Vamos propor uma diferenciação entre erro e dado. Nosso objetivo é demonstrar que uma posição em favor do dado é mais propícia ao aprendizado, tanto nos estudos da linguagem quanto na Psicanálise.
A diferenciação entre Erro e Dado
Para os objetivos deste texto, entende-se:
- Erro: o oposto de “certo”. Então, adotar uma postura apressada de julgar algo como certo ou errado pode muitas vezes limitar nosso aprendizado acerca não só do objeto estudado, mas também acerca do comportamento dos sujeitos que o observam.
- Dado: entender algo como um elemento que possa se tornar informação e, depois, analisado para tornar-se conhecimento. Assim, o objeto observado não é visto como certo ou errado, mas sim como um dado potencialmente informacional.
Não estamos aqui defendendo uma postura isencionista. Nossa mente trabalha também por meio de julgamentos. E há muitas situações diárias em que a definição de um certo ou errado é colocada a nós (mas tentemos ser menos apressados ao atribuir essa definição).
Também não defendemos a ideia de que o dado seja independente do sujeito: não existe dado em si, não existe dado “transparente”, pois os dados dependem dos sujeitos que os olham. Coletar um dado em vez de outro é uma atitude do sujeito. Então, o dado:
- não é apenas objetivo (da coisa analisada),
- mas é também subjetivo (permeado pelo sujeito que o observa ou mesmo que o cria).
Exemplos da linguística da diferença entre erro e dado
Exemplo 1: “Os menino esperto joga bola”
Antes de dizer que “doeu nos olhos” ler a frase escrita de forma errada acima, espere! Evite julgar o erro antes de ler os próximos parágrafos.
Sim, sabemos que há erros de concordância no subtítulo acima, tanto de concordância nominal (os meninos espertos) quanto de concordância verbal (meninos jogam).
Porém, se perguntarmos a qualquer falante nativo do português se a ideia transmitida pela frase é singular ou plural, isto é, se ao ouvir a frase o interlocutor imaginou um menino ou mais de um menino, a resposta provavelmente será mais de um menino.
Poderíamos adotar duas posturas:
- Dizer que a frase está errada, por vezes até mesmo debochando de quem a falou ou escreveu (“não sabe gramática!”, “não sabe falar direito!”); ou
- Entender que isso é um dado que nos permite um aprendizado, mesmo que saibamos que, na linguagem escrita culta, a frase não seria adequada.
Se adotarmos a postura do erro e o ridicularizarmos, vamos encerrar o debate e pouco aprenderemos além do que já sabemos.
Se adotarmos a postura do dado, vamos ter uma oportunidade de nos perguntar: por que, mesmo a maioria das palavras estando no singular, a frase continua trazendo a ideia de plural?
Pelo segundo viés (isto é, do dado), poderemos encontrar como resposta: os determinantes (como o artigo “os” na frase) carregam a principal fonte de marcação de número (singular/plural) em português, mesmo não sendo a palavra de maior carga semântica na frase. Em outras línguas (como o inglês), este papel focal de número é atribuído ao substantivo.
Veja que, na frase gramaticalmente correta “os meninos espertos jogam bola”, todos os sufixos grifados são redudantes! Afinal, não seriam necessários tais sufixos para entendermos que estamos falando de mais de um menino (plural).
A mesma gramática que diz que “subiu para cima” é errado por ser redundante exige que façamos a redundância (desta vez “correta”) da concordância verbal e nominal! Isso mostra que as regras gramaticais são bastante seletivas, não é possível somente explicá-las pelo princípio do mínimo esforço, pois, se assim o fosse, as redundâncias de marcação de plural na frase-exemplo não existiriam nem na linguagem dita “vulgar”, nem no português culto.
Você percebeu? Adotar a postura de erro não nos traria oportunidade de aprendizado e de reflexão de todas essas ideias acima. Se tivéssemos parado na ideia do “está errado”, não iríamos para além do que já sabíamos.
Entender o “erro” não como um erro, mas como um dado nos trouxe a oportunidade da descoberta… ou da invenção.
Exemplo 2: “Eu morri a flor”
O segundo exemplo é um pouco mais divertido e “fofo”, menos sujeito ao nosso olhar julgador, se contextualizarmos que a frase tenha sido dita por uma criança que tenha desejado transmitir a ideia que os adultos identificam como “eu matei a flor”.
