felicidade - significado na psicanalise e filosofia

Felicidade: significado na Psicanálise e Filosofia

Publicado em Publicado em Teoria Psicanalítica

Neste trabalho, desenvolveremos o conceito de felicidade, significado da expressão e suas considerações por diferentes campos dos saberes, sobretudo na perspectiva da Filosofia e a Psicanálise.

Esta abordagem é relevante por se tratar de um tema amplamente difundido pela sociedade contemporânea e quase impositivo pela civilização, seja como direito individual, seja como indicador de felicidade per capita. Ou, ainda, como imposição cotidiana nas relações sociais.

Como hipótese, partimos do princípio que a ideia de felicidade na sociedade contemporânea. Sobretudo, em sua mídia de massa, difere, em regra, do discurso sobre o significado de felicidade presente nos vieses filosófico e psicanalítico, bem como em outros momentos pretéritos.

Como objetivo, buscaremos, neste trabalho, comparar ideias da psicanálise, sobre o tema felicidade, com a de outras ciências e contextos sociais. Busca-se, além de uma maior compreensão sobre o tema, favorecer a uma reflexão sobre suas implicações na vida cotidiana, nos discursos sociais e na política implementada. Bem como refletir sobre a possibilidade de felicidade pessoal e sua ideia de constância tão impregnada nos dias atuais.

 

Índice de conteúdos

Primeira parte. Na primeira parte do trabalho, abordaremos sobre alguns discursos sociais, políticos e midiáticos sobre o tema da felicidade e sua possível correlação com a sensação coletiva sobre a mesma.

Segunda parte. Já na segunda parte, focaremos em demonstrar, através de alguns pensadores, o que a filosofia entende por felicidade e suas implicações sociais.

Terceira parte. Abordaremos a relação da psicanálise e do discurso da felicidade. Apresentaremos alguns entendimentos psicanalíticos sobre o tema, e sobre o sofrimento, a angústia e outros termos associados. Isso se contraponto com os discursos sociais, políticos, midiáticos e filosóficos.

Metodologia para estudar o significado de Felicidade

Para atingir esse objetivo, a metodologia empregada constitui-se em pesquisa bibliográfica. Assim, fazendo uso de livros psicanalíticos, revistas filosófica e financeira sobre o tema, além de artigos e livros relacionados, almejando fornecer uma base mais consistente para uma maior compreensão, reflexão e análise crítica sobre esse importante e tão difundido tema da felicidade contemporânea.

Este artigo sobre felicidade: significado na psicanálise e na filosofia foi elaborado por Maria Rosineide Afonso, concluinte do nosso Curso de Formação em Psicanálise Clínica. Conheça e inscreva-se no Curso: 100% Online, Início Imediato.

 

Parte 1. A imposição da Felicidade na sociedade contemporânea

“À Procura da Felicidade” não apenas se tornou socialmente divulgada através do filme sob mesmo nome, mas também presente em inúmeros cenários sociais e midiáticos. Inclusive, como tentativa de inseri-la no ambiente Constitucional pátrio brasileiro como direito essencial, através da PEC da Felicidade (n° 19/2010) e de sua inserção em diversas constituições nacionais, como a do Japão (artigo 13 do Capítulo III) e a dos Estados Unidos da América (Inciso I da Declaração de Direitos de Virgínia, 1776).

Além da tentativa de asseguração da “Felicidade como um Direito constitucional”, diversos discursos midiáticos/comerciais têm tentado colocar o foco na felicidade como direito e dever de todo ser humano, mas, sempre atrelado ao consumo ou padrões pré-determinados. Nesse sentido, tem-se propagandas comerciais de uma empresa de cartões com o slogan “Existem coisas que o dinheiro não compra. Para todas as outras existe Mastercard“.

Embora pareça um comercial simplório, na verdade, tal discurso deixa claro a importância do capital e do dinheiro para o alcance da felicidade, sendo poucas coisas que o dinheiro não compraria. Assim, essa publicidade, segundo Gaiger (Apud Rocha, 2015, p. 207) propagada a ideia de que o dinheiro seria de grande valia, senão indispensável.

 

Felicidade e vínculos sociais

Do outro lado, a responsabilidade, amizade, compaixão, honra, dádiva, reciprocidade, não fariam sentido senão sob a premissa de serem seres de relações, demandantes e ofertantes de vínculos sociais.

