O presente trabalho tratará do conceito de sociedade do espetáculo: o que é, qual o lugar do eu? Queremos instigar reflexões acerca do comportamento dos seres sociais resultantes das configurações culturais vigentes em nosso tempo histórico.
Nesse intuito, pretendemos confrontar as concepções inicialmente conceituais sobre a sociedade do espetáculo, as quais serviram de estímulo para o desenvolvimento do presente, com algumas célebres bibliografias existentes sobre o tema. Nossa meta é fracionar e demarcar, para que assim possam ser mais bem examinadas, as camadas que forjaram as personalidades daqueles que reivindicam incessantemente o protagonismo social.
Entendendo a sociedade do espetáculo
Sendo assim, consideramos como objeto principal de nosso estudo, a exemplificação de comportamento dos “sujeitos assujeitados” que buscam constante destaque nas redes digitais da internet e a sociedade do espetáculo. Desse modo, nosso objetivo central, é examinar as formas de adequação dos indivíduos aos padrões modernos de relacionamentos sócio/culturais, a fim de compreender o que resta entre a ação da fala e o nascedouro original da maneira coletivizada de pensar. Para tanto, exploraremos os contornos que conferem formato as personalidades, prioritariamente as massificadas, as quais constroem verdadeiras armaduras com a finalidade de preservar seus status, bem como, os desdobramentos desse modo de agir na rotina real desses indivíduos.
Doravante a relevância do tema aqui eleito sobre a sociedade do espetáculo, reside na perseguição em distinguir entre os comportamentos alimentados pela natureza instintual ainda presente no humano moderno – portanto, sob controle do que trataremos por “regramento institucional social” -, e o que está sob o domínio incontrolável das pulsões. Para tanto tais pretensões serão norteadas pelas indagações que suscitam o que há de sociológico em Freud e o que há de psicológico em Deleuze (?) e como tal abordagem pode trazer maiores benefícios para o tratamento no ambiente clínico (?). Sendo assim, embora tal proposição tenha como pedra fundamental considerações inicialmente conceituais, provaremos que as subjetividades do tema, são dignas de adquirir respaldo quando expostas a luz e o poder elucidativo da bibliografia indicada.
De sorte que o nosso tempo histórico servirá de laboratório, para realizar experiências analíticas possibilitarão melhor esquadrinhar a real natureza do ser contemporâneo. Ou seja, o ser do nosso tempo: O ser que descobriu na especificidade da ciência psicanalítica, a possibilidade de encontrar alento para suas dores mais íntimas.
A sociedade do espetáculo e os fragmentos
Tudo é novo para quem acabou de nascer, a relva, o mar, o tempo… É o início da construção de si mesmo. É onde experimentamos os mais diversos sentimentos descobrindo do que gostamos e do que não gostamos, compondo assim, aquilo que no particular de cada um, será entendido por “eu”. Dessa forma, o “Ego” (eu) é o resultante da soma de todas as nossas lembranças, sejam elas conscientes ou inconscientes.
São as lembranças que constituirão para cada individualidade o ensejo da vida. Sendo assim, por uma perspectiva evolutiva que categoriza o nascer, crescer e envelhecer, o passado está sob o domínio do tempo, sob o qual, pesa a suposição de que venha a ser uma “ilusão criada por nossa mente ” (LEVITIN, 2015) a qual (ilusão), para garantir a praticidade da rememorização na rotina do dia a dia, sujeita as lembranças a informações acessórias, sendo estas, demarcadas pelos locais onde experimentamos nossas vivências no decorrer da existência.
Assim, partindo de um olhar panorâmico sobre a coletividade e a sociedade do espetáculo, pode-se sugerir que o lugar do outro é um lugar artificial, institucionalizado, onde a referência “eu” ancorou-se (lugar) na vã esperança de encontrar aí seu próprio sentido. Nesse ínterim, dificilmente percebemos que os “sentimentos” que nos traz a noção de unidade, na maioria das vezes, são também institucionalizados e, portanto, artificialmente aprendidos. Contexto onde as genuinidades são diluídas e remodeladas, a fim de, forjar uma representação sintética da espécie como um todo.
