A cura pela palavra, na concepção de Sigmund Freud, envolve o processo analítico da psicanálise, que se baseia principalmente no diálogo terapêutido por meio do método da associação livre. Seria, portanto, uma cura pela fala. Neste artigo, a autora Kátia Vanessa Tarantini Silvestri aborda o tema da palavra, da cura pela palavra segundo a Psicanálise e o método psicanalítico, além da relação com outras áreas do saber, como a filosofia e a linguística.
É no diálogo platônico Ménon que este personagem de mesmo nome indaga sobre: como podemos procurar aquilo que ignoramos? E, se encontrássemos, como saber se o encontrado era o que procurávamos? Provocações como essas que faz Platão (428/427 a.C. – 348-347 a. C.) nos remete à discussão acerca do que, afinal, é a verdade?
Diferentes conceitos foram elaborados durante os séculos e, aqui, iremos nos deter na noção da verdade como um desvelar e sua relação com a Associação Livre. Heidegger (1889 – 1976) é um filósofo contemporâneo alemão que propõe a compreensão do termo grego physys não por natureza, mas por emergir. Dessa semântica, desdobra-se o jogo do Ser como aquilo que se revela e se oculta.
A concepção de Heidegger
Nesse sentido, a verdade de cada Ser resulta de encontros e, estes, são acontecimentos não determinados. O problema a que responde Heidegger é se realmente, como queriam os gregos Platão e Aristóteles (384 a. C. – 322 a.C.), a verdade é a adequação do intelecto à coisa?
Na concepção heideggeriana não. Sem nos aprofundarmos nas complexidades lógicas filosóficas e, portanto, simplificando Heidegger, a verdade é um desvelamento, não reside na adequação entre o enunciado e a coisa, mas na liberdade de entregar-se ao ente e, por meio dessa entrega, o ente é o desvelado.
Todavia, o leitor atento já percebe que se logos (palavra/dizer) se revela, pode igualmente se esconder.
A cura pela palavra entre o revelado e o oculto
Já em Heráclito (535 a C. – 475 a.C.), filósofo grego pré-socrático, com quem Heidegger mantém proximidades conceituais, escutar não é simplesmente ouvir quem diz, mas escutar o logos. Essa advertência heraclitiana explica que o logos pode se revelar na palavra, mas pode, reciprocamente, se esconder na palavra.
A arte da escuta em Heráclito, portanto, é a prática de escutar além da palavra. Escutar o desvelar e ocultar do Ser no e pelo enunciado. Nesse sentido, a verdade vai sendo compreendida como além da lógica da não contradição aristotélica. A verdade deve ser decifrada.
Heidegger vai se distanciando da noção do princípio de não contradição porque para a lógica de Parmênides (530 a.C. – 460 a.C.) e Aristóteles, o erro, o falso nem poderiam ser discursivos dada a premissa o ser é e o não ser não é. Em outras palavras, ou o dizer/o discurso é verdadeiro ou não é discurso, não é um pensamento.
Palavra “falsa”, discurso “falso”
Essa equação, que sob este ponto de vista é uma falta de nexo, é conhecida na Filosofia como o paradoxo do discurso falso e é, justamente problematizando esse paradoxo que nos encontramos com Heidegger.
Corroboram as palavras: “temos que conquistar a verdade, é a decisão de nossa missão. Somente com a decisão desta luta abre-se para nós a possibilidade de um destino. Só há e se dá destino lá onde, numa decisão livre, o homem se expõe ao perigo de sua presença” (HEIDEGGER. Ser e verdade, 2007, p. 271).
O enunciado não é apenas o que foi dito
O que aprendemos dos estudos heideggerianos sobre a essência da verdade é que está debruça-se sobre uma não verdade. O ente (o homem, por exemplo), por sua liberdade, ao entregar-se ao Ser abre-se a si mesmo diz Heidegger.
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Mais precisamente, a verdade não é um atributo do enunciado e, mesmo a não verdade, também não o é. Antes, é um estado no qual o ente se encontra.
