estética da violência

Estética da violência: o que é, como se manifesta

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A finalidade deste artigo é elaborar algumas intervenções e articulações entre elementos culturais e sociais com proposituras psíquicas, instâncias psíquicas ou ainda formas operacionais da psique. Verifica-se, então, logo de imediato, um processo pelo qual procuramos integrar e interrogar a sociedade e a vida psíquica como imbuídos de interação mútua e não oposição ou relação de interno e externalidade. Convém neste ponto uma pequena observação. Continue a leitura e entenda sobre a estética da violência.

O eu moderno no cenário da estética da violência

A modernidade econômica, social, política e cultural começa a se esboçar no ocidente por volta do século XV e especialmente XVI acelerando-se daí em diante.

Neste cenário – que não vamos detalhar, mas sabido academicamente, confluência de muitos movimentos integrados de desenvolvimento econômico, mercantil, filosófico, mas também de violências extremas como escravidão, extermínio de populações originárias e pauperização de camponeses pelos cercamentos de terra (MARX, 1983, cap. 24) – surge o eu moderno, ou as formas e configurações do que se pode chamar de “self” (TAYLOR, 2013).

É também dentro deste cenário que se vê construir a dicotomia interno/externo, cultura/natureza (PLASTINO, 2001).

Processos psíquicos na estética da violência

A psicanálise é fruto de tal movimento e ao mesmo tempo sua crítica (PLASTINO, 2001). Justifica tal afirmativa pelo fato de ela se colocar em uma espécie de “fina camada” entre os eventos e processos psíquicos e como esses eventos não ocorrem dentro das estruturas individuais sem formas de subjetivação – na conceituação de Foucault – e ao mesmo tempo essa mesmas formas serem produtos sociais e afetarem, aderirem e configurar os indivíduos em suas formas de sofrimento e potencializar seus próprios conflitos psíquicos.

O neoliberalismo, por exemplo – e tema de outro texto – não se fecha e não se restringe a uma forma de gestão pública: seu escopo são armadilhas da fala, da linguagem e de gestão do sofrimento psíquico (SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021).

Estética e gerenciamento dos sentidos

Estética não é aqui o estudo ou os juízos de valor estético ligado a obras de arte. Usamos neste momento a palavra estética em seu sentido mais estrito e originário de processos que ferem, afetam, os sentidos. Boa parte dessa argumentação ou ao menos algo já presente neste texto foi em outra oportunidade tratado por nós (DOTI; DELGADO, 2013).

A influência do capitalismo na estética da violência

Dadas as formas e configurações da sociedade atual estamos inseridos em um mundo de mercadorias, de coisas a serem compradas. Nenhuma novidade uma vez que o desenvolvimento do capitalismo coincide com a modernidade e ao mesmo tempo com a formação do indivíduo, da individualidade moderna e seus apelos ou imperativos de liberdade e autenticidade.

Entre outras marcas este sistema é fundado em um incessante processo de produção de mercadorias, processo ininterrupto e produtor de novidades e necessidades artificiais. O resultado não poderia ser outro: um sistema produtor de mercadorias, uma verdadeira fenomenologia do capital como mercadorias, coleção de mercadorias, porém por meio do trabalho assalariado.

Sociedade de consumo e das estéticas

O avanço cada vez maior do poder das mercadorias coincide com um despedaçamento dos poderes individuais e uma clava poderia, já neste momento, acertar e ferir de morte o coração da individualidade como fenômeno moderno e seus gerenciamentos ou dispositivos psíquicos.

Um mundo marcado por incisivos apelos do consumo e das estéticas, pelo “ferimento” dos sentidos das mercadorias, das coisas que nos rodeiam acabam por atravessar a individualidade e configurá-la, produzir formas de subjetivação e poderes estranhos ao processo de formação de um sujeito.

O indivíduo moderno e seus ideias de independência, autonomia e liberdade encontrariam – junto com Freud e a sua outra ferida narcísica do homem no qual o eu não é senhor em sua casa – motivos de seu deslocamento, de ver-se estraçalhado como ferida narcísica. Pior ainda: quando esse mundo infestado e abarroado de mercadorias atravessa o pressuposto indivíduo senhor de si e seu eu (ich) autônomo por meio do gerenciamento dos sentidos. Assim, vai se formando um sistema-mundo no qual nossas percepções estão voltadas para o que se deve olhar, ouvir, tocar e claro sentir, deixar-se afetar, pulsar paixões.

As formas de vida na estética da violência

Configuram-se aquilo que o psicanalista Christian Dunker chama em um texto (2011) de “formas de vida” (Lebensform) e o resgate desse conceito para explicar as formas de sofrimento atuais. No entanto, temos outras perspectivas de gerenciamento e sofrimento, pois temos que deslocar um pouco mais ainda a questão das mercadorias.

Além de termos a chamada “internet das coisas” – cujo conceito não precisa ser abordado neste texto e não tem relação neste momento – temos mais: o mundo das redes e plataformas digitais. Estas redes e plataformas promovem não apenas afecção dos sentidos, mas afetação da psique. Desde a formação de “bolhas” e “tribos” e seus códigos até disputas políticas e formas de vigilância das nossas ações.

