É evidente que investigar o estatuto da homossexualidade na obra freudiana nos conduz, necessariamente, a certa relatividade. Isso porque as concepções de Freud não são sempre as mesmas, e por vezes, se contradizem. Não se pretende, no entanto, ordenar as múltiplas faces da homossexualidade descritas pelo fundador da psicanálise, nem mesmo fazê-las concordar entre si.
Trata-se, antes de tudo, de fomentarmos um mergulho crítico e renovado do campo da homossexualidade.
1 – Diferenças entre Homossexualidade e Homossexualismo
Na conceituação psiquiátrica e na literatura psicanalítica, não é clara e única a conceituação da homossexualidade.
O sufixo -ismo costuma denotar doença. Como homossexualidade não é doença, mas sim uma orientação sexual distinta da heterossexualidade, é adequado denominar homossexualidade em vez de homossexualismo.
Na verdade, permite várias significações e sentidos, de tal forma que as concepções dos múltiplos autores acerca do tema tanto se superpõem ou coincidem – na busca sobre o que é homossexualidade.
Assim como também surgem concepções ambíguas ou divergentes entre si, e, muitas outras vezes, se complementam de forma frutífera – em uma ampla gama de variações teórico-técnicas. Igualmente o termo homossexualidade, permite que cada psicoterapeuta tenha uma forma particular de entender e de escutar e, portanto, de interpretar.
A conceituação psicanalítica de homossexualidade, além de polissêmica e polifônica, também é polimorfa e polideterminada. Em relação a esta polideterminação da homossexualidade, concorrem fatores diversos:
- Biológicos
- Socioculturais
- Psicológicos, sendo que, neste último caso, tanto podem predominar elementos edípicos, como os pré-edípicos.
Também é necessário levar em conta que a assim denominada fase perverso polimorfa, descrita por Freud (1905) como uma etapa no curso normal da evolução psicossexual, pode manifestar-se na genitalidade adulta com manifestações pré-genitais no curso das relações sexuais. Até mesmo simulando uma prática perversa, mas que nada tem a haver com a psicopatologia da perversão.
Em termos socioculturais, dados estatísticos deixam claro que homossexualidade não é um fenômeno inusitado e que, pelo contrário, é bastante frequente em qualquer sociedade. Algumas pesquisas apontam para um índice aproximado de 4% do total de homens cuja conduta homoerótica é a única durante toda a vida. Enquanto para as mulheres, essa mesma conduta ocorre em 2% da população em geral.
Controvérsias
Em resumo, a cultura determina grandes mudanças na maneira de encarar e abordar a homossexualidade. Na atualidade existem fortes controvérsias sobre alguns assuntos essenciais que cercam os homossexuais, como:
- do direito legal de acasalamento;
- da permissão ou não de pertencerem aos quadros de organizações militares e de cúpulas políticas;
- da aceitação ou não por parte da população;
- de não serem encarados como doentes (diferença entre homossexualidade e homossexualismo), e assim por diante.
O que não resta dúvida é o fato de que as medidas de legislação repressora acarretam resultados negativos. Porquanto, reforça a condição de clandestinidade, com os inevitáveis problemas de culpa, vergonha, solidão e humilhação – assim como propicia o favorecimento de chantagens extremamente persecutórias.
2 – Olhar Freudiano à Homossexualidade
Em um recém-encontrado manuscrito de 1931, Freud oferece um resumo claro de suas ideias sobre a dupla camada masculina e feminina que nos constitui. Ele diz que nossa libido, a energia do instinto sexual e a força que atua na psique humana desde o início da vida são permanentemente alimentadas por fontes corporais.
E, assim, precisam ser abrigadas e, portanto, investidas em determinados setores de nosso aparelho psíquico.
O primeiro deles é o narcisismo, nosso amor a nós mesmos. O segundo, que ocorre após a superação da fase primária do narcisismo, é o amor objetal. A partir de então, três possibilidades de abrigo resultam para nossa libido: o próprio narcisismo, as tendências femininas e as tendências masculinas.
Freud denomina de feminilidade as tendências que têm a característica da passividade e de masculinidade as tendências que têm a característica da atividade. Reafirmando o já declarado em textos anteriores: somos constituídos em dupla camada, somos bissexuais.
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Todos os seres humanos são constituídos em dupla camada, são bissexuais. Cada indivíduo, seja homem ou mulher, é composto por elementos de masculinidade e elementos de feminilidade.