Na perspectiva de Heidegger, no cotidiano da existência, o homem está na não verdade, ele se afasta do jogo revelar-ocultar, afasta-se da verdade.
É preciso experimentar a dissimulação da dissimulação, afirma o filósofo alemão, isto é, é preciso experimentar, entregar-se ao mistério para que o Ser, a verdade nesse caso, revele-se a cada um.
Cura pela palavra, Associação Livre e concepção do humano
A concepção de homem heideggeriano é que este vive, ou melhor, existe, ao mesmo tempo, entre a não verdade e a verdade. Porém, vale a observação; a não verdade predomina em nossa existência corriqueira e, a isso, Heidegger chama de errância da não verdade.
O encontro com a verdade será possível somente pela experimentação do abrir-se ao desvelar. Notemos que essa concepção de homem diz que nos encontramos na errância e, isso, não é algo extraordinário, mas ordinário. O extraordinário seria, portanto, o abrir-se ao velado (que é a verdade) e, então, mediante o desvelamento, teríamos a experiência com a verdade.
Podemos nos perguntar, afinal, a verdade na concepção Psicanalítica freudiana e, mesmo depois na concepção lacaniana, não é justamente a verdade como aquilo que emerge do erro, do falho, da mentira, do esquecimento?
Concepção de Freud e da Psicanálise sobre a Cura pela Palavra
Freud (1856-1939) não recupera, mutatis mutandis, tanto na teoria quanto na clínica os desdobramentos dessa longa criação de conceitos filosóficos iniciados com Parmênides e Heráclito? Entendemos que sim.
A Psicanálise recupera a perspectiva da palavra ambígua, fora de lugar, deslocada. E, de certa forma, responde ao pensamento cartesiano que lutou justamente pelo oposto.
Descartes (1596-1650), filósofo moderno, encontra em sua busca pela garantia de que não está sendo enganado, a verdade tal qual Parmênides a entendia – a razão conceitual, uma verdade unívoca. Porém, a história nos narra nas próprias palavras de Freud “que não somos senhores nem em nossa própria casa”.
A intersubjetividade da palavra em Nietzsche e Lacan
Nietzsche (1844-1900), ao seu modo de marteladas, diz, a partir de seus vários apontamentos sobre a verdade, que o erro faz parte da vida, que a verdade é uma ilusão no sentido mesmo linguístico de crença na não contradição do discurso.
A Psicanálise, nessa mesma esteira da compreensão de uma verdade que se oculta e que se desvela mediante, no caso, a associação livre, busca igualmente um lugar à luz para o entendimento que a angústia, o desemparo constituem o homem e, que por isso, há intersubjetividade, por exemplo.
A palavra, portanto, não revela pela verdade, mas sim desvela o oculto na e pela pretensa palavra transparente, não contraditória.
Signo, verdade e sobre a possibilidade de cura pela palavra
Ao fazermos um paralelo com as teorias filosóficas, cujo desejo era a palavra/verdade não contraditória, que se adequasse perfeitamente à coisa, a palavra/ verdade na psicanálise segue as trilhas de conceitos filosóficos que defendem a perspectiva oposta.
A palavra equívoco, a palavra ato-falho porque são nesses velamentos que moram os desejos, os recalcamentos, a condensação e denegação, como explica o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981).
Os signos são enganadores. Todavia, com as compreensões de Heráclito, Heidegger, Nietzsche, Freud e Lacan podemos entender que não é contradição o fato da verdade ter uma súbita aparição nas entrelinhas do discurso que ser quer translúcido ou, como diz Heidegger, desvelar, face a liberdade do ente de entrega-se ao desvelado.
Sobre a autora: este artigo sobre a cura pela palavra, a cura pela fala e a relação com a associação livre, a filosofia e a linguística foi escrito por Kátia Vanessa Tarantini Silvestri ([email protected]), Psicanalista, Filósofa e Psicopedagoga. É Mestre e Doutora em Linguística.