O indivíduo e a sociedade do espetáculo
A questão até aqui sobre a sociedade do espetáculo é que nascemos como indivíduos, porém por influência da institucionalização dos costumes passamos a existir como um conjunto, logo, somos “indivíduos coletivos” induzidos a coexistir com base na renúncia da própria individualidade e, por tal ótica, será o lugar institucional, este, representado por todas as convenções culturais as quais estamos submetidos, que dará luz ao “eu do espetáculo”
No que tange a questão filosófica/sociológica o erguer institucional, surge na forma abstrata das idéias convertendo-se na materialidade, que será instituída com a finalidade de intermediar e regrar a satisfação dos instintos humanos, servindo de meio artificial para que os homens satisfaçam suas tendências em um ambiente de civilidade, logo “Instinto e instituição são duas formas organizadas de satisfação possível” (Gilles DELEUZE, 1955 pg. 134), classificadas em primárias como: casamento, propriedade etc. e secundárias, as quais supondo lidar com comportamentos já institucionalizados, não correspondem a nenhuma tendência como Estado de direito e escola de massas. “Que na instituição a tendência se satisfaça, não há dúvida: no casamento, a sexualidade, na propriedade, a avidez. Objetar-se-á o exemplo de instituições como o Estado, às quais não corresponde nenhuma tendência. Mas está claro que tais instituições são secundárias, que elas supõem já comportamentos institucionalizados” (DELEUZE, 1955 pg. 134)
Sociedade do espetáculo e o ego social
Assim retomamos a questão do tempo e o que é institucional, servindo o segundo, como base substancial para dar sentido ao primeiro, ou seja, aqui observamos que a natureza volúvel do tempo é refreada em nossas lembranças pela inércia do lugar. Desse modo o tempo é domado pela estagnação, que por sua vez, atuará como informação acessória representada pelas lembranças dos locais das vivências que experimentamos. Por conseguinte, o lugar existencial do ego social, é um lugar constituído pela domesticação instintual, caracterizando-se nesses moldes, como parte do “eu sintomático” (LACAN pg. 25), ou seja, um eu objetificado e as ordens dos desígnios das convenções culturais.
Porém tal raciocínio não se esclarece totalmente quando desconsideramos que nossos atos são regidos pelos instintos e principalmente pelas pulsões, as quais nesta realidade, são obrigadas a atuar em segundo plano, fazendo-se compreender primeiramente que o instinto é um “esquema de comportamento herdado” (LAPLANCHE, 2001 Pg. 242), o que o torna domesticável pela perspectiva institucional, a exemplo da atividade mnêmica que nos traz a lembrança o evento do primeiro beijo, a qual (lembrança), encontrará materialidade no gatilho psíquico que remete ao exato lugar onde a atividade ocorreu, ou seja, se o acontecimento sucedeu-se em casa ou em sua proximidade, como na esquina da rua, escola, etc. marcaremos em nós, o temor de ser surpreendidos pelos pais, professores irmãos mais velhos, vizinhos entre outros, estabelecendo assim em no nosso íntimo aquele local em especial, como lembrança acessória, que permeará em nosso imaginário (local) como o guardião testemunhal de tamanha vivência.
Ao mesmo tempo o evento (beijo), também nos remete a configurações matrimoniais, que em nossa construção moral, registrar-se-á em grau de latência, pairando a partir de então, uma sensação sutil, de que iniciamos um processo que demandará compromisso nupcial sugestionado quase que compulsoriamente pela figura institucional de marido e mulher. Quanto ao que tange a pulsão, as vivências são dispensadas de qualquer rito institucional/sociológico uma vez que ela conforme esclarecido em LAPLANCHE (Pg. 395) é basicamente constituída de um “afluxo de excitação que o organismo não pode escapar” e portanto não se submete ao regramento social, mas sim a impulsão gerada por nossos desejos inconscientes.