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    Tudo isso seria, para o autor, a vantagem do mundo sem Mastercard e suas promessas ilusórias. Ainda segundo ele, se a vida humana depende de vínculos, com a Felicidade não seria diferente.

    Assim, discursos mercantilizando-a não passaria de propostas ilusórias ou, no mínimo, superficiais e precárias.

    Uma outra importante empresa a relacionar felicidade ao seu produto é a Coca-Cola. Tal empresa investe muito em propagandas, sobretudo em datas festivas, para relacionar seu produto a momento feliz e mesa farta, por meio de histórias e emoções.

    Em um dos seus comerciais eis o discurso:  “Abra a felicidade”, como se esta não fosse relativa e pudesse ser comprada. Não só há uma relação felicidade x produto, mas também uma tentativa de a tornar coletiva, de massa; e não pessoal, subjetiva.

    Atualmente, parece que as redes sociais têm surgido como importante ferramenta a atrelar o consumo e status social a ideia de felicidade. Isso numa imperativa exposição do sujeito como imagem de desejo e propagandista do sistema capitalista.

     

    Felicidade e o “desejo de desejo”, por Lacan

    O sujeito aparece, quase sempre, em fotos ou discursos como um ser alegre, feliz, próspero, aparentemente casando a necessidade de seu desejo com o olhar do outro.

    Nas felizes palavras de Lacan (2005, p.33): “O desejo de desejo é o desejo de que um desejo responda ao apelo do sujeito… O sujeito dele necessita para que o Outro o reconheça, para receber dele o reconhecimento”.

    Porém, esse reconhecimento não mais parece passar pelo afeto (em Lacan), ou valores/virtudes (Aristóteles), ou frustrações/privações (em Freud), mas em máscaras/aparência de felicidade, medida pelo poder de compra, prazeres individuais, liberdade e status social.

    Mas então caberia a indagação do por que na clínica, nas conversas intimas, na vida privada, ter-se a sensação de seres humanos mais infelizes? Vivemos a sociedade do amor líquido, conforme definição de Bauman.

    Por que, numa sociedade de consumo fácil, amplo e rápido, se teria alarmantes casos de depressões, doenças mentais e suicídios, sempre crescentes e proporcionais ao crescimento econômico e a globalização de mercado?

     

    Máscara superficial…

    Talvez como uma máscara superficial, o discurso não se sustente no dia a dia, nas crises relacionais, sociais  e econômicas que estes ambientes acarretam, ou, no mundo real.

    Nesse sentido, a recente edição da revista Global Finance (2020), traz, como tema de capa, a Globalização e seus descontentamentos.

    A revista não somente evidencia que a integração econômica trouxe riqueza extrema e proporcional pobreza; como levanta a indagação se os líderes mundiais podem navegar em direção a um estado equilibrado.

     

    A felicidade e a globalização

    De certo, a globalização trouxe enormes mudanças sociais. Ela elevou a integração entre países, a quase universalização do mercado e, junto com ele, vieram os avanços tecnológicos, as facilidades digitais e novos meios de trabalho, relacionamentos sociais e fluxos de capitais.

    Mas também, segundo a reportagem, tem potencializado as desigualdades sociais, eliminado postos de trabalhos e elevado a insegurança e sensação de ansiedade por parte de cada sujeito.

    E se a felicidade está relacionada com o capital, com a aquisição de coisas, bens, então ela está sendo vista como algo cada vez mais caro, instável, ameaçado e, muitas vezes, inalcançável.

    Segundo Franco Filho (2009, p.187), a felicidade hoje estaria relacionada ao hedonismo contemporâneo. Este, segundo ele, propõe extrair da liberdade individual o máximo de prazer disponível, equivalente a ser feliz. Este prazer disponível implica a possibilidade de consumo de todas as benesses do progresso tecnológico a disposição.

    Para ele, é um discurso de que quanto mais o sujeito consumir, mais ele será feliz. Promessa embutida na crença propaga- da pelos meios de produção.

    Outro ponto considerável, levantado pelo autor, é que esta proposta estaria dentro de uma arquitetura de razões que aponta não apenas que se pode ser feliz, mas que se deve ser feliz. Para o autor, isto leva a uma mudança radical nas estruturas psíquicas: o que era pertinente ao Id (busca do prazer) se tornou pertinente ao Superego.

