estádio do espelho jacques lacan

Estádio do Espelho: conceito de Jacques Lacan

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Vamos buscar entender de forma introdutória uma definição sobre o que é o estádio do espelho (também chamado de estágio do espelho ou fase do espelho), conforme definido pelo psicanalista Jacques Lacan.

Para isso, precisaremos retomar as ideias de

  • primazia do visual para Sigmund Freud e Jacques Lacan;
  • a questão do recalque orgânico em Freud (retomado por Lacan);
  • uma comparação do estádio do espelho (Lacan) com o mito de Narciso (Freud) e
  • uma comparação entre Lacan/Freud e os processos de integração e personalização conforme propostos por Donald Winnicott.

O recalque orgânico segundo Freud

Antes de pensarmos o recalque como mecanismo de defesa, precisamos falar de um grau anterior do recalque. Trata-se do recalque orgânico, conforme proposto por Freud e retomado por Lacan, conceito bem pouco compreendido por psicanalistas.

Para Freud, o recalque orgânico é assim chamado por estar anterior ao simbólico e à vida cultural do sujeito. É uma condição evolutiva do homem ou, talvez antes, da árvore genealógica de espécies hominídeas.

No desenvolvimento da espécie, o homem

  • passou da condição de mero Instinkt (instinto): condição do andar curvado e de primazia do olfato, em que a atração sexual era intermitente e mobilizava os cheiros como sangue e excrementos;
  • para a condição de Trieb (pulsão): postura ereta e consequente elevação da visão como sentido predominante, em que a atração sexual seria uma força constante (Konstant Kraft), como a pulsão também é contínua.

Assim:

Recalque orgânico = passagem do olfato (intermitente) e da postura curvada (Instinkt, instinto) –> para a primazia da visão (não intermitente) e da postura ereta (Trieb, pulsão).

Este segundo momento é quando a visão se torna primazia e os mecanismos da seleção natural rebaixam o olfato. Seria para Freud um recalque orgânico e a gênese da pulsão. Esta condição desinvestiria o afeto da bissexualidade e da perversão originariamente humanas, em favor de uma “etiqueta” social afeita à ideia de constância de instituições como a família.

Há que se ressaltar duas críticas que entendemos bastante válidas a esta ideia do recalque orgânico de Freud:

  • O estudo da evolução natural é bastante complexo e demanda especializações como em biologia e antropologia, embora o posicionamento freudiano de uma seleção teleológica (isto é, uma finalidade contextual para a adaptação) mesmo que a partir do acaso das mutações genéticas seja aceitável nessas áreas.
  • Mesmo com o desenvolvimento biológico (a postura ereta e a atrofia do olfato), com o desenvolvimento cultural da ideia de família e com a ojeriza psicológica às fezes alheias e ao sangue, as chamadas perversões sexuais são intensas no humano (exatamente pelo aspecto pulsional, pelo aspecto do “desejo perdido” e até mesmo pelo primado do visual) e parecem nulas ou quase nulas nos outros animais.

O aspecto visual em Freud e Lacan: para entendermos o estádio do espelho

Neste sentido, Freud diz que este recalque orgânico (filogenético) precede as três fases do recalque tal como tradicionalmente ficou conhecido em suas fases, seria um “grau zero” do recalque, a saber:

  • 0. Recalque orgânico (postura ereta, atrofia do olfato, ênfase na visão);
  • 1. Recalque originário (ou fixação);
  • 2. Recalque secundário (ou recalque propriamente dito) e
  • 3. Retorno do recalcado.

Os demais aspectos do recalque como um todo serão aprofundados em outro artigo.

Por ora, ficaremos com a ideia de que o recalque orgânico poderia ter conduzido a espécie humana a:

  • uma atrofia biológica da capacidade olfativa (e consequente primazia da visão),
  • uma sexualidade continua, isto é, sem as intermitências dos estímulos olfativos (que ajudaria os laços de família) e
  • um rechaçamento psicológico da sexualidade baseada em excrementos (fezes, sangue etc.).

Não à toa, o caráter visual seria uma forma de pensar a formação do eu, como veremos a seguir.

O Mito de Narciso na psicanálise de Freud

Em breve síntese, Narciso é o personagem da mitologia grega que se apaixona pelo reflexo de sua imagem nas águas de um rio. Em razão do encantamento pela própria imagem, vai se aproximando cada vez mais das águas e morre afogado.

Obviamente que o objetivo da terapia psicanalítica é tornar o ego mais próximo de seu desejo, menos exacerbado e mais poroso a um olhar “de fora”. Então, de certa forma a clínica do fortalecimento do ego é um entrelugar que rejeita:

  • tanto o ego esfacelado (como a baixa autoestima)
  • quanto o ego exacerbado (o narcisismo).

Na obra de Freud, sabemos que o normal e patológico não têm limites tão estanques. Neste sentido, o narcisismo não pode ser visto apenas como uma patologia, mas os mesmos fundamentos do narcisismo estão na base do que se pode entender como formação saudável do eu.