Extensão masculinidade x feminilidade
Mais à frente, Freud conclui:
“O tipo de equilíbrio que ao final será possível depende, por um lado, da extensão da masculinidade e da feminilidade inatas e, por outro, das impressões que o ser humano recebeu durante a sua infância”
Em “As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade”, Freud propõe uma complexa relação entre a natureza dos sintomas histéricos e o fator sexual. Ele afirma que diversos sintomas possuem duas fantasias sexuais, uma de caráter feminino e outra de caráter masculino.
Assim, uma dessas fantasias origina-se de um impulso homossexual (Freud, 1908/1969e, p.168). Portanto, os sintomas histéricos revelariam, por um lado, uma fantasia sexual inconsciente masculina, e por outro lado, uma feminina.
O caráter bissexual dos sintomas histéricos confirma, para o autor, a existência de uma disposição bissexual inata no ser humano.
Porém, o recurso à bissexualidade aparece de forma contundente quando o autor esboça suas primeiras elaborações teóricas acerca da homossexualidade.
A psicanálise considera que a independência da escolha objetal em relação ao sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e femininos, tal como observada na infância, nas condições primitivas e nas épocas pré-históricas, é a base original. Da qual, mediante a restrição num sentido ou no outro, desenvolvem-se tanto o tipo normal como o invertido (Freud,1905/1969d, p.136).
2.1 – O que determina uma conduta sexual?
A ciência atual ainda tem um conhecimento muito pequeno acerca dos aspectos genéticos, orgânicos ou glandulares e, até mesmo, significado de homossexualidade. Sendo que, até o presente momento, predomina a ideia de que eles têm uma participação mínima na determinação da homossexualidade.
3 – Socioculturais e Familiares
Ninguém contesta, na atualidade, os efeitos condicionantes indiretos dos costumes e códigos sociais. Esses são ditados pela vigência de uma determinada cultura, a qual, por sua vez, varia grandemente com as distintas geografias e épocas.
Como antes foi mencionada, a cultura determina grandes e decisivas mudanças na maneira de surgir, encarar e abordar a homossexualidade. Geralmente prevalece, por parte do ambiente, uma rejeição franca ou dissimulada contra a homossexualidade, nos mesmos moldes persecutórios e humilhantes que se processam contra todas as minorias sociais.
4 – Sexo e Gênero Sexual
Na atualidade – graças principalmente aos trabalhos de R. Stoller (1968), psicanalista americano (1924-1991) – atribui-se uma expressiva importância não somente ao sexo biológico com que a criança nasce, mas também à formação do seu gênero sexual. O último vai depender fundamentalmente dos desejos inconscientes que os pais alimentam quanto às suas expectativas e demandas em relação à conduta e ao comportamento do filho ou da filha.
Esta indução, por parte dos pais, na determinação do “gênero sexual” das crianças costuma ser feita a partir de combinação de fatores influenciadores, como são alguns apontados por Graña (1995). Aqui, o autor destaca que, por parte dos pais, a atribuição de nomes próprios ambíguos provoca confusões e indefinições no contexto social em que a criança está inserida.
Assim como o uso de roupas, o tipo de brinquedos e de brincadeiras, a forma como os pais designam os genitais, o tipo de esporte que estimulam nos filhos, a idealização ou, desqualificação de certos atributos masculinos ou femininos, etc.
4.1 – Fatores psicológicos e homossexualidade
Os acima referidos aspectos sociais, culturais e familiares, intimamente inter-relacionados com as necessidades, desejos e fantasias inconscientes da criança. E assim, vão determinar primitivos pontos conflituosos de fixação – nos quais a criança vai estacionar seu desenvolvimento psicossexual. Ou, para eles vai regredir quando, embora tenha alcançado a condição adulta, não suporta o surgimento de determinadas ansiedades terríveis.
Classicamente, os pontos de fixação referem-se às etapas: oral, sexualidade possessiva e aditiva, anal, no imaginário das crianças de ambos os sexos. A incorporação anal do pênis do pai representa a aquisição de uma ilusória completude e potência fálica, inserida dentro do complexo de Édipo, com as mais distintas configurações possíveis.
Foi o próprio Freud quem nos apontou separadamente os caminhos destas duas vertentes. Assim, ao mesmo tempo em que a principal parte da sua obra gira em torno dos conflitos psíquicos resultantes das pulsões libidinais investidas nas vivências e fantasias implícitas no conceito universal do complexo de Édipo. É a Freud que devemos a primeira compreensão das raízes narcísicas na determinação da homossexualidade.
Essa última afirmativa pode ser comprovada nos seus trabalhos de 1910 a cerca de Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância. Nos quais, fica claro que a homossexualidade de Leonardo representava uma busca de recompor com a mãe uma perdida unidade fusional primitiva – principalmente, no trabalho sobre “Uma introdução ao narcisismo” (1914).