    Ou seja, o sujeito estaria condenado à culpa se não for feliz, ao fardo da infelicidade de não ser feliz, gerando sofrimento (Franco Filho, 2009, p.187).

     

    Tendências contemporânea/sociais

    Assim, o que se nota, é uma tendência contemporânea/social a negar esse desprazer. O sofrimento e a infelicidade, repreendendo o choro, o luto, a dor e outros recursos antes essenciais para suportar e elaborar a perda e a condição humana: a angústia de viver.

     

    A liberdade individua e a felicidade

    Além disso, outra razão, apontada pelo autor, seria a tentativa de aplicar fórmula, meios, passos, para que todas as pessoas possam chegar lá. Nesse sentido, a liberdade individual na escolha dos prazeres fica tolhida: não são mais os desejos subjetivos, pessoais, que importam; mas, sim, padrões externos impostos para consecução de prazer.

    São livros de autoajuda com fórmulas/passos mágicos a serem seguidos para ser feliz, como definições sobre o que é felicidade, São padrões de peso/medida e características estéticas preestabelecidas, bem como a métrica de sucesso, como ser feliz, dicas de felicidade, entre outras.

    ara o autor, esses padrões, na tentativa de alcançar a felicidade, acabam, contrariamente, gerando frustração, culpa e sensação de exclusão do paraíso. (Franco Filho, 2009, p.188)

    A terceira razão, apresentada por ele, é a noção de prazer não mais decorrente das virtudes, mas da capacidade de ter sensações prazerosas. Nesse contexto, sobressai o prazer sensorial, em contraponto ao afeto e as trocas afetivas com os outros.

    Além disso, sobressai a exaltação do impulso para buscar experiências novas, enfrentar desafios e, até mesmo, viver situações de perigo (Franco Filho, 2009, p.188). Disso resulta numa cultura da analgesia, cuja procura de prazer cria projetos explícitos e tenta abolir a dor, não a tolerando.

    Daí sobressai a importância da medicina na expectativa de anular a dor, seja física, seja moral (Franco Filho, 2009, p.188).

     

    O hedonismo

    Finalizando, Franco Filho (apud Zizek, 2003), salienta para uma vivência atual de hedonismo envergonhado. Aqui, é preciso ter a posse do prazer, mas sem passar pelos constrangimentos, culpa, aspectos não prazerosos, nocivos, que fazem parte da essência desse prazer.

    O autor cita exemplos de tendência a consumo de “café sem cafeína, creme sem gordura, cerveja sem álcool…sexo virtual…”. Isso,  numa tentativa de que essa procura de prazer não tenha a marca da transgressão, que geraria desprazer e culpa, na feliz palavra do autor “vale a transgressão, desde que não pareça transgressão”.  (Franco Filho, 2009, p.190)

     

    Parte 2. A Filosofia e o Discurso da Felicidade

    Nesse campo temático da felicidade, por muito tempo a filosofia tem-se debruçado sobre problemas/questões humanas de forma reflexiva e crítica, visando abordar o tema de maneira mais analítica possível. Assim, Armas (ano 1, n. 2, p. 34-41), traça, um pouco, do histórico/discurso de diversos pensadores, filósofos, sobre a grande pergunta humana: Felicidade existe?

    Para isso, ela começa divulgando o resultado de um estudo recente a revelar que as pessoas mais felizes do mundo seriam os habitantes de um pequeno arquipélago chamado Vanuatu. O que muito destoa do esperado, numa sociedade capitalista, é o fato deste arquipélago estar bem distante do ideal da felicidade esperada pela maioria da população mundial, que associa o dinheiro a prazeres.

    Segundo a autora, os vanuatenses têm uma vida pacata; são pescadores ou agricultores, em maioria; e se declaram satisfeitos com a própria existência, além de preservarem suas praias e florestas. (Armas, ano 1, n. 2, p. 35-36)

    Prosseguindo, ela declara que não existe medicamento milagroso, uma pílula da felicidade (embora a medicina e a indústria farmacêutica tentem acreditar e apregoar que sim).

    E é nesse sentido que tem surgido muitos livros e guias que prometem ensinar os homens a chegar lá, obedecendo certas regras e recebendo o grande prêmio final: uma vida plenamente feliz. (Armas, ano 1, n. 2, p. 35)

     

    O “Índice Planeta Feliz”

    E esse, segundo a autora, tem sido o grande objetivo da existência humana. Ela ainda revela a tentativa da New Economics Foundation (NEF) em criar um ranking conhecido como IPF (Índice Planeta Feliz), envolvendo 178 países.