A compactação
Reavendo as moções institucionais entendemos que o pensamento não é etéreo, ele está ancorado na matéria, consequentemente não há reconstrução mnêmica sem a contribuição da localização material e coordenada geográfica, ou seja, sem a construção institucional, a qual sinaliza por meio do condicionamento dos instintos, o que é preciso aparentar ser perante o determinismo cultural enraizado no âmago da sociedade originando aí o “eu coletivo”, esse “eu” que fora totalmente convencido de que é senhor de suas pulsões, pois afinal ele também crê que adquiriu toda a civilização da qual necessita por meio da domação de suas necessidades instintuais.
Sendo assim, a vida dos homens do espetáculo se resume numa busca constante por um lugar no tempo e no espaço, o qual neste contexto estará reservado, especialmente para aqueles que se tornaram hábeis em travestir-se sob os discursos socialmente definidos como lúcidos. Viver está intimamente ligado ao conceito de movimento, a vida é inquieta, ela reverbera, se agita e pulsa, entretanto não se pode representar o movimento da vida no âmbito material podemos atribuir juízo de valor pois “só o movimento é infinito. a estrutura é finita e estreita” REICH Pg. 82. Trataremos aqui do “eu genérico” enquadrando-o por esse viés, como uma referência ao “ego artificial” que é fantasiosamente eternizado (em nosso tempo histórico) no momento da foto de perfil (por exemplo).
Geralmente tal construção se baseia na ilusão de que um sorriso, aliado a uma tecnologia de filtro com melhoramentos de imagem, bastaria para informar ao alheio tudo que cabe a ele saber sobre esse “eu”. Assim as redes sociais – no sentido de “lugar de construção de ilusões”, porém, gerador de dores reais – representa o sucesso e ao mesmo tempo a derrota velada do ego institucional social. Ainda em relação ao que entendemos por “ego institucional artificial”, ressaltamos que nossa intenção é desenhar uma referência para o ego coletivo que nascera induzido pelo mundo digital tecnológico, mundo esse que democratizou o direito as poses de modelo no Instagram e os status de existência maravilhosa no Facebook, mesmo que tais ações, não sejam o bastante para apagar em termos práticos, os bastidores de uma existência cruel para a maioria das pessoas.
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O capitalismo e o consumismo
Assim a sociedade do capitalismo e do consumismo na sociedade do espetáculo engendrou uma modernidade regrada por um comportamento coercitivo, onde o ter e parecer são ações praticamente compulsórias numa pauta alucinada que faz obrigatório pensar diferente, agir diferente ou simplesmente fingir que é diferente. No entanto a versatilidade humana despretensiosamente mostra-se hábil em transformar tais convergências em enfeites, convertendo-as em brilho e colorido, assim, se por vezes elas (convergências impostas) não serviram para anular o íntimo e inconfessável na essência de alguns, ao menos servem para amenizar a realidade dura e cruel da rotina diária de muitas vidas. É esse colorido artificial que pretendemos explorar, afinal se do ponto de vista dos avanços das tecnologias que acrescentam conforto a vida das sociedades modernas, inegavelmente muito nos foi “dado”, também é fato que muito está sendo cobrado e tal custo nem sempre está relacionado às condições financeiras, acadêmicas ou emocionais.
Há uma barganha sugestionada no ar, ela impõe que não é permitido desfrutar das coisas da modernidade tecnológica sem remodelar a si mesmo. Doravante entre a citada “necessidade psíquica da referência material, que confere a pedra fundamental para explicar a existência de cada um representada pelo fornecimento da lembrança do lugar”, e o surgimento do eu artificial reside o que LAPLANCHE Pg. 65 define como “Clivagem do Ego” – expressão utilizada por Freud para aludir um “dividir-se de si mesmo” -. Em outros termos, queremos dizer que o “eu genérico” é a derivação do ser real, a qual (derivação) foi adaptada para atuar em âmbito institucional, sendo este, usual, sustentado em tudo que é concreto.