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Ainda assim, podemos também ter as duas posturas, de ver a frase a frase “eu morri a flor” como:
- um erro, pois morrer é verbo intransitivo; “você não morreu a flor, você matou a flor”, corrigiríamos a criança;
- um dado, pois morrer e matar estão dentro do mesmo campo semântico de “perder a vida”, sendo que a criança que tenha dito esta frase não distingue a diferença conhecida pelos adultos entre o par opositivo da atividade do verbo transitivo direto (matar) e a não-atividade do verbo intransitivo (morrer).
O erro e o dado na Psicanálise
Podemos aproveitar a mesma reflexão feita em Linguística (no começo deste artigo) para a Psicanálise e o setting analítico:
- Se o analista tem seus conceitos teóricos ou morais muito rigidamente formados, poderá julgar o analisando a partir de seus critérios absolutos. Assim, o analista estará atento aos “erros” do analisando, isto é, às ocasiões em que o analisando extrapole a moral do analista ou não se encaixe aos conceitos que o analista decorou.
- Por outro lado, se o analista enxerga um elemento como um dado (e não como um erro), terá a oportunidade de lançar um novo olhar sobre o analisando e a terapia. Assim, observará a relação do evento com outros eventos, dentro de um sistema de valores mais contextualizado àquele analisando.
Claro que poderá haver um certo ou um errado, quando adotamos a postura de priorizar um dado. Mas esse certo ou errado será dentro de um contexto do próprio analisando e será enunciado depois de atenuadas as nossas armaduras.
O erro e o dado em nosso aparelho psíquico
Trouxemos anteriormente dois exemplos em linguística, sendo um exemplo com foco em sintaxe e outro com foco em semântica. Agora, faremos a mesma reflexão em Psicanálise.
Se o humano fosse indivíduo (isto é, não dividido), supostamente seu lado racional prevaleceria. Haveria a coincidência entre querer e fazer. Não haveria uma “voz interna” dentro de nós brigando com outra parte dentro de nós. Em última instância, haveria um único ser.
Neste sentido, seria alcançável um ideal de perfeição, pelo menos de natureza psíquica. Afinal, se eu sei quem sou (em toda minha extensão, não apenas na dimensão dos clichês da autoajuda) e se eu sou uma única parte indivisível, não há erro. Não teria porque não coincidir o mundo das ideias e o mundo sensível (dos sentidos).
Felizmente, o humano não é tão simples assim. Há uma divisão de partes dentro de nós. Não somos transparentes. E isso provavelmente esteja na base da diferença entre pessoas e da própria diversidade cultural.
Vamos pensar nas três partes da psique humana conforme propostas por Freud na segunda tópica:
- ego: a instância de maior vocação racional, que responde para o mundo e para o próprio ser “quem eu sou?”, que possibilita o atendimento das demandas do mundo exterior ao ser e que também “negocia” (dentro do possível) um “acordo de interesses” entre as duas outras instâncias;
- id: a instância que é totalmente inconsciente, pulsional, “selvagem”, uma instância que busca a pura satisfação e que não se expressa numa linguagem clara aos padrões da racionalidade, tampouco se submete aos padrões de temporalidade e espacialidade.
- superego: uma instância que é uma especialização de Freud responsável pelos valores morais (certo/errado) e impõe ao ego uma dimensão de sacrifício do prazer em prol dos benefícios que o ego terá com a divisão social do trabalho, possibilitada pela vida em sociedade.
O erro, então, é inerente à psique humana. Afinal, essas instâncias da mente não se comunicam numa mesma “linguagem” e com base em iguais interesses. É impossível não pensar que o erro seja um fator constante na interação entre essas instâncias.
Mesmo quem desconfie se nossa psique funciona mesmo assim, é inegável a ideia de que temos vozes interiores discrepantes, que nos constituem. E a existência dessas vozes configuram barreiras a qualquer ideia de uniformidade mesmo individual, quanto mais uma ideia de uniformidade entre duas pessoas diferentes, ou na sociedade.