    Esse índice tenta comparar a expectativa de vida, sentimento de alegria e a quantidade de recursos naturais consumidos no país. É um avanço, se comparado ao tradicional PIB (Produto Interno Bruto), usado como referência oficial de desenvolvimento econômico nacional.

    A diferença, paradoxalmente, é que os primeiros colocados no IPF povoam as últimas colocações da lista econômica. E os países mais ricos ocupam as últimas posições, devido ao consumo desenfreado, aliado a degradação do meio ambiente. (Armas, ano 1, n. 2, p. 36).

    Na filosofia, segundo ela, a felicidade é tema recorrente no meio filosófico, embora seja um tema ambíguo, multifacetado. Para Aristóteles, ser feliz é possível, mas dá bastante trabalho, definindo a felicidade como atividade da alma realizada em conformidade com a virtude. (apud Armas, ano 1, n. 2, p. 36)

    Para ele, a felicidade depende da própria pessoa e precisa ser buscada sempre, através da virtude que o homem possui naturalmente. A busca pela felicidade seria uma eterna corrida, sob vários obstáculos, riscos e árduo trabalho a serem superados; porém, sem garantias de que no final o objetivo máximo fosse alcançado. (apud Armas, ano 1, n. 2, p. 36)

     

    A Felicidade com algo plenamente individual

    Atualmente, pensadores no campo da filosofia, como Danilo Dornas, professor de filosofia, tem concebido a felicidade com algo plenamente individual, uma atitude, muitas vezes árdua e penosa, mas quando realizada, traz gozo momentâneo, que por si só não se basta. Assim, a felicidade não é dada pelo governo, religião, dinheiro ou atos dos outros, mas é uma atitude pessoal. (apud Armas, ano 1, n. 2, p. 38)

    Outro grande filósofo, considerado por Armas (ano 1), é o grego Epicuro, que acreditava que o prazer contínuo seria a chave para uma vida feliz. Tal prazer não estaria no campo da indulgência sexual, mas no processo de moderação, leitura e introspecção da vida, ou seja, o poder do sábio que tem controle de si mesmo. (apud Armas, ano 1, n. 2, p. 38)

    Já um filósofo próximo a ideia psicanalítica (freudiana), segunda ela, foi o Jeremy Bentham, a considerar que os homens buscam o prazer e evitam a dor. Mas para ele, o prazer e a dor poderiam ser medidos em valores científicos, instituindo o Cálculo da Felicidade pessoal. (apud Armas, ano 1, n. 2, p. 39)

    Outro filósofo citado por Armas (ano 1, n. 2, p. 40) nesse contexto da felicidade foi Schopenhauer, entendendo a vontade como uma realidade irracional entregue a uma mera aparência captada pelos sentidos. Essas aparências possuíam insaciabilidade por serem confusas e conflituosas, gerando dor e sofrimento.

     

    A Felicidade ligeira

    Assim, a felicidade seria uma ligeira interrupção desta dor e sofrimento a medida que há um desapego às aparências, renunciando completamente ao mundo, muito comum em culturas orientais. (apud Armas, ano 1, n. 2, p. 40).

    Nesse contexto, mas muito anterior a  Schopenhauer, Armas (ano 1, n. 2, p. 40) cita Sêneca, considerando a renúncia a palavra-chave para a felicidade: o ser humano seria feliz se renunciasse ao padrão de referência de sua sociedade. Ainda, confiando à razão toda a sua conduta/ direcionamento de vida, abandonando a relação da felicidade com o prazer. (Armas, ano 1, n. 2, p. 40)

    Assim, em Sêneca, o caminho para a felicidade é possível através do autoconhecimento e de muito trabalho. (apud Armas, ano 1, n. 2, p. 40)

    Recentemente, diversos autores no campo filosófico, sociológico e psicanalítico se reuniram em um colóquio internacional para versarem sobre Invenções Democráticas: Construções da Felicidade, cujos trabalhos foram reunidos e escritos num livro sob esse tema.