Diferentemente do “eu natural” descrito por LACAN, 1981 Pg. 33, este, dotado de complexidades definidas por “Massa Ideacional” numa referência a “toda uma organização de certezas, de crenças, de coordenadas, de referências que constituem a amplidão do ego”. No entanto, este segundo é mantido em oculto. Isto posto, no rol do sustento das ilusões, chegamos à questão do lugar enquanto significante, encontrando agora esteio em Freud, a partir do que ele mesmo definiu por “sentimento oceânico”. No caso específico do desenvolvimento freudiano, o sentimento oceânico, um sentimento tão grande a ponto de não ser possível explicá-lo encontra sua contrapartida no templo , sugerindo o templo como o despertador dessa emoção e não o contrário.
A domesticação da pulsão e a sociedade do espetáculo
Sendo assim a partir de um dado momento o sentimento oceânico não é mais o criador do templo como fora no início, agora, é o templo que desperta tal sentimento cumprindo sua função de lugar institucional, logo, por tal viés, o lugar institucional tem gene cultural e como tal no sentido genealógico da palavra remete a questão patrimonial que por sua vez estabelece o estado de coisas.
Entretanto, o instinto observado pela ótica da função global das instituições, constitui apenas uma maneira genérica de analisar o homem social, ou seja, o homem de pulsões “dormentes”, o que nos acomoda diante de um ponto de bifurcação ante a pretensão institucional de domesticar a pulsão, e o que resta de obscuro e indecifrável na criatura resultante desse processo.
Isso sinaliza que, enquanto a função institucional se limita a desenvolver a inteligência social, é a pulsão que de fato se mantém representante da natureza afincada dos homens, deflagrando que o controle dos instintos, seja por meio do lugar como significante institucional, seja pela conquista das ilusórias posses culturais não significa, em hipótese alguma, a anulação da mesma.
Ademais o ser institucional abomina o homem de pulsões (DELEUZE, 1955), a ponto de se horrorizar quando percebe-se como tal, de modo que tornou-se hábil em macular sua natureza, se ocultando por de trás de discursos eloqüentes e dando vez a ordem moralista que entendemos aqui, como um subproduto da construção institucional. Assim nascem os mais acalorados e bem construídos repúdios discursivos como, por exemplo, contra grandes questões como pedofilia, monogamia, sexualidade, violência entre tantos outros, como se os partícipes de tais ações pertencessem à outra espécie.
O egocentrismo na atividade do espetáculo
Desta sorte, é a partir de uma narrativa compatível com a conduta pré estabelecida, que o ser encontra um lugar mesmo que sob um formato artificial onde se encaixar numa sociedade construída sob as convergências das maiorias, e tal raciocínio nos remete mais uma vez a questão da territorialidade conforme sugerido na ideia de lugar institucional, lugar esse que a inteligência dessa espécie falante aprendeu a gaiatar sustentando o pronome possessivo “meu” sempre que dá ênfase aos termos: “meu” amigo, “meu” esposo, “meu” lugar, “minha” gente etc.
Retomando a ideia do eu gerado pelo mundo digital ressaltamos que a participação nas redes sociais, por sua vez, tem cobrado da massa social uma revisão de consciência, claro que tal estímulo em boa parte tem origem em estratégias de mercado para agregar valor aos seus produtos e consequentemente ganhar mais dinheiro.
O desejo de consumir fez do mundo uma grande aldeia e impôs uma cultura padrão alimentada por discursos sugestionados que encontraram um hospedeiro perfeito na internet onde são levantadas pautas ideológicas que alimentam a indústria da moda, além de fomentar ferrenhos debates políticos partidários construídos sob percepções pedantes.