Assim, o erro é uma possibilidade trazida pela diferença. E é um fator de enriquecimento psíquico e social. Muitas vezes, a aniquilação do erro é um erro ainda maior: a aniquilação da diferença e do outro. Em última instância, o erro é o desejo de um ditador em aniquilar as diferenças relevantes, em aniquilar a alteridade. Este “outro” pode ser:
- O outro de nós mesmos, nosso desconhecido, nosso inconsciente;
- O outro com quem convivemos mais proximamente, em nosso relacionamento cotidiano;
- O outro com quem não convivemos atualmente, mas que ajudou a formar nosso “eu ideal” em nossa história pregressa (pais, amigos, professores, ídolos etc.);
- O outro mais abstrato, que representa ideias de “humanidade” ou de diferenças discursivas com que nos definimos e com que compreendemos as contradições da vida em sociedade.
Como o certo e o errado podem ser resistências à terapia?
Se nos apressarmos em definir o certo e o errado durante a terapia, estaremos nos arriscando a congelar a possibilidade de novas descobertas e de novas interpretações sobre os dados que a livre associação poderia nos trazer.
Neste sentido, por exemplo, uma sexualidade certa ou errada não existirá em termos absolutos, mas poderá existir uma sexualidade certa ou errada para o analisando, isto é, de acordo com os dados que emergirem de uma sequência terapêutica com um analisando em específico. No fim das contas, o certo ou errado é resultado da condição (no exemplo, uma sexualidade) que gere mais realização e menos angústia ao analisando. E isso os dados (a escolha deles e a interpretação deles) poderão nos ajudar a dizer.
Da mesma forma, a pretensão do analista de enquadrar o analisando ao certo ou errado de sua teoria também pode atrapalhar o dado terapêutico. Por exemplo, se o analista parte da ideia de que as causas de todos as dores psíquicas da vida adulta são resultados de UM evento traumático principal ocorrido na primeira infância, o analista poderá insistir com esta ideia. Até que o analista “descubra” a verdade que estava procurando, ou até que o analisando fantasie memórias que satisfaçam a busca do analista.
A abordagem de priorizar o dado, tentando suspender ainda que temporariamente o julgamento no que for possível, é um exercício que o analista deve buscar fazer. É, no fundo, uma técnica analítica para o manejo terapêutico. E o analista também deve sugerir que o analisando o faça, nas ocasiões em que o analista perceber que rotular o certo ou o errado seja um mecanismo de defesa para evitar uma reflexão sobre o que se entende como certo e o errado.
Como aproveitar o erro como sendo um dado?
Sim, muitas vezes a pressa em “encerrar a discussão” com um rótulo “certo” ou “errado” prejudica a compreensão de entendermos o dado. Pode ser um recurso defensivo (mecanismos de defesa) ou de resistência.
Boas perguntas que servem como antídoto a esta rotulação apressada, e que podem ser usadas no setting analítico (mas não só nele):
- é certo ou é errado do ponto de vista de quem?
- definir isso como errado (ou como certo) me permite aprender o quê a respeito do objeto ou dos sujeitos?
- o que este suposto erro (ou acerto) pode me “revelar”? como posso aprender com ele?
- como isso afeta a vida do analisando, sua vida psíquica, sua autopercepção, seus relacionamentos?
- ao identificar algo como errado (ou como certo), estou mobilizando quais princípios e ideologias?
- quem acha certo (ou errado)? como? para quem? por quê? quando? quanto? quão relevante?
Um recurso interessante é o analista implicar o analisando em seu discurso: “Você me disse que a atitude (ou hábito, ou ideia, ou orientação etc.) não é certa. Mas por que você acha que não é certa?”. Assim, há uma oportunidade de perceber coisas como:
- o desejo categorizado como erro, que o ego não está pronto para admitir;
- o erro como “o que outra pessoa” (ou o ideal abstrato de sociedade) convencionou assim definir;
- o erro como um caminho possível ao analisando, se isso lhe for uma condição que reduza sua autopercepção de angústia.
Esta nova postura crítica na direção da indagação tende a permitir que a palavra final sobre o certo ou o errado seja aquela manifesta pela verdade a que o analisando alcançar no processo terapêutico. E não em relação aos valores do psicanalista, nem em relação aos valores que o analisando já traga pronto, nem em relação aos valores da família do analisando ou da “sociedade”.
Este resultado da experiência do analisando com sua nova verdade (ou a mesma verdade de antes, porém agora ancorada naquilo que o analisando identifica como legitimamente seu) poderia ser uma sinalização de que a terapia ajudou o analisando no seu processo de fortalecimento do ego.