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    Afinal, sem uma diferenciação em relação ao externo, o ego não conseguiria responder à questão “quem sou eu?” e lidar com as demandas psíquicas internas e as demandas do mundo. A confusão do eu com a externalidade seria origem de neuroses (como as do pensamento anímico) e até mesmo psicoses (como as esquizoides).

    Podemos entender o mito de Narciso como uma autoafirmação que funda o “eu”. Ao se autoafirmar, haveria uma fixação (ou recalque originário) e um contrainvestimento em relação ao que não é o “eu”. Isso é possível a Narciso ao se ver como uma totalidade no reflexo das águas.

    Entendendo o Estádio do Espelho em Lacan

    Também na mesma linha de compreender a primazia do visual que abordamos em Narciso (Freud) está o conceito de estádio do espelho proposto por Jacques Lacan.

    O estádio do espelho é o momento inaugural da formação do eu. Neste momento, o infans (isto é, o bebê que ainda não fala) vê sua imagem refletida em um espelho.

    Mesmo que não veja seu corpo todo no espelho (o que pode ocorrer ou não), surge uma ideia de totalidade, uma ideia de eu sou isso que se torna eu sou eu. Esta ideia é imaginária porque, para se supor “total”, o bebê recalcará “tudo” o que não é, sem o saber.

    Mas, apenas esta visão no espelho talvez não seria suficiente para o bebê interiorizar esta noção. Então Lacan proporá a necessidade de confirmação por um grande Outro. Esta confirmação seria validar para o bebê que aquilo que o bebê está vendo é ele mesmo.

    No caso, a ideia de grande Outro representa o ideal de verdade e suposto-saber na percepção do bebê. Este lugar o bebê atribui à mãe, neste momento do reflexo.

    Assim, para Lacan:

    Estádio do Espelho (pelo infans) = totalidade (imagem do reflexo) + validação do grande Outro (mãe).

    Os outros e o espelho

    O “eu” é então a sede das resistências. Terá de aprender a abdicar de certas sensações (neste momento, ainda inomeadas, por ser ainda um infans, não falante). Eram sensações de “coisa” (do latim “res”: “real”), um recalcamento originário que inaugurará um modus operandi de outros recalcamentos (secundários) que terá pela vida.

    Assim, podemos pensar que o estádio do espelho introduz o bebê à linguagem e à vida social, ao reforçar mecanismos como:

    • o grande Outro: da validação da mãe de que “eu sou eu”;
    • do outro que o bebê passa a entender como “eu” (imaginário; da imagem);
    • do(s) outro(s) que é(são) também eu(s): alteridade, empatia.

    O estádio do espelho não é apenas visual e literal. É também o jogo das imagens criadoras do sentido, do ponto de vista do bebê:

    • A imagem que faço de mim ao tentar definir “quem eu sou?”.
    • A imagem que eu faço da imagem que os outros fazem de mim (a necessidade da alteridade pela validação dos outros e do grande Outro).
    • A imagem que eu faço do outro como eu diverso (um “eu” como eu).

    Estádio do Espelho: ideias de Freud, Lacan e Winnicott

    No artigo “O estádio do Espelho”, Lacan enfatiza como a postura corporal ereta do adulto exerce uma poderosa atração sobre o infans, que não tem ainda “o controle da marcha ou sequer da postura ereta” (apud JORGE, M.A.C. “Fundamentos da Psicanálise”, vol. 1, pág. 46. RJ: Zahar, 2005). Isso, a nosso ver, acrescenta ainda mais o primado do visual sobre a constituição psíquica do eu.

    Em outro artigo (“Algumas reflexões sobre o eu”), Lacan reforça este aspecto, ao postular que “a estabilidade da postura ereta, o prestígio da estatura, a impressão de grandiosidade das estátuas, tudo isso marca a identificação onde se acha o ponto de partida do eu” (id, ib.).

    Como em Narciso (trazido por Freud na discussão sobre o narcisismo), o encanto do bebê no Estádio do Espelho (Jacques Lacan):

    • É visual e devedor do recalque orgânico que tornou o corpo humano ereto, atrofiou o sentido olfativo e elevou a importância da visão.
    • Aniquila o real (a morte de Narciso; a recusa do que está fora do limite do que imagino ser “eu”).
    • É constitutivo do eu, da cisão do seu desejo e da interdição ao inconsciente, como um mecanismo de recalque originário.

    Temos em Donald Winnicott uma ideia talvez aproximada quanto às funções de:

    • integração: o “eu” do bebê sente-se como uma totalidade, resultado principalmente do holding (ato de ser segurado);
    • personalização: o “eu” do bebê sente-se como uma pessoa distinta das demais, como resultado principalmente do handling (ato de ser manuseado).

    Entendemos que uma diferença essencial de Winnicott para Freud/Lacan é que, nestes, há a primazia da visão, enquanto que em Winnicott este processo de constituição do “eu” passa em grande medida pelo tato (delimitação pelo toque na pele).

    Este artigo sobre o estádio do espelho em Lacan foi escrito por Paulo Vieira, gestor de conteúdos deste blog e do curso de formação Psicanálise Clínica.

     

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