Assim seja por opção consciente ou por pura influência, o fato é que tais ações deixam no ar dúvidas acerca da originalidade dos pensamentos “lançados ao ar” levando-nos a defrontar com a máxima observada em FOUCAULT (2014) de que só os loucos possuem discursos realmente livres “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder.
O lugar das redes sociais – o não lugar
Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que – isto a história não cessa de ensinar – o discurso não é simplesmente àquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. Foucault Pg. 10
De acordo com a etimologia da palavra, a definição de “conjunto” remete-nos a ideia de “ligado” e ligado, por sua vez, remete-nos a materialidade, ou seja, uma “coisa” (corpórea) que se junta ou conecta-se a outra coisa, assim, não se emprega o termo “conjunto” sem considerar como princípio um determinado ponto de partida, ou simplesmente um “lugar” nem que este seja fruto de uma ideia, como no caso das utopias, por exemplo. Raciocínio que nos leva a outra idealização, que diz respeito à “geolocalização imaginária” a qual será determinante para demarcar o ponto referencial que dará a noção de existência ao humano social. Ou seja, desde crianças aprendemos que é a partir de coordenadas geográficas que o “mundo acontece” como nos exemplos das inúmeras fábulas infantis a exemplo de: “Em um reino distante”.
“Era uma vez na terra dos Tellettubies”. “Pinnochio era um bonequinho que morava com seu vovozinho”. “Chapeuzinho vermelho foi visitar sua avó que morava na floresta”. “Os três porquinhos e suas casas”. Enfim, uma enorme variedade de “estórias” que tem por fundamentação a ideia central de um determinado lugar físico, lugar que é o ponto de partida para esquadrinhar um pensamento ou simplesmente um devaneio. Seja para que for, o pensamento humano acostumou-se a ter um ponto originário para construir e se reconstruir, e tal referência, é sempre um determinado lugar. Ideia reforçada pela experiência do “lar social” construído quando a espécie humana rompeu com a história natural, passando de previsíveis caçadores e coletores a agentes transformadores da natureza.
A simbologia de poder e a sociedade do espetáculo
A partir de então cada vez mais se unindo em torno do conhecimento adquirido através das ações de tentativa e erro, os movimentos migratórios dos grupos humanos passaram a condensar sua simbologia de poder (que parte de um lugar para impor sua força em outro) ao “transportar a própria experiência. Na prática a ideia de poder estava atrelada a uma questão de existência social, pois só seguiria necessário no grupo os que conseguissem se adaptar ao comportamento adquirido como plantar, pastorear, construir, prevalecendo a partir de então, uma espécie de seleção natural sodalícia, não muito diferente de nosso tempo histórico, onde a tecnologia tornou-se compulsória e não imaginamos uma pessoa integrada a nossa realidade sem que tenha um e-mail, facebook e coisas do tipo…
Sendo assim o ato de aprender e compartilhar conhecimento, além de dar à espécie humana superioridade diante dos animais irracionais, criou uma organização complexa, onde os homens passaram a administrar a dualidade imposta por suas tendências instintivas e o respeito às regras de convívio grupal. Desse modo encontramos na imaginação que precede a organização social, a base abstrata que posteriormente dará origem às instituições, as quais se apoderam do senso de localização a fim de construir neles o sentido pré definido das experiências coletivas, o que reforça a ideia em DELEUZE (1955 Pg. 137) de que “o instinto traduziria as urgências do animal e a instituição as exigências dos homens”.