Natureza analítica acerca da homossexualidade
Neste último, Freud aponta que a escolha do objeto homossexual pode ser de natureza analítica, um retorno à situação paradisíaca do apego original com a mãe. Ainda, com a sensação de ter a posse absoluta dela ou narcísica, nas suas três modalidades: busca no parceiro uma extensão daquilo que ele é ou do que ele foi ou daquilo que almeja vir a ser.
A propósito, também é a Freud, tal como aparece no trabalho de 1911 sobre o célebre Caso Schreber, que devemos a postulação de que existe no curso do desenvolvimento psicossexual da criança uma posição homossexual normal e estruturante.
No mesmo artigo, a partir do original e proibido desejo homossexual “eu o amo”, por meio de uma série de transformações do verbo e do objeto. Isso, determinada pela necessidade de negar tal o próprio, Freud mostra como o indivíduo pode construir tanto uma produção delirante paranoide (“não, eu não o amo, eu o odeio, e, logo, ele me odeia”); assim como pode ser um delírio de ciúme (“é ela que o ama”). Ou, ainda, uma erotomania (“ela(s) é que me ama(m)).
Também, uma retirada narcisista (“ninguém me ama e eu não amo e não preciso de ninguém”).
Igualmente, Freud contribuiu com um importante pressuposto de que, inicialmente, a criança apresenta uma concepção imaginária de que é possuidora de uma bissexualidade. Esta sua ideia continua servindo de ponto de partida dos mais avançados estudos sobre a determinação da sexualidade, portanto também da homossexualidade.
No entanto, foi em torno da triangularidade da conflitiva edípica que Freud fez as suas mais importantes descobertas, que seguem aqui, extremamente sumarizadas.
4.2 – A Face Edípica e a homossexualidade
A crise edípica – quer de resolução homo ou heterossexual – implica, para a criança, a condição de renunciar à fantasia de que ela tem a posse de uma bissexualidade; por conseguinte, também implica a renúncia de seu desejo imaginário de que pode possuir sexualmente aos dois genitores. Esta renúncia está ligada ao reconhecimento da existência de um terceiro (o pai) e está intimamente ligada à cena primária, com todas as fantasias daí decorrentes.
As principais fantasias – quer no menino ou na menina – estão diretamente ligadas à posição e lugar que, imaginariamente, as crianças ocupam nesta cena que tanto lhes pode sugerir uma idílica troca de benesses entre os pais. Ou, um inferno no qual estes se destroem – fantasia esta que promove na criança uma concepção sadomasoquista do ato sexual.
Segundo M. Klein, a fantasia da criança de que os pais estão fundidos no coito produz a imaginação da “figura combinada” responsável pela criação mítica da existência de figuras monstruosas. Ficar excluída da cena primária gera na criança uma sensação de abandono e traição por parte de um dos pais. Ou, então, de ambos, e, por conseguinte, produz sentimentos de ódio, rivalidade, curiosidade invasiva e arrogante, incremento de um controle possessivo e sentimentos de vingança.
4.3 – A Face Narcisista e a homossexualidade
Em relação ao desenvolvimento normal da psicossexualidade, as primeiras formulações de Freud postulavam a existência de uma etapa de auto-erotismo, seguida de um narcisismo primário. E, finalmente, de uma posterior etapa do investimento libidinal em objetos externos.
Na atualidade, é consensual que desde o nascimento o bebê já está interagindo com o meio ambiente exterior e estabelecendo relações objetais. Muito particularmente com a sua mãe.
Importantes autores destacaram este inato relacionamento objetal, como M.Klein — embora a sua ênfase tenha ficado concentrada quase que exclusivamente no bebê. Nas suas pulsões destrutivas e consequentes arcaicas fantasias inconscientes dirigidas ao “seio” e ao interior do corpo da mãe.
Lacan
Para Lacan – cujas principais ideias a respeito da fusão inicial do bebê com a mãe – estão contidas na sua concepção da teoria lacaniana evolutiva acerca da etapa do espelho.
Winnicott
Já Donald Winnicott (que ao deixar clara a sua divergência com M. Klein) enfatizou, sobretudo, o outro pólo, isto é: a extraordinária importância da mãe real no desenvolvimento emocional primitivo da criança. Notadamente através do holding materno eda função de espelho da mãe.
