Você já ouviu falar em tinderização? A Psicanálise se intromete em tudo. Digo que é uma grande arqueologia viver sendo psicanalista. E a cada dia eu me implico, aprendendo com outros colegas que para essa arte é necessário o “eu”, escrever na terceira pessoa quando tratamos da Psicanálise e sujeitos, é no mínimo desrespeitoso.
Então já lhes digo que o presente artigo contém todo o rigor de uma exímia revisão bibliográfica, porém o reescreverei implicando-me, Sim; a primeira pessoa do singular.
Entendendo sobra a tinderização
Psicanalista que apenas reproduz não deve exercer tão bela ocupação. Talvez deva trabalhar com questões cognitivas do comportamento ou ser um coach, mas deixe o setting. Tenha dignidade e respeito pela saúde mental daqueles que te procuram.
Eu começo o presente texto com a fala de Andrea Iorio – cabeça do aplicativo na América do Sul. Ele afirmou com uma certeza tão profunda que o Tinder seria sustentável em cinco anos, que hoje passados exatos cinco anos (2017 a 2022) eu o considero a maior referência viva em algoritmos de nosso tempo.
Calma lá! Não falo aqui do cara que está no Ita ou na NASA desenvolvendo novos programas para tornar guerras e viagens espaciais mais baratas, e essa última uma realidade pública.
A tinderização e outros aplicativos
Falo do Iorio como o cara que tinderizou nossas vidas e continua fazendo a mesma coisa: iFood, Uber, Zé Delivery, Spotify, Twitter, QuintoAndar, GetNinjas, Hermes Pardini Coleta, BlaBlaCar e tantos outros que fazem nosso dia acontecer e nem percebemos.
Sim, esse mestre em Relações Internacionais destina não meno que três capítulos inteiros para falar sobre o Tinder, mas não como um aplicativo de encontros, como um sistema de algoritmos que coleta, formata (consolida como conhecimento) e depois comercializa, gerando a renda líquida anual de US$ 2,85 bilhões (R$ 14,77 bilhões) – isso em 2022, segundo jornal O Globo de (https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2022/09/15/10-anos-do-tinder-o-futuro-do-app-que-transformou-o-amor-o-sexo-e-as-relacoes.ghtml).
Pois bem, sendo sustentável o universo dos algoritmos, o modus vivendi do ser humano tem uma nova história a ser construída, continuada, seria a própria psicopatologia reescrita de 1901 para cá– como quiser.
A cultura da tinderização
Sei que é difícil aceitar que podemos estar começando do zero, mas é sim uma possibilidade: que todo o conhecimento acumulado até aqui em se tratando de espécie, não nos seja mais tão útil. Daí o “construída”!
Muito se fala em ancestralidade, povos originais. Não só no Brasil. Olhemos esse pálido ponto azul. Eu vejo nórdicos, aborígenes em suas respectivas fraturas geracionais, como os nossos índios.
Nesse tom eu poderia incluir quilombolas, mas apesar de saber que eles vivem seus dramas de povo trazido, sequestrado, em cárcere privado em imensas embarcações que de tanta gente se tornava uma espécie de barracão da Cidade de Deus – é, a favela, onde se empilhavam quinze, vinte pessoas com a falsa crença de existência.
No decorrer da história
Não! Essas existências todas foram roubadas e agora precisam lidar, em linha temporal, com esse fenômeno. Aqui eu falo em termos históricos: cem, mil, dez mil anos. Não de distraia, caro leitor, o que veio no navio negreiro, o que foi catequizado pelos jesuítas, o abotígene embriagado pelo europeu (pasme: era uma política de morte. “Dêem álcool que eles se matam sozinhos”), esses todos não vivem este drama.
A tinderização da vida é o nosso melodrama, é palco no qual temos que subir. Então, eu considero que escrevo para pesquisadores, no mínimo e uso o termo tinderização tal como é usado na Academia: algoritmização.
E nesse ponto tudo poderia parecer maravilhoso, encantador e até idílico, mas calma lá. A própria história de nossa sexualidade é controversa até hoje! Sim, pensamos que sexo era meramente para perpetuar a espécie, alguns grupos acrescentaram crenças diversas no quesito sexo.
A misticidade e a tinderização
Sim! Romanos usavam pênis como amuletos nos pescoços, como pingentes porque a fertilidade, a crença de que o falo era de onde vinha todo o poder da espécie foi o que sucedeu o matriarcado. Já houve em nossa histórias comunidades onde a mulher e toda a mística que envolvia a concepção, gestação e dar à luz eram veneradas. O termo “mãe natureza” não é algo da cabeça de um poeta qualquer.
De fato, o ser mãe e tudo o que envolvia trazer um novo espécime de Sapiens à vida já foi um fenômeno dos mais importantes da nossa ancestralidade mais longínqua. Pois é, hoje a realidade é controversa e com uma guerrilha entre pênis e vagina que chega ser desgastante.
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Elevemos isso, no entanto, para outro patamar, questões simples comer, beber, nos deslocar na cidade, contratar serviços domésticos, fazer movimentações bancárias, consultar o boletim escolar… Que reticências necessárias!
A marca algorítmica
Sim, achamos – perceba caro leitor, o verbo é achar, que escolhemos amiúde cada uma dessas operações. Mas não! Somos produtos. Cooptados pelos algoritmos que pelo controle remoto nos lança na tela da TV os filmes que nossos padrões endossaram.
Os algoritmos percebem seu cheiro, as cores que usa, o tipo de corpo que te desperta seu desejo, a comida do momento feita de uma maneira toda especial por um chef que leva a marca algorítmica de ser o “tal”. Não escolhemos mais! Perdemos a capacidade de buscar uma informação, um dado, de observar e transformar isso em conhecimento real e fático.
Perdemos a capacidade de flertar! Saia. Vá à um bar, só você. Pare, observe. Alguém tentou flertar com a moça elegante de cabelos bonitos? Tentaram olhar para o cavalheiro de paletó ímpar e corte de cabelo modesto?
Conclusão
Te pergunto: uma garota, um garoto, uma mulher, um homem, alguém tentou ao menos um dedo de prosa com um desconhecido para, digamos; ver no que dá? Não. Estão fazendo isso por nós. Na verdade estão fazendo isso conosco. Parabéns!
Seja bem-vindo à esse admirável mundo novo onde você pode ser o que quiser, todavia para isso, uma só coisa é necessária, que você abra mão de ser! Então você estará em uma prateleira acreditando estar no balcão de compras. Essa é sua nova vida, de tela em tela: tinderizada!
Referências Bibliográficas:
SUY, Ana. A gente mira no amor e acerta na solidão. Paidós, 2022.
IORIO, Andrea. 6 Competências para surfar na transformação digital. Planeta Estratégia, 2019.
BUKOWSKI, Charles. Sobre o amor. L&PM Editores, 2017.
FREUD, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana e Sobre os sonhos. Companhia das Letras, 2021.
Este artigo sobre tinderização e psicopatologia foi escrito por Raphael Juliano([email protected]), psicanalista clínico, cientista social, dramaturgo e escritor. Mineiro, morou dezessete anos em Belo Horizonte onde exerceu atividade de clínica e docência, além de publicar dois livros de ficção e duas peças teatrais. Retornou para Montes Claros/MG, onde nasceu. Atualmente é psicanalista em uma clínica de saúde mental da cidade, ministra Seminários e é sócio de uma clínica de saúde mental inteiramente digital.
One thought on “Tinderização da vida e psicopatologia”
Interessante artigo sobre, como devemos viver daqui por diante!