Entretanto, é justamente neste ponto que esbarramos nos domínios da pulsão na sociedade do espetáculo, bem como na tendência “natural” de se conduzi-la (pulsão) a sublimação (LAPLANCHE Pg. 495), deflagrando que o homem social, embora moldado para esse fim (sublimar), não demonstra estar bem encaixado no perfil de entidade bem resolvida, ele apenas acostumou-se a substituir uma ação por outra…
Assim, pela ótica do tratamento clínico, na sociedade do espetáculo descobrimos o “não lugar” como um objeto consciente de desejo coletivo e tal “lugar”, é onde o ser institucional e o ser de pulsões conflitam constantemente, gerando subsídios que podem contribuir para o surgimento de melancolias e depressões. De forma que neste contexto, se estabelece também um hiato entre o eu e o eu institucional, o qual obriga a investigação psicanalítica a submeter o pré-diagnóstico “depressão” ao crivo do modismo antes de confirmar-la, afinal como elucidamos até aqui, o tripé da felicidade institucional tem suas bases na ilusão da existência de um lugar concreto em meio à “flora” urbana (relembrando que um lugar material nunca permanece o mesmo em seu formato físico, pois está sujeito a intempéries, aos interesses de mercado, do progresso etc.) na clivagem do ego e na beleza e perfeição do discurso construído culminando na figura do eu do espetáculo inserido na sociedade do espetáculo conforme também gesticulam as palavras introdutórias de TAVARES, 2010.
O excesso de interioridade
“O excesso de interioridade/introspecção do deprimido, seu isolamento melancólico diante do mundo, se contrapõe à estética da performance, estimulada pelo discurso social vigente (Birman, 2001). Nesse sentido, o sujeito depressivo (ex)-siste no cenário social, está à margem do estilo de existência priorizado pelo espetáculo, devido a sua incapacidade de identificar-se com as representações forjadas pela ideologia predominante das aparências”. Tavares, Pg. 16 Ainda em relação ao “eu” encontramos em LACAN, Pg. 10, A noção de sujeito.
Quando se a introduz, introduz-se a si mesmo” pensamento que traz sustentação a ideia de que o sujeito institucional pode ser também um sujeito assujeitado, induzido pela forma coletiva e talvez coercitiva de pensar em prol da manutenção de mundo espetacular. Assim o subproduto da realidade institucional é um sujeito ambíguo, que sabe que sente, mas nem sempre sabe o que.
Que sabe o que quer, mas nem sempre sabe o que. Que sabe que caminha, mas nem sempre sabe para onde. O que este personagem tem por certo é sempre o ponto de partida de suas matrizes vivenciais, essas guardadas na melhor parte desse eu, um eu que pode se confundir com um mundo de interesses, diferenças e complexidades.
Conclusão
Talvez a implantação da mentalidade sedentária nascida após o evento reconfigurador da revolução agrícola, tenha tentado propositalmente suplantar a herança recebida dos nossos antepassados nômades caçadores e coletores. Mas o fato é que o pensamento parte de uma organização que nos parece apenas adquirir racionalidade após demarcar lugar no tempo e no espaço e construir sua instituição. É o conceito de lugar que institui o aqui e o agora determinando quem somos, o que pretendemos ser, onde queremos/podemos chegar e o que nos liga uns aos outros, cada um com sua “individualidade coletiva” semelhante aos elos de uma corrente, que apesar de idênticos são individuais.
O modo de pensar e de existir parte de algum lugar e este lugar é uma instituição por vezes abstrata, por vezes metafórica, porém real o bastante para que criemos nela bases sólidas para nossas alegrias, dores, neuroses etc. Nesse contexto a pulsão em Sigmund Freud embora sabidamente incontrolável e inevitável, paira sob o livre arbítrio de um homem que não se sente mais à-vontade na condição de espécie criada a imagem e semelhança de “Deus”, mas que decidiu buscar num perfil religiomaníaco restabelecer uma fantasiosa proximidade com o divino, postando-se para tanto como senhor absoluto de suas vontades de modo que suas impulsões não merecem outro destino a não ser entendidas como obra de um grande inimigo, o qual reside no mundo material e laico, pensamento que reduz o entendimento da teoria da pulsão freudiana a uma rudimentar influência mundana e neste enquadramento, o indivíduo é compelido a admitir que o não resistir a satisfação dos próprios desejos é uma prova da má influência do mundo e portanto, nada tem a ver com a questão pulsional como se de fato a teoria de Freud pudesse ser interpretada sob o viés institucional.