A Psicanálise é filha do erro
Vejamos alguns exemplos de como os erros (quando não “julgados” e sim vistos como dados) podem ser relevantes à terapia, como os erros podem ser motivados por causas potencialmente inconscientes:
- os sonhos, tão valorizados pela interpretação dos sonhos em psicanálise, “erram” a lógica lúcida, como ao modificar as relações de causa-efeito, espacialidade e temporalidade;
- os chistes, lapsos e atos falhos são “erros” potencialmente reveladores do desejo etc.;
- os sintomas psicossomáticos são “erros” na forma como o corpo converte a energia psíquica recalcada em uma manifestação física/corporal;
- as interações entre nossas instâncias psíquicas (ego, id e superego) não se baseiam em uma linguagem unívoca e num acordo de interesses que tenham reais chances de resultarem num “acerto”;
- a associação livre, método psicanalítico por excelência, explora a ideia de que as relações de verdade começam a ser estabelecidas quando analista e analisando se esforçam (sem pressa) para depurar (e até mesmo realçar) os aparentes erros e irrelevâncias que emergem no setting analítico;
- a atenção flutuante, forma de proceder do analista no setting analítico, pressupõe que o analista não se prenda a padrões rígidos de julgamento ou de auto-certezas, nem limite assuntos fixos que o analisando poderá trazer, mas oferecer ao analisando uma presença atenta (com perguntas, implicações e análises) em que a associação livre possa reverberar e ir tomando linhas de significados.
E estes são apenas alguns exemplos, poderíamos citar muitos outros. Como o Complexo de Édipo, talvez o maior exemplo de como o erro (do filho que “sem querer” mata o pai para desposar a mãe) é pinçado como um dado, compreendido como uma informação e, depois, em um conhecimento que alegoriza esses eventos em um Complexo útil à compreensão sobre o desenvolvimento humano.
Mesmo quando hoje muitos críticos rejeitam o Complexo de Édipo (ou rejeitam o Édipo universal), ainda assim temos um exemplo de um conceito que, mesmo que “errado”, serviu de ponto de partida (serviu de dado) para pensarmos a dependência e o afeto da criança com a mãe, bem como a rivalização da criança com o pai e com tudo aquilo que queira lhe roubar a mãe, permitindo-nos também pensar a autonomia do sujeito como um processo de desapego a estes afetos da infância.
Enfim, se você estuda Psicanálise, já deve ter percebido que o dogmatismo apriorístico “certo versus errado” não é muito proveitoso. Afinal, a Psicanálise é um saber que decorre justamente da valorização e da ressignificação do erro, isto é, de tomar o erro como um dado revelador de outra coisa.
A Psicanálise não seria possível se apenas identificasse os erros a partir da visão de mundo até então conhecida. Isso é não apenas um componente da história da Psicanálise, como também um princípio para a atuação do psicanalista. Talvez nenhum outro campo do saber seguiu mais do que a Psicanálise a ideia de enxergar o erro não como um erro, mas antes de tudo como um dado.
Este artigo foi escrito por Paulo Vieira, formado em Letras pela Unicamp; reingressante em Linguística e mestrado em Linguística / Análise do Discurso (não concluído) pela mesma universidade; é coordenador de conteúdos do Curso de Formação Psicanálise Clínica.
6 thoughts on “O Erro e o Dado em linguística e psicanálise”
Bom artigo. Este método de associação livre se assemelha muito com o método que usamos no coaching e sempre dá frutos maravilhosos em termos de resultados das sessões. Já na definição de certo ou errado, a PNL nos ensina que não existe certo e nem errado. Tudo sempre depende do contexto e da intenção por trás dos atos. O fato é que tudo que fazemos estamos buscando ou procurando o nosso bem estar, ou seja, estamos sempre nos sentir bem com nossas decisões, embora possamos do ponto de vista da psicanálise, buscar as causas dessas decisões ou sentimentos em relação a vida. E aqui estou expressando apenas a minha opinião. Ela está certa ou errada? ou será um dado para ser analisado?
Mais uma veze, texto de excelentíssima qualidade, claro, direto, objetivo. .Encantada comPaulo Vieira por sua competência linguística textual e conhecimento profundo da psicanálise.
Obrigado por compartilhar seus conhecimentos.
Fantastico texto. Fiz vários cursos com Paulo Vieira e ele sempre surpreendendo com categoria, parabéns!
Ex.ecelente artigo
Excelente artigo, Parabéns pela iniciativa, linguistica na psicanálise