Bion
Para Wilfred Bion: ame o juízo, foi o autor que melhor equilibrou a importância tanto da mãe real como a das prematuras fantasias inconscientes da criancinha. As concepções de Bion acerca da permanente relação continente-conteúdo na interação mãe-filho. Com destaque para a capacidade de rêverie e da função-alfa da mãe, suas concepções são de decisiva importância na estruturação do psiquismo da criança, como será abordado mais adiante.
Mahler
Mahler contribuiu com esclarecedores estudos acerca do nascimento psicológico do bebê, ao considerar as diversas etapas e sub etapas evolutivas. Notadamente: as de simbiose; diferenciação (em relação à mãe); separação e individuação – até atingir a etapa da aquisição de uma constância objetal.
É somente uma etapa do desenvolvimento do ser humano. Ele é também um modelo de estrutura psíquica: uma modalidade de vínculo em um registro imaginário, que poderá operar ao longo de toda vida, inclusive na escolha homossexual de objetos.
Da mesma forma, a passagem pela conflitiva edípica promove a introdução do registro simbólico. Registro que poderá atenuar ou modificar o registro das ilusões imaginárias, porém nunca conseguirá acabar totalmente com elas.
O certo é que ambos os registros – o narcísico e o edípico – permanecem em constante interação, em cuja intersecção ora há a predominância de um deles (a solução exitosa da conflitiva edípica permitirá o ingresso na genitalidade adulta) ora de outro (uma fixação predominante na posição narcisista reterá o sujeito numa pré-genitalidade. Que, por sua vez, pode condicionar uma estruturação de natureza homossexual).
4.4 – Narciso e Édipo na homossexualidade
Como já foi assinalado, a própria obra de Freud permite observar uma íntima conexão entre o narcisismo original de “sua majestade, o bebê” comas diversas formas da configuração edípica. Como este assunto referente às intersecções entre Narciso e Édipo demandaria um espaço extenso, vou, aqui, me restringir a ilustrações contidas em algumas passagens míticas.
O interesse psicanalítico sobre a clássica história de Édipo tenha se concentrado sobre os atos finais do drama. No entanto, como uma unidade, é importante reconhecer que Édipo que mata a seu pai e desposa sua mãe começou sua vida exposto em uma montanha, e assim esteve privado de cuidados maternais em todos seus aspectos, durante uma etapa na qual sua mãe deveria constituir-se no seu objeto essencial e exclusivo.
Mas, parece-me que é no mito de Narciso em que aparece mais claramente a continuidade e o ponto de intersecção entre Narciso e Édipo – tanto que em ambos os mitos aparece a figura do cego profeta Tirésias como que estabelecendo uma conexão. Ao mesmo tempo, em que o final do drama de Narciso, permite entender que é necessário que ele morra, para que de sua morte nasça Édipo com a respectiva triangularidade, que pressupõe a existência e o reconhecimento de um terceiro, inicialmente o pai.
Com outras palavras, no mito de Narciso o que prevalece não é tanto o amor por si próprio, mas, sim, uma confusão com a mãe (identificação primária de Freud). Além da falta de discriminação e de consideração pelos demais – enquanto que em Édipo já há o reconhecimento de um outro e a capacidade de diferenciação com os demais.
5 – Conclusão: uma psicanálise da homossexualidade
Como já foi frisado, são muitos os fatores que concorrem para o surgimento da síndrome homossexual. Sendo, assim, necessário que se destaquem os seguintes: narcisistas, edípicos, psicológicos, biológicos, socioculturais, familiares etc.
Fato é que nunca se chegou a um denominador comum em relação às etiologias, causas, influencias e tantas suposições. Espera-se, como inicia-se o tema, que a psicanálise tenha um olhar diferenciado com relação as mesmices em encontrar origem, causa. Mas, sim, de lidar com as complexidades das homossexualidades, propondo caminhos para que os que procuram a psicanálise se sintam acolhidos primeiro por si mesmos. Depois, por uma sociedade que exclui, maltrata, pune, pré conceitua e abusa.
Faz-se necessário um olhar não de juízo mas sim de acolhimento.
Referências bibliográficas
Fundamentos psicanalíticos- Davi ZIMERMAM
Amar a Si e amar o Outro – BIRMAM Joel
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade- FREUD Sigmund (1901 – 1905)
O Mal Estar Na Civilização – (1927-1931) FREUD Sigmund
A Organização Genital Infantil – (1923-1925) FREUD Sigmund
Psicanalise E Homossexualidades- AYOUCH Thamy
Leonardo Da Vinci – Vol. XI 1910. FREUD Sigmund
Este material sobre Homossexualidade: um guia da Psicanálise é de Marcos Almeida, concluinte do nosso Curso de Formação em Psicanálise Clínica.