Não nos enganemos: são mercadorias, mas não mais como extensão orgânica de nossa inseparável base biológica e sim como extensão de nossa cognição, imaginação bem como nossos ódios, agressividade, ansiedade. E mais: excesso de informação, likes ou não, mensagens, esperas e toda uma sociedade do cansaço (HAN, 2015).

A psique na estética da violência

O gerenciamento dos sentidos extrapolou em muito apenas a afecção dos sentidos de nossas “camadas dermo-sensíveis”, como se fossemos uma “pele” imbuída de sentidos e, claro, nossas relações afetivas com o que vemos, ouvimos etc.

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    Nossos sentidos são também “camadas neuroplásticas” como intrusão direta sobre os movimentos da psique e nossas respostas ao mundo, aos outros, ao grande Outro e nossa inserção no simbólico.

    A fala roubada como violência

    Consequência imediata das novas formas de produção de mercadorias e das estéticas da violência do capital é “fala” que nos é roubada. Ao termos sistemas de produção de elementos culturais – como já foi soberanamente a televisão (BUCCI; KEHL, 2004) e agora as plataformas digitais e redes sociais – cuja função é ser uma sutil mercadoria de gerenciamento dos sentidos.

    Temos também roubo da fala e cada vez mais formas de sujeição, subjetivação e impossibilidade de formação de sujeito. Inevitável e quase desnecessário dizer como a produção de subjetividade é essencial na psicanálise (FINK, 1998; 2018).

    A produção de um sujeito psicanalítico é um processo necessário na clínica: transformar em um salto aquilo que me atravessa e de que não controlo em um sujeito; sei o que fizeram de mim, mas o trabalho de transferência, como diz Lacan, me permite ser um sujeito (FINK, 1998, pp. 84-85).

    A Psicanálise como fenômeno clínico na estética da violência

    É necessário também todo o processo e movimento de crítica social. Isso não é novo e nunca deixou de ser pressuposto da psicanálise.

    Reich, por exemplo, foi marginalizado e anatematizado tanto diante de freudianos como marxistas por ser um crítico radical da sociedade por meio da psicanálise e ao mesmo tempo ser coerente com a psicanálise e ser um crítico radical dos sofrimentos psíquicos que a sociedade inflige ao indivíduo.

    Na medida em que somos envolvidos por mais e mais processos mercantis e processos mercantis-culturais somos mais violados pelas formas estéticas e pela maneiras como essas manietam a psique e nossa capacidade de fala. Essa fala interrompida não ocorre somente como fenômeno clínico, mas como fenômeno social no qual expressam-se formas de ruptura com imaginação, capacidades cognitivas declinantes, dificuldade de interlocução.

    Na clínica a falta de fala é a inescapável possibilidade de se tornar um sujeito.

    Considerações finais

    Para encerrar este texto é essencial lembrar que a clínica é uma singularidade feita pelo analista e o analisando. A clínica é o momento de manifestação da transferência e do saber clínico manifestado pelo sujeito a despertar na fala do analisando.

    Isso é essencial e não pode ser perdido. No entanto, não perceber que a clínica é uma configuração política em sentido amplo do termo – refere-se aqui às formas de entender grandes problemas humanos tais como liberdade, dor, felicidade, alegria, amor, amizade.

    Uma determinada linguagem do sofrimento, da violência, da fala interrompida em sua gramática social de afetos e sofreres é deixar escorrer para fora da psicanálise formas possíveis de intervenção na singularidade e promover caminhos para o “durcharbeite”, o trabalho analítico ou perlaboração na tradução mais corrente.

    Referências bibliográficas

    BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004. DOTI, Marcelo Micke; DELGADO, Darlan Marcelo. A estética do capital e o mundo das coisas. Trabalho Necessário, Rio de Janeiro, ano 11, nº 17, 2013. DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: releitura da diagnóstica lacaniana a partir do perspectivismo animista. Tempo Social: revista de sociologia da USP, São Paulo, vol. 23, n. 1, pp.115-136, 2011. FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. _______________ Introdução clínica à psicanálise lacaniana. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I, O processo de produção do capital (Tomo 1). São Paulo: Nova Cultural, 1985. PLASTINO, Carlos Alberto. O primado da afetividade: a crítica freudiana ao paradigma moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (orgs.) Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. 4 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

    O presente artigo foi escrito pelo autor Prof. Dr. Marcelo Micke Doti([email protected]). Marcelo é Professor e pesquisador em regime integral (RJI) do CPS (CEETEPS) do Estado de São Paulo na Faculdade de Tecnologia (Fatec/Campus Mococa), psicanalista (em formação pelo IBPC) e onívoro intelectual. Formado em Ciências Econômicas (Unesp/FCLAr), possui também mestrado em Filosofia Política (Unicamp/IFCH), mestrado em Sociologia (Unesp/FCLAr), doutorado em Planejamento de Sistemas Energéticos (Unicamp/FEM) e pós-doutorado em Pesquisas Energéticas (UFABC/CECS). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9657-6626

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