    Um deles, Rocha (2015, p.245) traz a filosofia espinosana em que a liberdade e a felicidade são indissociáveis na Ética. Para ele, a felicidade não se realiza sem a liberdade, nem esta sem a felicidade. Além disso, só se realizam em sociedade, pela inter-relação humana com outros indivíduos, mediada pelas instituições sociais e políticas. Esta última, só se realizando, de forma absoluta, na democracia. (Rocha, 2015, p.245)

    Nesse sentido, Mezan (apud Rocha, 2015, p.293), tenta, brilhantemente, contextualizar a ideia espinosana com as mazelas da vida brasileira. Para ele, há uma complacência com a perversão das instituições em zelar por suas finalidades essenciais, ante a necessidade estatal de proteger seus fundamentos contra certas inclinações humanas que colocariam em risco as liberdades públicas e o bem comum.

     

    Ambição x felicidade

    Espinosa (apud Mezan, 2015, p.294) se refere a ambição de dominar e do poder político. Ambição que ameaça o regime democrático, carecendo não somente de regras jurídicas para limitá-los, mas também de contrapoderes, cheks and balances, capaz de inibir ações dessa natureza por um afeto mais forte, usando o medo/terror preventivo de um prejuízo maior como inibidor de ações contrárias as bases do estado, assim como meios de punição efetivos. (Mezan apud Rocha, 2015, p. 294-295)

    Mas no Brasil, segundo o autor, somado a sensação social de que o crime compensa, vê-se uma disseminação de individualismo exagerado, talvez potencializados pelas recentes memórias da ditadura militar.

    Nisso, segundo ele, nota-se a recente tendência do constituinte/legislador, bem como da práxis jurídica, a considerar abusiva e ilegítima qualquer norma contrária ao interesse privado. Isso mesmo que prejudique muitos de seus concidadãos, delimitando a forma como as sociedades civis vão se organizando. (Mezan apud Rocha, 2015, p. 300-301)

    A consequência dessa tendência, para o autor, vai se revelando em inúmeras contestações judiciais para remediar os males da vida em sociedade – bem como a impunidade dos delinquentes, alicerçados em inúmeros direitos sociais, recursos judiciais e leis benevolentes.

    Na contramão de uma sociedade equilibrada, vê-se o descontrole do crime, sensação caótica de insegurança, desequilíbrio econômico acentuado, desconsideração pelos direitos coletivos e do outro, hedonismo acentuadamente narcisista e caos social.

    Situações aparentemente difíceis de contornar, se permanecerem as forças pessoais e movimentos centrados na prevalência dos direitos individuais em detrimento do coletivo; e os contrapoderes e seus meios de punição não forem efetivos.

     

    Parte 3. A Psicanálise frente ao Discurso da Felicidade e seu significado

    Freud, em sua obra O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos (1927-1931), traz algumas considerações interessante sobre a felicidade e as relações sociais. Para Freud, a Civilização humana significa tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais, apresentando-se sob dois fatores:

    • O conhecimento.
    • A capacidade para controlar as forças da natureza e extrair suas riquezas para satisfação de suas necessidades. E para fornecer regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens um com os outros, bem como a distribuição de riquezas entre eles. (Freud, 1927-1931, p.15-16).

    Para Freud, todo individuo é inimigo da civilização. Esta é considerada, por ele, como um pesado fardo com os sacrifícios que dele se espera, para tornar possível a vida comunitária.

    Assim, a civilização tem de ser defendida contra o indivíduo, através de seus regulamentos, instituições e ordens. (Freud, 1927-1931, p.16)

    Para ele, a idade do ouro seria quando houvesse um reordenamento das relações humanas. Assim, removendo as fontes de insatisfação para com a civilização pela renúncia, coerção e repressão dos instintos, de forma que inalterados pela discórdia interna, os homens pudessem dedicar-se à aquisição da riqueza e sua fruição. (Freud, 1927-1931, p.17)

     

    Anti-sociais e anti-culturais

    Além disso, Freud acredita que todos os homens tendem a serem destrutivos e, portanto, anti-sociais e anti-culturais, sendo mais forte em alguns que em outros. Desta forma, ele destaca que a essência não reside nas riquezas e em sua distribuição apropriada; mas no mental, nos ônus dos sacrifícios instintuais impostos a eles e uma possível compensação. (Freud, 1927-1931, p.17)

    É nesse contexto que Freud destaca o poder da educação na infância. Para ele, os regulamentos da civilização só podem ser mantidos através de certo grau de coerção, seja porque eles tendem a não serem amantes do trabalho, seja pelos argumentos não terem valia contra suas paixões.

