustração diante das expectativas de sucesso e produtividade.
A melancolia, por sua vez, permanece presente como uma resposta ao fracasso de sustentar o superinvestimento no eu.
O modelo narcísico-melancólico e as patologias contemporâneas
No neoliberalismo, a subjetividade é profundamente marcada pelo narcisismo, conceito que Freud introduziu para descrever uma fase do desenvolvimento psíquico em que o sujeito se vê como o centro de todas as atenções e investimentos. Esse narcisismo é reforçado por uma cultura que valoriza o indivíduo pela aparência e pelo desempenho, promovendo uma constante necessidade de validação externa.
O modelo narcísico-melancólico, portanto, propõe uma visão integrada da melancolia e do narcisismo como resposta às demandas contemporâneas. No narcisismo neoliberal, o sujeito é incentivado a investir em sua própria imagem e a competir incessantemente, mas, ao mesmo tempo, encontra-se profundamente isolado.
A proliferação de redes sociais e o bombardeio de informações criam um ambiente em que o indivíduo é avaliado constantemente, reforçando uma autoimagem inflada que, na ausência de validação suficiente, se volta contra o próprio ego.
A cultura neoliberal e as patologias contemporâneas
Esse narcisismo, aliado à melancolia, gera novas formas de sofrimento, como o vazio existencial e a sensação de fracasso diante de expectativas inatingíveis. O sujeito neoliberal é incapaz de sustentar sua autoimagem idealizada, o que o leva a uma crise identitária e à melancolia, marcada pela impossibilidade de realizar plenamente seus desejos.
A falha em corresponder ao ideal narcisista imposto pela cultura neoliberal resulta, assim, em uma profunda sensação de inadequação e fracasso.
Individualismo, imagem e consumo
A alta valorização do individualismo, das aparências e do consumo está no cerne das novas patologias psíquicas. O neoliberalismo não apenas valoriza o indivíduo como responsável por seu sucesso, mas também transforma o desempenho em critério absoluto de valor.
Nesse contexto, o sujeito passa a valer pelo que aparenta ser e pelo que possui, e não pelo que realmente é ou sente. A performance, seja no trabalho, nas relações sociais ou nas redes sociais, torna-se um objetivo em si, uma busca incessante pela validação externa.
O mundo das imagens e o consumo reforçam essa dinâmica. A aparência se torna mais importante do que a substância, e o sujeito é avaliado não por suas experiências ou sentimentos, mas por sua capacidade de se alinhar aos padrões estéticos e comportamentais dominantes. Isso resulta em um empobrecimento da vida interior e uma dificuldade crescente de simbolizar suas experiências e emoções.
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As patologias contemporâneas e o reverso do narcisismo
Como afirma Walter Benjamin, a experiência autêntica é substituída pela mera informação, levando à superficialidade das relações humanas e à incapacidade de criar narrativas pessoais consistentes.
Esse contexto de valorização extrema da imagem e do consumo exacerba os estados narcisistas, que surgem como uma resposta à pressão para manter uma imagem idealizada de si mesmo. No entanto, essa busca por perfeição leva inevitavelmente à melancolia, à medida que o sujeito se depara com a impossibilidade de atingir suas metas.
A melancolia, nesse sentido, é o reverso do narcisismo: quando o eu idealizado não pode ser sustentado, o sujeito recua para uma posição de autocrítica severa e desvalorização.
Melancolia como negação da realidade exterior
Na psicanálise, a melancolia pode ser entendida também como uma forma de negação da realidade exterior, em que o sujeito se recusa a aceitar a perda de um objeto e se apega a ele por meio de uma espécie de psicose alucinatória de desejo. Esse apego ao objeto perdido é projetado na cultura contemporânea como um desejo incessante por mercadorias e sucesso, alimentado pela lógica do consumo e pela promessa neoliberal de realização pessoal.
O desejo pela mercadoria, pelo status e pela aparência se configura como um investimento excessivo no eu. O sujeito contemporâneo investe na sua própria imagem de maneira obsessiva, como se a felicidade dependesse da aquisição contínua de bens e da adesão aos padrões de consumo.
No entanto, esse desejo nunca é plenamente satisfeito, resultando em um vazio existencial que alimenta a melancolia. A mercadoria, ao contrário de oferecer uma solução, exacerba a alienação, pois o sujeito permanece insatisfeito e preso a um ciclo infinito de consumo e frustração.
Um ciclo de desejo
Este ciclo de desejo e frustração leva a uma forma contemporânea de melancolia, em que o sujeito, incapaz de alcançar a satisfação prometida, recua para uma posição de derrota e desespero.
A realidade exterior, com suas demandas impossíveis, é negada, e o sujeito se apega ao objeto alucinatório de desejo, seja a mercadoria, o sucesso profissional ou a validação social.
A melancolia, assim, se transforma em uma resposta psíquica à impossibilidade de se livrar das exigências narcísicas da cultura neoliberal.
Conclusão: narcisismo, a melancolia e a busca por autenticidade
A sociedade neoliberal, com sua ênfase no individualismo, na aparência e no consumo, criou um ambiente propício ao desenvolvimento de novas formas de sofrimento psíquico. O narcisismo, que outrora era uma fase do desenvolvimento psíquico, tornou-se uma característica central da subjetividade contemporânea.
No entanto, esse narcisismo está intimamente ligado à melancolia, uma vez que o sujeito neoliberal é incapaz de sustentar a imagem idealizada de si mesmo e de alcançar as metas inatingíveis impostas pela sociedade.
A melancolia, nesse contexto, é uma resposta à frustração diante das demandas excessivas do neoliberalismo. O sujeito, incapaz de atingir as expectativas impostas, recua para uma posição de desespero e autocrítica, negando a realidade exterior e se apegando a objetos de desejo inalcançáveis.
As patologias contemporâneas e mecanismos inconscientes
A psicanálise, ao revelar esses mecanismos inconscientes, oferece uma via para a emancipação subjetiva. Reconhecer o ciclo de narcisismo e melancolia pode permitir ao sujeito romper com a lógica neoliberal e buscar formas mais autênticas de existir, baseadas não na performance ou na aparência, mas na construção de uma vida psíquica rica e significativa.
Fontes: A psicanálise e o neoliberalismo – https://psicanalisedemocracia.com.br/2017/06/a-psicanalise-e-o-neoliberalismo-entrevista-com-caterina-koltai-christian-dunker-maria-rita-kehl-nelson-da-silva-jr-paulo-endo-e-rodrigo-camargo/ Melancolia e Depressão: Um Estudo Psicanalítico Psicologia – Teoria e Pesquisa Out-Dez 2014, Vol. 30 n. 4, pp. 423-431
Sobre o(a) Autor(a): Karen Fernanda Nicoletti, nascida e residente do Rio Grande do Sul – Brasil, gestora de projetos, agente cultural, artesã, graduada em Tecnologia da Informação e estudante de psicanálise no IBPC (Instituto Brasileiro Psicanálise Clínica). Contato: [email protected]