Bem como o instinto em Deleuze que põe em xeque o papel antropocêntrico do homem contemporâneo, relegando-o a mero serviçal dos desígnios institucionais que visam restringir suas pulsões, tornando o homem de desejos artificiais um paciente do consultório psicanalítico antes mesmo que ele se perceba como uma vítima do arranjo dominador da hegemonia das instituições. Assim é confundirmos o que é sugerido com o que realmente faz parte de nós. Desejamos o que não queremos e queremos o que não desejamos. Construímos um lugar esperando que ele não seja um lugar mas que mesmo assim possa abrigar um eu que não sou eu.
O homem civilizado
Seja o homem institucional civilizado, seja o homem animal dominado pelas incontroláveis pulsões o primeiro atrelado a um lugar material e o segundo refém das abstrações fornecidas pelos desejos, o fato é que ambos coabitam o eu genuíno, porém a predominância de um dependerá da subordinação do outro, de modo que o consultório psicanalítico se dispõe a participar de uma espécie de jogo de esconde-esconde onde a função do terapeuta, é encontrar o lugar inconsciente por onde emana todas as construções do paciente.
Talvez por isso a frase “mergulhar para dentro de si mesmo” ou para “dentro do universo do outro”, traga consigo uma gene literal, que não permite esquecer que, para ajudar alguém, temos que saber de que lugar estamos partindo e saber em que lugar pretendemos chegar. Mesmo que tal lugar no íntimo do alheio, seja tão complexo, a ponto de ainda não se encontrar ali nenhum referencial instinto/pulsional oficial.
BIBLIOGRAFIA
DELEUZE, Gilles. Instincts et institutions, Paris, Hachette, 1955, pp. viii-xi. Tradução de Hélio Rebello Cardoso Junior para a coletânea GILLES DELEUZE – A ILHA DESERTA E OUTROS TEXTOS: Textos e entrevistas (1953-1974), Editora Iluminuras, São Paulo, 2005.
FOUCAULT, Michel, 1926-1984. A Ordem do Discurso: Aula inaugural no collége de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970 – 24 ed. – São Paulo: Edições Loyola, 2014.
FREUD, Sigmund, 1856-1939. O Mal Estar na Civilização; tradução Paulo César de Souza. 1ª ed. – São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
LACAN, Jacques, 1901 – 1981 O Seminário: Livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954/ Jacques Lacan; texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de Betty Milan. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da Psicanálise / Laplanche e Pontalis: Sob a direção de Daniel Lagache: tradução Pedro Tarnem. – 4ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LEVITIN, Daniel J. A Mente Organizada: Como pensar com clareza na era da sobrecarga da informação. Tradução Roberto Grey – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
REICH, Wilhelm, 1897 – 1957 “O Assassinato de Cristo”: volume um de A peste emocional da humanidade 5ª ed.- São Paulo – Martins Fontes, 1999.
TAVARES, Leandro Anselmo Todesqui A depressão como “mal-estar” contemporâneo: medicalização e (ex)-sistência do sujeito depressivo. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
Este artigo sobre o lugar do “eu” na sociedade do espetáculo foi escrito pelo autor Marcos Aurelio de Souza.
3 thoughts on “Sociedade do Espetáculo: significado e o lugar do eu”
Parabéns Marcos, muito embora eu seja uma iniciante nesse terreno , achei muito bem elaborado seu artigo, cujas idéias e proposições batem com a institucionalização da sociedade contemporânea!
Muito bom comentário! Parabéns!
Que texto ! Além de muito bem estruturado e de um conteúdo magnífico.