    Mas, se as crianças fossem educadas com bondade, tivessem opinião elevada de razão e experimentassem os benefícios da civilização, teriam atitudes diferentes. Elas sentiriam como posse sua e estariam aptas a efetuarem os sacrifícios referentes ao trabalho e à satisfação instintual necessários para sua preservação, sem necessidade de coerção. (Freud, 1927-1931, p.18)

    No campo da satisfação, Freud destaca que se fossem suspensas as proibições sociais, cada um pudesse tomar a mulher que quisesse como objeto sexual; matar o rival ou qualquer pessoa que se colocasse em seu caminho, sem hesitação; ou levar os pertences do outro sem licença. Então, haveria uma sucessão de satisfações na vida.

    Mas, ele ressalta, o problema é que todos têm os mesmos desejos, sendo apenas uma só pessoa feliz, através da remoção das restrições da civilização; sendo este um tirano, um ditador, um apoderado de todos os meios de poder, num pleno estado de natureza para agir como bem quisesse (Freud, 1927-1931, p.24).

     

    A suportabilidade da vida e a felicidade

    Aproximando-se do termo felicidade, Freud vai narrando a vida como algo difícil de suportar. A civilização impõe ao sujeito uma série de privações, gerando sofrimento, seja por seus preceitos, seja por suas imperfeições. Além dos danos que a natureza indomada, o destino, lhe aflige, resultando num permanente estado de ansiedade e grave prejuízo a seu narcisismo natural e uma proporcional resistência e hostilidade aos regulamentos da civilização. (Freud, 1927-1931, p.25)

    Nisso, resultaria sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do destino/morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que a vida civilizada em comum lhes impôs. (Freud, 1927-1931, p.26)

    Prosseguindo, ele considera a vida como árdua demais, com muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. Para suportá-las, seria preciso três medidas paliativas/construções auxiliares: derivativos poderosos, que faz extrair luz das desgraças; satisfações substitutivas por meio da sublimação, como o uso da arte, ilusões, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que torna insensíveis a ela.

    Além disso, a religião aparece como importante ferramenta para resolver a questão do propósito da vida (Freud, 1927-1931, p.83). Tal questão se refere, para Freud, aquilo que os homens, por seus comportamentos, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas, o que eles pedem da vida e o que nela eles desejam realizar.

    Para ele, os homens esforçam-se para obter felicidade, querem ser felizes e assim permanecer. Mas, segundo ele, há dois aspectos envolvidos: uma meta positiva e uma negativa.

     

    Sofrimento, Desprazer e Felicidade

    Uma visa à ausência de sofrimento e desprazer. A outra, visa a experiência de intensos sentimentos de prazer, que seria a felicidade, para Freud, em seu sentido mais restrito.

    O que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do principio do prazer. Porém,  não há nenhuma possibilidade de ele ser executado, porque todas as normas do universo lhe são contrarias. (Freud, 1927-1931, p.84)

    Assim, o que se chama de felicidade é a satisfação, de preferência repentina, de necessidades represadas em alto grau, sendo possível apenas como uma manifestação episódica. Nas felizes palavras de Clarice Lispector, em seu clássico conto: a Felicidade Clandestina.

    Para Freud, quando qualquer situação desejada pelo principio do prazer se prolonga, ela produz tão-somente um sentimento de contentamento muito tênue. Assim, as possibilidades de felicidade são sempre restringidas pela própria constituição do sujeito; e a infelicidade muito menos difícil de experimentar, gerando sofrimento em três dimensões: no corpo (condenado a decadência e dissolução), no mundo externo, e nos relacionamentos com os outros homens (Freud, 1927-1931, p.84).

     

    Felicidade x Infelicidade

    Prosseguindo nos autores psicanalíticos, observa-se em Lacan também um discurso que se aproxima da felicidade ou, da infelicidade. Para ele, há uma relação essencial entre angústia e o desejo do Outro (Lacan, 2005, p.14), expressas nas questões Que quer ele de mim? e Que quer ele a respeito deste lugar do eu?.

    Assim, o desejo do homem, para Lacan, é o desejo do outro; e o Outro é aquele que o vê, numa dependência necessária do sujeito em relação ao Outro, ocupando este o lugar do significante. (Lacan, 2005, p.31-33)

    Assim, para Lacan, a angústia é um afeto, seja constituindo a descarga da pulsão, seja como uma tensão em diferentes fases conflituosas ou, ainda, como sinal, no nível do ego, de um perigo vindo de outro lugar. E o desejo do sujeito dependente do Outro que o reconheça.

    Aproximando-se do discurso da felicidade, Forbes (apud Andrade, 2009), traz que Lacan, ao se referir ao tempo da análise, preconiza que ele se torna suficiente no momento em que o analisando pensa que está feliz.

    Nisto, ele concebe a felicidade o estatuto de defesa contra a psicose. Ao contrário do psicótico, que busca a normalidade, viver completamente dentro da norma e acabar com o sujeito; o neurótico suporta aquilo que o destaca da normalidade,  fazendo uso da língua/discurso para recuperar o gozo, falar a felicidade. (Andrade, 2009)

     

    Conclusão: sobre Felicidade e seus significados

    Pensar na felicidade com algo social, de massa, é desconsiderar o desejo do sujeito e suas peculiaridades. É tentar colocar no consumo ou padrões preestabelecidos a ideia de felicidade, nem de longe realizável.

    Por outro lado, considerar a felicidade como algo só pessoal, ou sensorial, é descartar todos os imperativos sociais tendentes a abortá-los. Ou, antes, essenciais para uma vida humana em sociedade.

    Desta forma, conclui-se que a noção ou o conceito de felicidade pode sofrer mutações em seus momentos históricos, tendências sociais, ou mesmo, discursos entre diferentes campos/saberes. Mas, ao menos, no campo filosófico e psicanalítico, ela tende a ser vista como algo multifacetado e episódico, relacionado ao sujeito e suas relações interpessoais.

     

    Consumo, tendência contemporânea e felicidade

    A tendência contemporânea de aliá-la ao consumo tem se mostrado insuficiente. Bem como tem potencializado o sofrimento humano pela exclusão destes da plenitude de seus modelos tendencialmente criados, pré-determinados por uma indústria de tecnologia/consumo/produção.

    No contexto brasileiro, a exclusão/desigualdade social acentuada tem-se aliado a uma regulamentação legal potencializadora dos direitos individuais sobre o coletivo. Nisto, não só sobressai a uma tendência alarmante de desenvolvimento de doenças mentais, sobretudo depressão – como também nota-se o desenvolvimento de uma sociedade conflituosa.

    Essa, marcada pela violência, concentração de renda, desrespeito ao direito do outro e uma série de conflitos sociais a sobrecarregarem o poder público, sobretudo o Judiciário, sobre lides envolvendo relações interpessoais, além de potencializarem o sofrimento humano e a gerarem ansiedades, no caminho oposto à felicidade.

     

    O conhecimento filosófico e psicanalítico na felicidade

    Assim, o que o conhecimento filosófico e psicanalítico tem mostrado é que a felicidade está longe de ser algo distante do afeto ou das relações sociais. Mas, sim, que se apresenta como momentos em que o desejo do sujeito se realiza, numa satisfação de suas necessidades represadas, mas de forma momentânea e possível, seja limitada pela própria constituição do sujeito, seja pelas normas do universo coletivo.

     

    Referências bibliográficas

    ANDRADE, Helainy. A felicidade na clínica de Jacques Lacan – uma aula de Jorge Forbes. [Online]. Disponível em: <http://jorgeforbes.com.br/br/movimentoanalitico/felicidade-na-clinica-jacqueslacan.html >. Acesso em: fev. 2020.

    ARMAS, Renata. É possível ser feliz? Filosofia: Ciência & Vida.  São Paulo: Editora Escala, Ano I, n°2.

    FRANCO FILHO, Odilon de Mello. A civilização do mal-estar pela não felicidade. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 43, n. 2. Pg 183-192, 2009.

    FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos (1927-1931). Volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

    GLOBAL FINANCE. Globalization and its discontents: Economic integration has brought extreme wealth as well as poverty. Can world leaders navigate toward a balanced state?. New York, v. 34, n. 1, jan. 2020.

    LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

    LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina: contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

    ROCHA, André; CALDERONI, David; e JUSTO, Marcelo Gomes.  Construções da felicidade. Coleções Invenções Democráticas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

    Este material sobre felicidade: significado na psicanálise e filosofia foi escrito por Maria Rosineide Afonso, concluinte de nossa Formação em Psicanálise Clínica (matrículas abertas).

     

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